domingo, 27 de dezembro de 2015

Ressuscita-me!

Talvez, quem sabe, um dia, por uma alameda do zoológico, ela também chegará. Vai olhar tudo em volta como uma criança fora do seu lugar. Mais ainda: como uma criança que era adulta, numa trajetória parecida com a de Benjamin Button. "O que eu estou fazendo aqui?", perguntar-nos-á.

Ninguém saberá explicar. Ela é tão bonita. Olharão estupefatos, estavam todos ocupados gritando entre si sem se ouvir, dizendo bobagens, fazendo bobagens, agredindo, elaborando ridículas teorias sobre assuntos que solenemente desconhecem. Agora, estarão parados, paralisados, porque não sabem lhe responder o que ela está fazendo aqui. Ela é tão bonita, que, na certa, eles a ressuscitarão.

Talvez, o susto vem daí: se ela estava morta, o que estará fazendo aqui, entre nós, justo nós, que gritamos agressivamente tão alto?

Antes que voltemos a gritar, antes que voltemos para essa sanguinária batalha do cotidiano, gente querendo ditadura, gente querendo matar as pessoas,  gente querendo segregar, gente querendo tudo para si e merda para o resto; finalmente sentiremos o coração destroçado pelas mesquinharias. E então, o século XXX vencerá. É de lá que ela vem. Vem para anunciar que agora vamos alcançar tudo o que não pudemos amar na vida.

Alguns corações serão atingidos, e a tristeza, a raiva, o ódio, os gritos, a violência darão lugar ao pranto doído. Nada novo se constrói sem dor.

Arrependidos e cheios de remorso, olharemos para cima e veremos o estelar das noites inumeráveis. E então perceberemos que a nossa passagem pelo planeta é tão miúda que nada nos restará se nossa presença por aqui não servir para alguma coisa boa.

Então ainda haverá gente gritando, ofendendo, desfilando preconceitos e intolerância, agredindo, esbanjando sua arrogância e sua vaidade de nada, porque não é nada, jamais poderia ser alguma coisa se mal sabe do que está falando. Não sabe o que é a política e a odeia. Não sabe o que é o mundo e o odeia. Não sabe quem é o outro e o odeia. Gente que encontra o Chico Buarque na rua e diz que ele é um merda. Gente que cospe em seres humanos que dedicaram a vida a fazer alguma coisa boa para quem chegar depois. Gente que caçoa e pisa em quem julga ser "menor".

Enquanto isso tudo ainda estiver acontecendo, ela gritará: RESSUSCITA-ME! Ainda que mais não seja, porque sou poeta e ansiava o futuro... Mais não somos, mais jamais seremos. Mas quem anseia o futuro é que mais merece viver. Quem não se rende ao presente, quem não se prende ao presente, quem não se limita ao presente. Lindos planos coletivos de que amanhã será melhor. Amanhã vai ser maior. RESSUSCITA-ME, ela segue gritando.

Pois se o pai é, pelo menos, o universo, e a mãe é, no mínimo, a Terra; então o sangue não me divide de ninguém, o ar que eu respiro, antes, me une. Inclusive àquele que até agora está gritando e agredindo. Mas eu também não posso querer ser nada, e à parte isso, trago em mim todos os sonhos do mundo. Vamos viver, vamos viver.

RESSUSCITA-ME!

Que reviva a Esperança. E se ela, de novo, se atirar do alto do décimo segundo andar do ano, outra vez será encontrada incólume. Risonha, caçoando de quem pensou que ela estava morta. Brincando de dar susto, que nem criança. Viva viva viva, Esperança. No final de tudo, eu sei que terá valido a pena passarmos por tudo isto.


Com amor por Caetano, Maiakovski, Fitzgerald, Fernando Pessoa, Mário Quintana e Cândido Portinari.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 8: final)

Carolina e Érico eram amigos havia algum tempo. Amor de amigo é despretensioso, não é um trocar de ajudas, ombros e ouvidos, não envolve sentimentos mesquinhos como o de posse. Amor de amigo não é obrigatório, você encontra os amigos pela vida sem que ela os imponha a você pelo sangue ou por convenções sociais. Ninguém te prende a um amigo, nenhum contrato, nenhuma promessa ao vento. Você fica porque você quer. De amor de amigo você não se protege, ninguém tem medo de tornar-se amigo de alguém.

Mas sentimentos são coisas confusas e altamente misturáveis – por que alguém haveria de determinar que é errado misturar sentimentos? -, que se somam, se dividem, se subtraem, se multiplicam entre si. Érico se viu apaixonado pela moça que tinha nele seu melhor amigo, e ela, empunhando esse discurso, preferiu afastar-se para isso “passar”. Entregou para o tempo resolver, só o tempo sabe passar. Consigo mesmo, ele desejava que fosse um distanciamento temporário, para pensar. Ele também tinha que pensar, era tudo muito confuso mesmo.

Agindo em coerência com a estratégia de Carolina, Érico começou a sair com uma garota. Nada muito empolgante, mas estava aberto para qualquer coisa alterar-lhe o rumo. Certa noite, sua vida tomou um rumo imprevisto: a namorada saiu cedo e Carol se aproximou. Estavam distantes havia algum tempo, e talvez isso o fez percebê-la diferente. Parecia insegura do que estava fazendo, mas decidida a fazê-lo. Talvez, o que a tinha provocado a distanciar-se foi apenas o velho medo... Medo de perder o amigo, medo de se perder. As pessoas são cheias de medos.

Érico teve medo. Quando ficaram juntos, pareceu a coisa certa. Mas há muitos poréns entre um ponto e outro da história. Era uma situação nova e inusitada – sempre que pensava racionalmente no que estava acontecendo, assustava-se. A paixão chegara a ser platônica, a vida real é mais difícil. Os dois teriam que lidar com ela. Romantismo é um estilo literário, não uma boa forma de planejar sua vida.

Passou-se uma semana de incertezas, devaneios, expectativas e medo; e lá estava a noite de revéillon. Carolina reuniria os amigos em casa. Ninguém sabia de nada, ela mal sabia de alguma coisa, Érico nem sabia se aquilo tudo era real. No meio de tudo isso, ao se dar conta de que a meia-noite se aproximava, Carolina foi procurar Érico para que fosse seu primeiro abraço do novo ano.

Procurou-o pela festa até encontrá-lo na pista de dança e o viu dançando com uma moça qualquer, uma entre os tantos desconhecidos que sua própria festa agregou. Não era uma dança ingênua e despretensiosa. Era um flerte, como os demais que aconteciam simultaneamente no mesmo lugar.

Carolina ficou parada olhando, quase duvidando. Num impulso, foi até ele e puxou-o para fora de lá.

- Eu não posso acreditar que você está fazendo isso!

- Eu não estou fazendo nada!

- Érico, eu não sou cega, nem burra!

- Carol, a gente sabia que não ia ficar junto aqui!

Ela arregalou os olhos ao ouvir aquilo. Não dava tempo de pensar, a raiva se somou à tristeza, e um intenso sentimento de decepção resultou daquele choque. Érico tentou consertar.

- Carol, não foi nada, esquece isso.

- Vou esquecer mesmo, mas não vou esquecer só isso não! Vou esquecer logo tudo! – e, baixando o volume da voz, completou – Eu pensava você seria incapaz de fazer qualquer coisa que me chateasse. Era por isso que eu tinha decidido dar uma chance a nós.

Carolina saiu depressa. Não olhou para trás, mas sabia que Érico não a seguia. Correu em direção aos fundos da casa. O ano estava quase mudando, as pessoas estavam concentradas nisso. Érico ficou lá, parado ao lado da pista de dança, imaginando que colocou tudo a perder, dando-se conta de que seria eternamente assombrado pelo motivo pelo qual ela decidira dar uma chance a ele.

De repente, alguns dos convidados correram na direção do quartinho dos fundos. Estranhando a movimentação, ele se espichou para enxergar: viu Carol no chão e correu. Viu-a zonza, estava machucada. Tinha caído de cima do telhado. O que ela teria ido fazer no telhado...? Fugir dele? Chorar isolada?

Érico conseguiu chegar perto de Carolina, surpreendido pela reação que causara na moça. Quando o viu, ela sorriu e o abraçou forte. Ele se sentiu aliviado: não tinha posto tudo a perder. Encorajou-se, para tudo há solução:

- Por favor, me perdoe, foi uma estupidez minha.

Carolina disse que não sabia do que ele estava falando, e assim, começou uma disputa infinita entre memória, motivos, lembranças, táticas, culpas, remorsos. E medo. A passagem dos dias não reverteu esse comportamento dela, antes, acentuou. Érico ficou surpreso por achar que aquela mulher pudesse agir com tamanha frieza, e uma mágoa tamanha tornou palpável a necessidade de esquecer aquela história.

O tempo sempre ajuda quem quer esquecer. Quem quer. Quem não quer, não adianta esperar que o tempo aja sozinho. O tempo só sabe passar, cumprindo um curso de rio que pode ser sinuoso, pode ser comprimido entre margens opressoras, em águas densas ou límpidas; mas também pode ser o correr tranquilo de águas que não têm pressa de desaguar – sabem que o deságue é um fim incontornável.

O tempo não é coisa que a gente possa mexer não. E nem precisa.

***
FIM


quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 7)

- Amanda, você é a única pessoa para quem eu falo tudo, por favor, me ajuda a entender se eu estou ficando louca ou carente demais.

- Lá vem.

- Estou sentindo um troço estranho aqui.

- Ai, Jesus, eu estou tendo um deja vu?!

- Você acha que não devo?

- Irmã, vou te levar urgentemente num psiquiatra. Ou numa mãe-de-santo. Ou num programador de sistemas. Já tive esta conversa contigo antes!

Chegou a sentir vertigem. As palavras de Amanda entravam atropeladas pelos seus ouvidos, Carol parecia ter perdido parte da capacidade cognitiva junto com a memória daquela fatídica noite que, agora, ela esquecia por opção.

- Ah, que bom que te achei, Carol, estou indo embora.

Beijou-o para testar a si mesma e a ele.

- Não quero que você vá encontrar a Liz amanhã.

- Ok. Não vou.

Ao redor deles, a maioria já estava embriagada o suficiente para não notá-los. Mas alguém, ao longe, prestava muita atenção, e ria-se sozinho observando aquele casal. Pensou em chegar mais perto para ouvir melhor, mas temeu a memória da moça que tinha perdido a memória. Saiu risonho, ainda observando, recordando. Vestido de azul.

A noite de ano novo é muito tumultuada. Certamente, a mais congestionada do ano. Todo mundo quer pedir, até quem diz não crer em nada. E a ânsia de pedir é tão grande que pedem pra qualquer coisa. Até para uma tigela de lentilhas, pedem. Alguns fazem pedidos genéricos, como saúde, paz, amor. Tem gente que especifica demais, quer o cargo X na empresa Y em determinada altura do ano. Mas aquele pedido foi diferente.

A mulher chorava contida, sentada sozinha no telhado do quartinho dos fundos de sua casa. Embaixo, ninguém notava: faziam já a contagem regressiva que traria o novo ano.

- Eu vou esquecer mesmo. Mas não vou esquecer só isso. Vou esquecer tudo, tudo! – e olhando para o céu, pediu miseravelmente em prantos – Por favor, me ajuda! Eu quero esquecer!

- Como assim?

A mulher se assustou quando me viu. Claro. Não esperava resposta. Já nesse momento, quase caiu do telhado, duvidando de seus próprios olhos. Segurei. Ela me mirou de cima abaixo, desconfiada, mas sem ter mais com quem contar.

- Quem é você?

- Que raio de pedido é esse?

- Não sei quem é você!

- Ou você me explica ou eu não vou poder te ajudar, moça.

- Você é um anjo?

- Eu não.

- Papai Noel?

- Tá louca?

- Peraí... Você estava na festa?

- Moça, diga logo o que quer e eu vou-me. Não tenho a noite toda pra ficar aqui em cima com você.

Ela respirou fundo e parou de chorar. Com a voz lacrimosa falando baixo e tremendo um pouco, como se aqueles quase trinta graus fossem somente dez, ela me olhou de novo e pediu.
Não tinha nada a perder.

- Eu queria voltar o tempo. Pra época que eu e o Érico éramos somente bons amigos.

- Moça, o tempo não é coisa que eu posso mexer não. Volta no que a senhora estava falando antes.

- Está bem – e respirou fundo, como diante de uma cesta de basquete onde arremessaria um tiro livre – Quero esquecer tudo o que houve entre a gente. Quero esquecer o que sinto por ele!

A gente não está aqui para avaliar caso a caso, nem para julgar as tristezas e necessidades das pessoas. As pessoas às vezes são meio esquisitas, mas temos que acreditar que quem sabe o que é melhor para elas são elas mesmas. Pensar que você sabe mais abre possibilidades perigosas de revogação do livre-arbítrio.

E assim sendo, foi do jeito que tinha que ser.

Foi um pouco pela minha ação em atendimento ao pedido, mas acho que foi principalmente um novo susto em meio ao estouro de fogos de artifício que fez a moça se desequilibrar e cair. Rolou telhado abaixo e foi ao chão. A queda foi feia, o lugar não era baixo. Podia ter se machucado, mas, por sorte, os danos foram os mínimos possíveis. Desci, quis saber se ela precisava de hospital, mas ela disse que não.

Como fui visto, fiquei um pouco mais por lá para não gerar suspeitas, depois fui cumprir o restante da jornada – que era longa. E vou lhes dizer: não chega a me surpreender ver a mulher, agora, depois de esquecer tudo, lembrar tudo ao refazer sem saber que já fez.

- Na noite de ano novo, você disse que duvidava de que eu fosse capaz de fazer alguma coisa para te chatear. Você se lembra disso? – ele perguntou.

- Sim.

- Lembra o contexto?

- Creio que foi ao me despedir de você... Quando você fez referência à tal briga que escapou da minha memória. Não foi isso?

- Foi exatamente isso.

***
Continua... Último capítulo amanhã!

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 6)

O ano, aliás, começou de verdade na segunda-feira, dia de trabalho. Tudo normal, exceto porque alguns pararam de fumar, outros começaram dietas, uma meia dúzia começou a correr diariamente. Tudo normal, exceto que duas pessoas que antes eram grandes amigas agora estavam afastadas, sem falar direito uma com a outra, e sem nem saber bem o porquê disso.

Aquela ausência entristecia Carolina mais que a grosseria do dia 1º de janeiro. A falta é um buraco que se abre na alma, insolúvel. Quando se sente a falta de alguém que está por perto, o sentimento é muito específico. A falta é ouvir a voz da pessoa quando ela não falou nada. A falta é morar em todos os lugares aonde a pessoa não vai.

Carolina olhava Érico de longe e não sentia o amor que ele lhe dedicou outrora. Abria-se-lhe no peito uma dor inexplicável. Nada daquilo era explicável, afinal.

Desejava poder voltar o tempo para quando aquela festa não tinha acontecido. Se pudesse refazer suas decisões, não teria organizado festa nenhuma, teria passado a noite de ano novo dormindo, nem que fosse à base de soníferos.

O tempo, por sua vez, não volta atrás, mas sabe correr. O tempo correu para um lugar onde o sofrimento de não saber se dissipou em uma variedade de sentimentos entre a conformidade e a melancolia. Carolina mastigava sua nostalgia em pleno ano novo, como aquele que pressiona eternamente entre os dentes uma folha de bálsamo, por exemplo.

Foi então que os dois ex-amigos foram desafiados a se encarar. Isso se deu quando já eram capazes de fazer isso, de forma natural. Sabiam que esse momento chegaria. Era noite de sexta-feira, aniversário de um colega do escritório. Todos saíram do trabalho direto para o bar, onde se armou uma mesa comprida em que pessoas gritavam para se ouvirem, riam escandalosas e se aliviavam das pressões cotidianas da vida entre goles de cerveja.

Os dois se sentaram lado a lado, e não esconderam o constrangimento. Eram, antes, tão íntimos. Agora, trocavam monossílabos esquisitos e gaguejantes, de quem não tem nada para dizer.

Carolina não se conformava com aquele triste fim de uma bela amizade, e resolveu agir para reverter o constrangimento. Fez perguntas sobre a família dele, sobre o trabalho, e, lá pelas tantas, já estava confessando a falta que ele lhe fazia.

- Eu também sinto sua falta, Carol.

Ela respirou aliviada, como se até ali o ar que a penetrava não tivesse encontrado o caminho dos pulmões, só agora. Sabia que não podia controlar o tempo para remediar coisas passadas, mas entendeu que tinha controle sobre o presente: não falou sobre a festa, a queda, a briga, a grosseria. O passar dos minutos trouxe a Carolina e Érico os assuntos que sempre tiveram antes: era a vida correndo solta, como se a interrupção fosse derivada de um salto sobre um amontoado de rochas. O salto pode até ter provocado um tombo, mas bastou levantar-se para voltar a correr outra vez.

Da mesma forma que costumava fazer antes, Carolina perguntou a Érico como estava a moça com quem ele saía vez ou outra no ano passado. Foi quando ele tornou a apresentar o olhar entre desconcertado e desconfiado, que ela reconheceu de pronto.

- Ué, Carol, desde o fim do ano passado eu não a vi mais.

Deduzindo que isso pudesse ter alguma relação com a parte de sua memória que a amnésia apagou, ela tentou mudar de assunto rapidamente. Porém, antes que ela fosse bem-sucedida, Érico prosseguiu:

- Amanhã vou sair com a Liz.

Liz fora colega de ambos, mas tinha deixado o escritório havia poucos meses. Carol sempre alertara o amigo de que a jovem tinha pretensões com ele, mas ele preferia fingir-se de desentendido: sabia que Carolina não ia com a cara da garota.

Ao ouvir a revelação, ela engoliu seco e ficou sem saber para onde olhar.

- Ah, então, finalmente decidiu dar uma chance à moçoila?

- Se você disser para eu não ir, eu não vou.

Trezentos tipos diferentes de calafrios percorreram o corpo de Carolina naquele momento. Ela engasgou, tossiu, foi um fiasco. Érico riu. Sentir aquele riso carinhoso era o gengibre de que ela precisava. Riu também, e continuaram no mesmo lugar de onde nunca deveriam ter saído.

Não demorou e foram interpelados pelos colegas, sedentos de interação e de mais cerveja. Àquela altura, a embriaguez de todos já os fazia avulsos a conversas particulares que cada qual pudesse nutrir, e sociáveis o bastante para não permitir que ninguém saísse daquele contexto coletivo quase simbiótico.

A noite passava, e ficou inevitável para Carolina empreender nova tentativa de recuperar a noite de réveillon. Tomava força em seus pensamentos a revelação feita pela irmã poucas horas após perder a memória. Telefonou para Amanda, então.

***
Continua...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 5)

A memória que lhe fora roubada não era de um período tão recente assim. Segundo Amanda, isso acontecera havia coisa de uma semana.

Ficar com Érico não lhe fazia sentido algum! Como seria possível que não lembrasse, ou pior, que sequer pudesse se imaginar nessa situação?! Não poderia ter ficado com Érico porque não correspondia a atração à qual o amigo sucumbiu certa vez, e detestava a ideia de se arriscar a machucá-lo. Será que falara para a irmã sobre outro Érico? Mas não se lembrava de outro Érico também!

A situação era desesperadora. Quando Tito se aproximou de Carolina de novo, puxando-a pela cintura intimamente como fazem os casais, estranhou sua expressão repleta de dúvidas. Já não havia contexto para aqueles abraços.

A cabeça doía. Um galo de briga lhe crescia no lado direito para além da testa, acima da orelha. Provavelmente, aquele seria o líder dos galos que tecem manhãs e não lhe permitiria dormir. E quem dorme com um barulho desses? Sem contar que a quantidade de arranhões e feridas tornava difícil a mera tentativa de encontrar uma posição confortável para descansar. Alguma lesão muscular certamente ocorrera.

Acordou de supetão, seis horas depois. Teve pesadelos com supostas consequências da queda, sentiu-se prisioneira em seu corpo. Doía muito, o galo cacarejava estridentemente e sem parar. Queria ir para o hospital. “Será que quebrei a porra duma costela?!”, pensava, temendo a resposta. “E se der hemorragia?” – a cabeça, quando quer produzir motivos de se incomodar, funciona como uma máquina desenfreada.

Tudo por causa de uma queda que ninguém sabia como ocorreu. Talvez tivesse subido ao telhado para rezar, pedir, agradecer, procurar estrela cadente. São bons motivos para levar alguém ao telhado numa noite de revéillon.

- Mulher, eu estou começando a ficar preocupada contigo.

Pelo telefone, a irmã não deu maiores esclarecimentos. Somente reafirmou o que já havia dito na noite anterior. Carolina estava impressionada com a amnésia, e não havia remédios ou testemunhas para resolver a situação.

Precisava falar com Érico. Era a ele que recorreria, claro. Mas, como se sua amnésia fosse do tipo alcoólica naquela manhã de 1º de janeiro, lembrou-se de repente de que brigara com Érico – na verdade, lembrou que lhe disseram isso, mas ainda não se lembrava de briga nenhuma. Lembrou que a irmã lhe revelou que tinha ficado com o amigo, mas não se lembrava de alguma vez ter sentido atração dessa natureza por ele.

Carolina, então, pôs-se a chorar. Nem isso sabia bem: por que estava chorando. Secretamente, tinha pensado que, ao dormir, toda aquela confusão se desfaria no ar, mas isso não aconteceu. Quando acordou, tudo estava exatamente no mesmo lugar. Olhar os escombros da festa não ajudava a lembrar, mas desesperar-se a afastava da compreensão de qualquer coisa. Precisava se acalmar, sabia disso. Só não sabia como fazer. Ou talvez soubesse sim.

Telefonou para Érico com a voz ainda um pouco chorosa.

- Eu não sei o que está acontecendo, acho que bati com a cabeça e esqueci uma parte da festa! – disse, o medo transbordando de suas palavras trêmulas – Preciso ir pro hospital, Érico...

- Você só se esqueceu de mim, né Carol? Aliás, acho aproveitou e também esqueceu que tinha terminado com Tito.

Érico acusava a amiga de nutrir uma amnésia seletiva. Mais do que isso, demonstrava não levar a sério os males que a estavam atormentando. Como podia não se importar com os riscos que ela ainda corria por ter caído do telhado sem nem saber como? Como podia ser insensível a tal ponto?

Triste, Carolina cortou o assunto, desligou o telefone e resolveu deixar aquilo como estava mesmo. De agora em diante, assumiria para si que nunca teve mesmo nada com ele, e que a história contada por Amanda provavelmente era um engano tremendo. O ano era novo e a vida seguia para frente. Que a queda do telhado, a briga na pista de dança, a costela, o galo, que ficassem todos para trás. Que Tito ficasse para trás também, o ano era novo. Que viessem erros novos.

Foi para o hospital sozinha, relatou o pouco que sabia sobre a queda, fez os exames que julgaram necessários. Nenhum mal físico lhe havia acometido. A médica explicou que uma pancada forte na cabeça pode resultar em amnésia, e recomendou que Carolina ficasse sob observação para saber se novos sintomas se revelariam. Aparentemente, nada lhe danificara o cérebro, mas ela deveria ficar atenta caso sentisse excesso de sono e enjoo.

Voltou para casa um pouco mais tranquila. Estava tudo bem. Um dia, perguntaria a Érico que história era aquela de briga na pista de dança. Um dia, depois que passasse a chateação causada pela atitude dele naquele primeiro dia do ano.

***
Continua...

domingo, 20 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 4)

Tito fez cara de espanto. Carolina tinha cada vez mais medo desse lapso de memória. Agora era certo: foi apenas aquele trecho da noite que se apagou de sua lembrança. Fora à pista de dança, queria fazer alguma coisa lá antes que chegasse o dia 1º de janeiro. Talvez, somente dançar. Talvez quisesse começar o ano novo dançando.

- Carol, não se preocupe mais. Vai ver os olhos não estavam lacrimejantes e foi tudo impressão minha – considerou Graça.

- Mas por que eu subi no telhado?

- Não sei, não importa. Fique tranquila, não deve ter nada nesse espaço de tempo que você precise saber. Tudo parece normal, nos trilhos, igual ao que estava antes de você cair. Está tudo bem.

Era verdade mesmo, estava tudo bem. A festa corria sem problemas, as pessoas se divertiam, até os desconhecidos. Devagar, ela passou a seguir o conselho de Graça. Dane-se o telhado e os eventuais motivos. Nada disso havia mais, nada disso tinha sentido, não existia. Danem-se as dores. Eram os primeiros momentos do ano novo.

Não podia dançar porque os machucados incomodavam, então, pôs-se a beber. Foi quando Tito voltou para perto dela. Primeiro, insistiu para levá-la ao hospital, mas ela titubeava. Consensualizaram que ela visitaria um posto de saúde tão logo despertasse no dia seguinte.

Mudaram de assunto, e mudaram de assunto outras tantas vezes, até começarem a falar de coisas íntimas e do coração. Ora, que tinha de mais? Todo mundo gosta de estar com alguém na virada do ano. Tito lhe representava um território familiar, e, como Carol se sentia solitária diante daquela confusão, baixou a guarda e permitiu que o momento a levasse a qualquer lugar. Normal.

Érico foi um dos que notaram esse movimento quando foi se despedir:

- Estou indo.

- Mas já?

- Queria me certificar de que está tudo bem... Você não lembra mesmo de ter brigado comigo? Acha que teve uma pancada na cabeça que lhe alterou a memória?

- Não lembro mesmo e não faço ideia de que motivo eu poderia ter para brigar contigo, Érico! Você é uma das pessoas que eu mais amo nesta vida, duvido que seria incapaz de me chatear em plena noite de ano novo! – e, após curta pausa, enquanto ele a olhava embasbacado, ela concluiu – E... Quer saber? Se alguma coisa aconteceu, eu esqueci. Então, esqueça também.

No rosto dele, havia um misto de espanto com melancolia.

- Carol, você esqueceu só que brigou comigo ou esqueceu mais coisas?

- Eu não sei por que fui ao telhado e não sei como caí – ela murmurou em seu ouvido, para que ninguém ouvisse.

- Acho tudo isso muito estranho. Podemos conversar outro dia?

- Claro!

Ele abraçou-a reticente, mas saiu em passos decididos.

Érico e Carolina conheceram-se no trabalho e imediatamente se identificaram um com o outro. Em pouco tempo, a amizade se estendeu para fora do escritório, e eles se encontravam após o expediente e nos finais de semana. Trocavam confidências, faziam planos e dividiam desejos, riam muito, falavam de qualquer coisa ou apenas não falavam nada. Eram “unha e carne”, como se diz.

Quando Carol e Tito terminaram seu namoro, Érico passou a se aproximar dela de um modo diferente. Brincava com a possibilidade de ficarem juntos, e Carol se assustou. Estava tudo tão certo, não havia por que mudar nada.

- Querido, nós somos amigos e só.

- Não sei por que você quer colocar essa limitação, é muito melhor se apaixonar por uma pessoa amiga! Com inimigos fica difícil!

Em certo tempo, ele interrompeu as brincadeiras com medo de perder a presença da amiga. Talvez ele mesmo não tivesse certeza do que estava fazendo, essas coisas não são simples de se calcular. Talvez fosse melhor manter tudo como estava.

Carolina voltou-se para Tito com um enorme ponto de interrogação na face. Na falta de alguém mais certeiro, dirigiu-se ao ex-namorado mesmo:

- Você me viu brigar com o Érico?

- Vi sim.

- Ai que bom, Tito, então me salva desta ignorância!

- Ué, eu vi vocês discutindo na pista de dança! Você não lembra?

- Não! Acho que bati a cabeça e perdi alguma coisa da memória recente...

- Esquecer motivos de brigar é ótimo, Carol, deixe assim.

Tito lembrou-a de que bater a cabeça é motivo importante de ir ao hospital na manhã seguinte. Então, abraçaram-se naturalmente e assim permaneceram. Normal. Exceto para Amanda, que, quando teve oportunidade, puxou a irmã caçula para longe de lá.

- O que você está fazendo?

- Nada, ué. Curtindo a minha festa.

- Com o Tito???

- Mais ou menos, né...

- O que houve com o Érico?

- Foi embora há um tempinho já...

- Vocês brigaram?

- Parece que sim, mas não lembro.

- Não lembra???

- Não – e, diante da expressão surpresa da irmã, Carolina fechou o tempo e endureceu a voz – Amanda, você quer me explicar o que está acontecendo?

- Eu não estou entendendo nada, Carol. Pensei que você tinha superado o Tito, pensei que você quisesse ficar com o Érico.

- Com o Érico?! Por que você pensaria isso?

- Porque você me falou!

Tudo mudava a cada dez minutos. O ano novo já nasceu agitado.

Carolina olhou Tito conversando com amigos a poucos metros dela. Encerraram sua relação sem gritos ou maldizeres, simplesmente o amor que eles se tinham era pouco e se acabou. Ninguém sofreu demais por isso. Sendo assim, não era estranho se aproximarem outra vez. A intensidade do sentimento, muitas vezes, é inimiga do relacionamento. Não havia nada demais em quererem ficar juntos.

- Eu te disse que queria ficar com o Érico?

- Sim, Carol, logo depois que ficaram juntos.

- Eu fiquei com o Érico??!

***
Continua...

sábado, 19 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 3)

Cansada dos preparativos, Carolina mal conseguia aproveitar a festa. Havia pequenas providências a tomar ainda, como repor a comida na mesa da ceia, receber os convidados e convidadas, recolher pratos e copos largados pela casa como se a casa fosse autolimpante. “Mas depois de meia-noite, eu não vou fazer mais nada, cada um que se vire”, preparava-se.

Ainda estava preocupada em indicar o banheiro para alguns e a geladeira para outros, quando se deu conta de que já era quase meia-noite. Foi à pista de dança, precisava fazer alguma coisa lá. Viu as pessoas dançando alegremente, algumas já embriagadas, o amigo DJ feliz por agradar. Alguns estavam com os olhos presos nos relógios.

- Daí, de repente, eu caio no chão.

- Eu hein, que história esquisita.

- Amanda... – e fez uma pausa pensativa, escolhendo palavras e recolhendo cacos de lembrança – Eu briguei com o Érico?

- Brigou?!

- Não sei, estou te perguntando!

- Ué, sei lá! Eu não vi não!

E apareceu Augusto a poucos metros dali, gritando por Amanda. Tinha acabado o papel higiênico do banheiro, e ele não sabia onde estavam os rolos.

- Irmã, a festa é minha, era para você se divertir, não trabalhar.

- Relaxa, Carol, cuida desses machucados aí, que jajá eu deixo você trabalhar sozinha de novo.

Amanda sorriu, e foi a única que ganhou um sorriso de volta de Carolina. Já se afastava em direção a Augusto quando a irmã chamou-a de volta:

- Você conhece esse moço, Augusto?

- Não conhecia, mas estou adorando conhecer! – ela respondeu, sorrindo maliciosa.

E saiu com o rapaz para abastecer o banheiro de papéis higiênicos. Que romântico.

Outra vez, Carol olhou para todos os cantos da festa em busca de explicações. Todos dançavam, bebiam, falavam, riam. Olhou para si mesma e viu cortes e hematomas. Sentia as dores da queda mais do que nunca. Foi quando seu ex-namorado se aproximou:

- Você está bem, Carol?

- Acho que sim – ela já não confiava nele o bastante para dizer que não se lembrava do que tinha acontecido.

- Você deveria ir ao hospital – ele aconselhou – Foi uma queda feia, poderiam ter acontecido coisas muito mais graves! Precisa ver se está tudo bem por dentro, se não quebrou nada, essas coisas. Posso te levar, se quiser...

O pânico de não lembrar o que tinha acontecido tinha sido desproporcional à necessidade de verificar em exames se estava tudo bem! Carolina estava prestes a cogitar ir ao hospital com Tito, quando Graça, do alto de seus oito meses de gravidez, veio se despedir.

- Você está bem, amiga?

- Estou, mas está doendo um pouquinho...

- Fiquei preocupada quando caiu, o que houve?

- Mulher, eu não sei. Quando me dei conta, estava no chão.

- Mas por que você subiu ao telhado?

- Então, eu... Eu acho que queria rezar. Não sei bem.

- Você passou por mim como uma flecha, acho que estava indo para lá. Era um pouquinho antes de meia-noite.

- Onde você me viu passando como uma flecha?

- Perto da pista de dança.

Havia umas vinte pessoas dançando, quase todas de copo na mão. A barriga pesava, e Graça afastou-se da pista para olhar de fora. Respirava de plenos pulmões e sorria pela alegria que aquela reunião de pessoas proporcionava: a festa estava mesmo ótima.

 Foi quando Carolina passou por ela, a passos firmes, rápidos e ríspidos, na direção do quartinho dos fundos. Talvez corresse apenas para ir a um banheiro. Teria certeza disso não fossem os olhos lacrimejantes da anfitriã.

- Eu estava chorando?

- Não, mas os olhos estavam úmidos.

***
Continua...

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 2)

- Carol... Desculpe, sua irmã me pediu pra trazer isto.

O rapaz de azul trazia dois sacos plásticos cheios de gelo. Levou alguns segundos para ela entender a função que tais objetos deveriam cumprir naquele momento, mas quando se deu conta, as dores do corpo começaram a esmurrá-la de dentro pra fora.

Ainda um pouco atordoada e sem condições de assimilar informações complexas ou embaçadas, Carolina deixou Érico e saiu caminhando devagar, levando na mão os sacos com gelo. Sentou-se e não sabia se doíam mais os ferimentos ou o desespero de não saber o que houve.

Alguns cantos do corpo latejavam sem apresentar marca alguma. Outros, ela reparou melhor ao sentar, tinham arranhões feios, feridas abertas. Estas são visíveis, você as limpa e trata delas. Passa o tempo, elas cicatrizam, somem, e você observa aquela evolução, aquele processo todo até que a marca desapareça de vez. Até que não sobre nadica de nada pra contar a história do tombo.

As dores que você sente mas não enxerga são as piores. Como algumas das dores que resultaram daquela queda: doem horrores, limitam seus movimentos, geram comportamento autoprotetivo (porque as pessoas não veem marca nenhuma, e talvez, inadvertidamente, toquem no lugar errado). Mas não deixam ferimentos expostos, e fica difícil saber o que está acontecendo ali - lesões camufladas, que podem piorar por não terem sido adequadamente tratadas. Não saber dá medo. A gente se sente impotente e vulnerável diante de algo que a gente nem vê. As feridas que você não enxerga são as piores.

Carolina estava com a cabeça longe, mas interrompeu os devaneios quando notou que o rapaz continuava parado ao seu lado, observando-a.

- De novo você. Por que está me ajudando?

- Porque sua irmã pediu.

- Cadê ela?

- Está na cozinha, repondo a comida da ceia. Muita gente ainda não comeu.

- Ela não devia estar fazendo isso, a casa é minha.

- Mas você se machucou e ela pediu pra eu te trazer gelo, que ela cuida das coisas.

- Quem é você, afinal?

- Eu sou o Augusto. Não se preocupe, não vou contar a ninguém que te vi cair.

O rapaz quis ser irreverente, mas a brincadeira não foi bem-recebida. Carolina nem sorriu, somente desviou o olhar e passou a reparar na própria festa. A presença volumosa de desconhecidos em sua casa tinha sido fator de estresse desde antes de a festa começar – ela não esperava por boa parte deles. Olhava firme a pista de dança improvisada no quintal, via os movimentos e na alegria daquelas pessoas que ali dançavam. Como foi que todas aquelas pessoas estranhas foram parar lá?

Havia muito o que fazer. Era para ser festa pequena, mas tanta gente estava perdida na solidão daquele fim de ano no asfalto, que Carolina precisou ampliar a ideia de festa íntima para caberem as demais almas ansiosas por confraternizar-se com alguém na noite de ano novo. A quantidade de trabalho triplicou proporcionalmente suas preocupações e seu mau humor

- Mulher, se é pra você ficar desse jeito, esquece essa festa e a gente caça o que fazer – recomendava Amanda, sua irmã.

Agora não tinha como voltar atrás. Algumas pessoas já tinham até lhe deixado o dinheiro para contribuir com as compras de bebida e comida. Um amigo seria DJ. A pista de dança não contaria com caixas de som potentes, mas isso não inviabilizaria a diversão. Precisaria arrumar prato pra tudo aquilo de gente, não tem como comer ceia de ano novo no guardanapo.

Na grande noite, chegaram muitos amigos de amigos de alguém que ela conhecia, e ela temeu não haver comida e bebida suficientes. Talvez Augusto fosse um desses. Talvez tivesse notado o quanto ela estava irritada antes de cair do telhado.

Mas o que tinha ido fazer no telhado mesmo?!

- E eu sei lá o que você foi fazer no telhado, maluca – disse a irmã – Você estava meio doida mesmo, deve ter ido ficar longe da bagunça. Jura que não lembra?

- Juro.

- E sua lembrança termina onde?

***
Continua...

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 1)




Cabrum! Puf, puf, tum!

A mulher caiu de cima do telhado, logo após a virada do ano. Nem todos os convidados perceberam, havia o som dos fogos de artifício, que causavam ruídos bem mais potentes, e também havia gritos comemorativos, garrafas de espumante sendo estouradas, votos de felicidades feitos aos berros. Abraços eram distribuídos indiscriminadamente, e ela estava ali no chão, atordoada, os olhos um pouco zonzos, sem sentir as feridas que a queda provavelmente lhe causara. Como que anestesiada, como que procurando entender o que tinha acontecido.

Quem primeiro se aproximou foi um estranho, vestido de azul. Pareceu preocupado com o que viu:

- Você está bem? Quer ajuda, precisa ir pra um hospital?

- Quem é você?

- Eu tô aqui na festa também. Você quer ajuda?

- Tem muita gente nesta festa que eu não conheço. Ano que vem vou convidar só os meus amigos.

Tentou levantar-se sozinha, estava um pouco embaraçada pela situação. O rapaz não se intimidou pela grosseria e tentou ajudá-la. Ela aceitou o braço, apoiou-se para subir, e então, percebeu que mais pessoas começaram a se aproximar, algumas corriam até ela. Eram amigos.

- O que aconteceu?

- Ela caiu.

- Você está bem?

- O que houve?

- Onde você estava?

- Caiu de onde?

- O que você estava fazendo no telhado?

- Feliz ano novo, Carol!

Aquele ajuntamento de gente a fez sentir ainda mais atordoada. Olhava ao redor, via pessoas de caras misturadas, não conseguia um foco: todo mundo estava um pouco confundido nos seus olhos. Dava pra ver que havia conhecidos naquela pequena multidão, mas havia também uma porção de curiosos que ela nunca tinha visto.

- Eu estou bem gente, tá, chega.

Foi obrigada a abraçar todo mundo de feliz ano novo. Não sabia que cargas d’água fazia no telhado. Não lembrava como foi parar lá, não lembrava a queda, só percebeu quando já tinha se chocado violentamente contra o chão. Agora, temia ter quebrado alguma coisa. Uma costela, um deslocamento de qualquer coisa. As dores começavam a se mostrar.

- Feliz ano novo, linda.

Reconheceu o rosto sorridente do amigo. Como se tivesse encontrado uma referência de quem era ela mesma, abraçou-o forte.

- Por favor, me perdoe! – ele pediu, docemente.

- Foi você que me jogou do telhado?

- Ahn? Não!

- Por que está me pedindo perdão?

- Porque você tem toda razão, eu fui ridículo. Foi uma tentativa de autoboicote, sei lá...

- O que você fez, criatura?

Érico afastou-se um passo para trás e olhou Carolina desconfiado. Não encontrou nada em sua expressão que lhe desse pistas de para onde aquela conversa iria.

- Carolina, você está brincando comigo?

Ela não sabia de que ele estava falando. Teria feito alguma coisa má que ela nem notara? Ou será que a queda a fez bater com a cabeça e então perdera a memória?

Ele também não entendia nada.

- Você está querendo dizer que está tudo passado e esquecido?

- Eu estou dizendo que não estou braba com você!

- Então me perdoou?

- De quê, criatura?

Nada fazia sentido.

***
Continua...

domingo, 15 de novembro de 2015

Mortal

Se a sua solução
Para ser imortal
For mais moral
Mais amarras
Vergonha na cara
Vergonha de tudo
Patrulha
Fechar os olhos
Fechar o colo
Pra todo mundo

Eu prefiro ser
Insolúvel

Eu prefiro ser
Só humana mesmo.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Greve vitoriosa

Aqui não há uma análise política. Há palavras humanas sobre uma ação humana.
***

Sempre vou me lembrar do Antônio Cândido dizendo: toda greve é vitoriosa, pela mobilização e pela reflexão que possibilita. Eu era estudante da USP e aquela foi minha primeira greve.

Quinze anos e algumas greves depois, eu continuo aprendendo o sentido daquela frase. Foram vinte e nove dias intensos, preenchidos por discussões acaloradas nas escolas, no comando de greve, nos corredores, pelo telefone (especialmente pelo tal do whatsapp). Preenchidos por sangue, suor e lágrimas, literalmente. Preenchidos por muita paixão, confiança, fé nos ideais, solidariedade, medo, coragem, tudo se alternando ao mesmo tempo agora. As frustrações que vinham de conversas com colegas fura-greve. A vontade de vencer que essas mesmas conversas despertavam, porque se tudo fosse fácil, ninguém precisava lutar. É por isso que lutadores e lutadoras são imprescindíveis: não é fácil, mas alguém tem que fazer. Se não, o mundo não muda.

Guardarei muitas imagens desta greve na minha mente para sempre. A violência policial contra nós no Eixão Sul, quando já nos preparávamos para deixar o local – aquela covardia que marcou a mim menos do que a companheiros(as) que foram presos(as) e agredidos(as), e certamente marcou a história do Distrito Federal. A assembleia que sucedeu esse episódio, com quase 15 mil professores e professoras na Praça do Buriti. Um líder da oposição entrando na escola empunhando a bandeira do Sinpro. A bandeira vermelha do Sinpro tremulando desde dentro da sala da Presidência da Câmara. O baralho feito em cartões de visita para suportar as horas de ocupação. O carro de som em Santa Maria, dirigido por um motorista que não conhecia a cidade e, pensando estar na contramão, disparou na rua, deixando os(as) manifestantes para trás. As professoras grevistas que, ao visitar um Jardim da Infância para convencer o grupo de professores(as) a entrarem em greve, assumiram uma turma de pequenos para que seu professor pudesse ir para a sala de coordenação nos ouvir. A música do faraó simbolizando os desmandos do GDF e da Justiça, mas animando a tarde dos guerreiros e guerreiras que fizeram greve de fome.

Tenho orgulho de ter participado dessa história. Vitórias foram construídas, outras ficaram por construir. E eu não tenho dúvida que o grau de mobilização e de reflexão proporcionado por esta greve não só fazem jus às sábias palavras de Antônio Cândido, como abrem caminho para completá-las: o carinho e os abraços que há entre as pessoas enlaça a luta perfeitamente bem, e faz com que se desfaça no ar a dureza das pedras que nos atiram. É bom demais trabalhar com essa categoria!

Rollemberg que se cuide. Já estamos prontos e prontas para a próxima.


quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Dois anos de Brasília

Há um ano, eu completava um ano de Brasília. Até então, eu não estava entendendo bem, mas nunca deixei de confiar nas minhas escolhas. A mudança para o cerrado foi, talvez, um pouco brusca, motivações meio nubladas, mas alguma coisa aqui tinha sobrado pra eu fazer desde que parti, naquele fevereiro de 2011, depois de insuficientes dez meses. Há um ano, eu não entendia bem.

"Brasília é viva como os seres que têm vida", eu escrevi num poema muitos anos antes de sonhar que moraria na capital federal um dia. E ela segue me dando motivos para lhe escrever mais poemas e canções. A inspiração que eu colho aqui floresce até sem chuva. Precisa só destas cores lindas, do traço do arquiteto, deste céu absurdo e, principalmente, das pessoas maravilhosas que esta cidade jogou irreversivelmente na minha vida. Nunca terei agradecido o suficiente...

Mesmo com os tempos difíceis que temos vivido, fico tranquila porque sei que aqui também floresce inspiração para a luta. E hoje eu tenho mais que certeza: tenho amor. A ponto de usar este post celebrativo para agradecer até a JK por aquela ideia maluca de fazer este lugar existir. Mas agradecer principalmente a vocês, gente que colore, umedece e faz tanto sentido na minha história. Ah! E ao querido Niemeyer, por tudo, mas especialmente pela Torre de TV Digital. Nunca terei agradecido o suficiente, mesmo.



segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Grávida

Certo dia, eu acordei grávida. Não sei o que aconteceu, eu não estava assim ao dormir. E dormi sozinha, sem ninguém, sequer acredito no Espírito Santo (somente no santo espírito que tagarela embriagado comigo depois de algumas doses sem jeito).

De repente estava assim, grávida, e não sabia pra onde correr, nem pra quem contar. Tanta gente com quem posso contar e tão pouca gente pra quem eu posso contar. E contei pra mim mesma para ver se eu acreditava, mas acho que não.

Saí grávida, sentindo enjoos e medo. Cheguei à aula, a professora me estranhou. Viu-me triste e quis me abraçar, mas não deixei. Corri trabalhar, mas não queria trabalho, queria pranto, estava confusa e apavorada. Parei de fumar, e só fui almoçar porque eu já não era uma só. Passei no banco, no supermercado, na farmácia. Foram todos gentis, mas pensavam que estava tudo normal. Estava não. Eu estava grávida.

Em casa não chorei mais, controlei meu medo e meu mistério para poder encarar as mulheres estéreis de quem descendo. Elas me sorriam - um pouco encantadas, um pouco com dó. Eu jamais consegui corresponder adequadamente o cuidado que elas têm por mim, e agora, que estava grávida, elas acreditavam mais do que nunca que sou especial.

Fui dormir quase conformada, lembro do suspiro profundo que precedeu minhas tentativas em vão de pregar os olhos. A barriga já se mexia, alguém ali já saltitava, eu não encontrava posição, sentia todo o peso dentro de mim. Quis chorar e senti culpa - ora, que criatura pode chorar para transbordar um filho? Tentava lembrar, mas minha memória fora engolida pela barriga. Aquela pessoa que eu era ficava distante, como vista bem pequena no afastar-se de uma estrada, e eu não tinha outra saída se não fazer com que se reconciliassem meu desejo e meu destino.

Dormi porque não consegui mais não dormir. E quando despertei, a cama estava repleta de cores estranhas, mas vibrantes. Alguma coisa havia saído do meu ventre, mas eu não encontrei.

Tropecei numa clave de sol, andei pela casa à procura do meu filho, e estava tão leve que tinha que me esforçar para fincar os pés no chão. Procurei por todo o canto e aquelas cores ainda caíam de dentro de mim, como fossem o que sobrou daquela gravidez não planejada.

Aos poucos, o chão era feito de puras cores. Tanto, que a casa parecia outra agora. Era uma casa mais bonita, e parecia fazer mais sentido que antes. A doutora que cuida da minha alma me recomendou um pouco de repouso, e quando abri a janela, lá estavam todos os sonhos que eu tinha esquecido. Havia um vasto horizonte, barulho de água corrente, raios de sol e uma paz que eu nunca tinha visto, só imaginado. O céu estava aberto, e havia música tentando entrar em casa.

Eram duas músicas, na verdade. Deixei que entrassem e elas me fizeram companhia, disseram que logo viria uma terceira canção e que, só então, poderiam agraciar meu bebê.

Acabei lhes contando que eu não sabia aonde o bebê foi parar. Elas riram de mim: mãe de primeira viagem. Dentro de mim, já não havia um filho, mas sim, alguma coisa forte e definitiva que pulsava alegremente, sem se preocupar em acertar o compasso.

Nunca encontrei o tal bebê. Mas as cores ficaram pelo chão, a janela permaneceu aberta e, quando chegou a terceira música, elas me tranquilizaram, assegurando que esse tipo de parto é assim mesmo.

Até hoje, eu não sei bem o que foi que aconteceu naquele dia. Mas eu nunca mais fui a mesma. Nem minha casa. Nem meu coração.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Pagode Caboclo

Era um daqueles domingos infinitos. Almoça em casa, assa uma carne, ouve uma música, toma uma cerveja. Começo da noite, parte para o Grao, para mais uma estrelada noite de sambas e choros. Ali está tudo o que eu preciso para começar a semana bem.

E então, chega o Jacaré, com Serginho e Nelson. Puxei Aline e lá fomos parar: bora continuar o samba do Grao em casa. Ói, Ale, tenho um samba, termina ele! "Antes da fama, ele morava no Novo Gama...". Um baita samba. Não sei como o Jacaré consegue essas coisas, ele compõe como se estivesse batendo papo. As palavras chegam já embrulhadas nas notas e com o pandeiro tinindo. A mim, coube terminar aquela beleza. Só sei que foi assim.

O tal do cara largou o Novo Gama e o Varjão e todo o circuito que costumava cumprir porque se apaixonou pela filha de um empresário. Só pode ser isso. E nós?! Nós já nem o vemos mais, sei lá dele.

E aí está o Pagode Caboclo, selecionada entre quase 300 composições para a segunda fase do Festival da Rádio Nacional, com outras 49 músicas. Eu e o Jacaré com o coração batendo em baticumbum, felizes da vida por estar entre um bocado de gente que a gente admira. Estamos lá nós e a inspiração que este Distrito Federal trouxe pras nossas vidas. Por essas e outras, a gente só tem que agradecer a este adorável quadradinho.

Jaca e eu

PAGODE CABOCLO

Antes da fama
Ele morava no Novo Gama
E namorava uma menina do Varjão
Batia couro numa terreira na Ceilândia
Levava doce pra festa de Cosme e Damião

Em Planaltina, sempre foi considerado
E respeitado até em São Sebastião
Jogava bola no campeão do Colorado
Até que um dia uma flor do cerrado
Lhe roubou o coração

Ela era filha
D'um poderoso senhor empresário
Dizem que até ganhou de aniversário
Uma fazenda lá no Jalapão

O pai da moça
Não quis saber de bagunça na casa
Disse pro cabra: ou se arranja ou vaza
Não quero genro de calo na mão

E hoje em dia ele nem dá bom dia
Pros mano de cá
Não vai pra terreira, nem pra cachoeira, 
Não faz mais fogueira, não vem mais jogar

Só vive engomado, atolado em trabalho
Pra impressionar
Sumiu do churrasco, do balacobaco,
Esqueceu o cavaco no Paranoá.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

De ressaca

Adoro esta crônica do Luis Fernando Veríssimo. Conheci com o maravilhoso MPB-4 "interpretando" um trecho dela num show.
***


Hoje, existem pílulas milagrosas, mas eu ainda sou do tempo das grandes ressacas. As bebedeiras de antigamente eram mais dignas, porque você as tomava sabendo que no dia seguinte estaria no inferno. Além de saúde era preciso coragem. As novas gerações não conhecem ressaca, o que talvez explique a falência dos velhos valores. A ressaca era a prova de que a retribuição divina existe e que nenhum prazer ficará sem castigo.

Cada porre era um desafio ao céu e às suas feras. E elas vinham: Náusea, Azia, Dor de Cabeça, Dúvidas Existenciais - as golfadas. Hoje, as bebedeiras não têm a mesma grandeza. São inconseqüentes, literalmente. Não é que eu fosse um bêbado, mas me lembro de todos os sábados de minha adolescência como uma luta desigual entre a cuba-libre e o meu instinto de autopreservação. A cuba-libre ganhava sempre. Já dos domingos me lembro de muito pouco, salvo a tontura e o desejo de morte.

Jurava que nunca mais ia beber, mas, antes dos trinta, "nunca mais" dura pouco. Ou então o próximo sábado custava tanto a chegar que parecia mesmo uma eternidade. Não sei o que a cuba-libre fez com meu organismo, mas até hoje quando vejo uma garrafa de rum os dedos do meu pé encolhem.

Tentava-se de tudo para evitar a ressaca. Eu preferia um Alka-Seltzer e duas aspirinas antes de dormir. Mas no estado em que chegava nem sempre conseguia completar a operação. Às vezes dissolvia as aspirinas num copo de água, engolia o Alka-Seltzer e ia borbulhando para a cama, quando encontrava a cama. Mas os métodos variavam.

Por exemplo:

Um cálice de azeite antes de começar a beber - O estômago se revoltava, você ficava doente e desistia de beber.

Tomar um copo de água entre cada copo de bebida - O difícil era manter a regularidade. A certa altura, você começava a misturar a água com a bebida, e em proporções cada vez menores. Depois, passava a pedir um copo de outra bebida entre cada copo de bebida.

Suco de tomate, limão, molho inglês, sal e pimenta - Para ser tomado no dia seguinte, de jejum. Adicionando vodca ficava um bloody-mary, mas isto era para mais tarde um pouco.

Sumo de uma batata, sementes de girassol e folhas de gelatina verde dissolvidas em querosene - Misturava-se tudo num prato pirex forrado com velhos cartões do sabonete Eucalol. Embebia-se um algodão na testa e deitava-se com os pés na direção da ilha de Páscoa. Ficava-se imóvel durante três dias, no fim dos quais o tempo já teria curado a ressaca de qualquer maneira.

Uma cerveja bem gelada na hora de acordar - Por alguma razão o método mais popular.

Canja - Acreditava-se que uma boa canja de galinha de madrugada resolveria qualquer problema. Era preciso especificar que a canja era para tomar. No entanto, muitos mergulhavam o rosto no prato e tinham de ser socorridos às pressas antes do afogamento.

Minha experiência maior era com a cuba-libre, mas conheço outros tipos de ressaca, pelo menos de ouvir falar. Você sabia que o uísque escocês que tomara na noite anterior era paraguaio quando acordava se sentindo como uma harpa guarani. Quando a bebedeira com uísque falsificado era muito grande, você acordava se sentindo como uma harpa guarani e no depósito de instrumentos da boate Catito's em Assunção.

A pior ressaca era de gim. Na manhã seguinte, você não conseguia abrir os dois olhos ao mesmo tempo. Abria um e quando abria o outro, o primeiro se fechava. Ficava com o ouvido tão aguçado que ouvia até os sinos da catedral de São Pedro, em Roma.

Ressaca de martini doce: você ia se levantar da cama e escorria para o chão como óleo. Pior é que você chamava a sua mãe, ela entrava correndo no quarto, escorregava em você e deslocava a bacia.

Ressaca de vinho. Pior era a sede. Você se arrastava até a cozinha, tentava alcançar a garrafa de água e puxava todo o conteúdo da geladeira em cima de você. Era descoberto na manhã seguinte imobilizado por hortigranjeiros e laticínios e mastigando um chuchu para alcançar a umidade. Era deserdado na hora.

Ressaca de cachaça. Você acordava sem saber como, de pé num canto do quarto. Levava meia hora para chegar até a cama porque se esquecera como se caminhava: era pé ante pé ou mão ante mão? Quando conseguia se deitar, tinha a sensação que deixara as duas orelhas e uma clavícula no canto. Olhava para cima e via que aquela mancha com uma forma vagamente humana no teto finalmente se definira. Era o Peter Pan e estava piscando para você.

Ressaca de licor de ovos. Um dos poucos casos em que a lei brasileira permite a eutanásia.

Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido. Tinha, de repente, resposta para todos os enigmas do universo. A chave de tudo estava no seu cérebro. Devia ser por isso que aqueles homenzinhos estavam tentando arrombar a sua caixa craniana. Você sabia que era alucinação, mas por via das dúvidas, quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama ligeiro.

Hoje não existe mais isto. As pessoas bebem, bebem e não acontece nada. No dia seguinte estão saudáveis, bem-dispostas e fazem até piadas a respeito.

De vez em quando alguns dos nossos se encontram e se saúdam em silêncio. Somos como veteranos de velhas guerras lembrando os companheiros caídos e o nosso heroísmo anônimo.

Estivemos no inferno e voltamos, inteiros.

Um brinde. E um Engov.

domingo, 19 de julho de 2015

O amor em tempos sem Gabo

Eu tinha andado por Cartagena antes, de mãos dadas com Gabriel García Márquez, acompanhando com os olhos e o palpitar do coração a história de Florentino e Fermina, mas então eram outros tempos. A cidade hoje está muito mudada.

O mar continua lá, mas as águas são outras. Jogar-se nelas permite uma navegação tão sem fim, que dá medo de não voltar. Não medo. Mais aquele frio na barriga. O receio sedutor do que é desconhecido e irremediável. O azul está aturdido pelo cinza dos dias nublados de inverno, mas acaba que me faz lembrar o verde escuro de Copacabana, ou, com esforço, até o verde-marrom dos mares da minha infância. Mas o infinito do mar é sempre o mesmo, e é assim pra mim como foi pra Florentino também. E há de ser para muito mais gente que vai vir navegar em outras águas do mesmo mar.

Embriagada de poesia e amor pelo ar que um dia Gabo respirou, é como se não fosse permitido sair sem escrever. Escrever é sentir tanto que precisa transbordar pelas pontas dos dedos num teclado, para não explodir. E o que eu sinto é tão igual, mas as águas são outras. Passou muito tempo. Mas nem tudo muda tanto assim. "A sabedoria nos chega quando já não serve para nada". Mas ela fica aí, servindo para quem vem depois e a apanha no ar.


"Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia. Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada". 

(Gabriel García Márquez - O amor nos tempos do cólera)

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Reativa

Eu lembro quando eu era adolescente e morava na Vila Formosa, atrás de um clube. O quarto da minha mãe tinha uma sacada e dava para esse clube, e a melhor parte disso era que não havia prédios ou outro empecilho que me impedisse de olhar o mais longe que minha vista pudesse alcançar. Se prestasse bem atenção, dava pra ver as antenas de TV piscando lá bem longe, na Avenida Paulista.

Gostava de fazer isso porque, como já lhes confessei, me agrada a sensação de ser pequena. Eu me atirava no azul profundo do céu, e era melhor ainda quando era o azul escuro da noite. Era um mergulho, eu nem sei aonde eu ia parar, mas a sensação era boa. A vida toda pela frente. O horizonte todo pra ser mergulhado. O céu todinho pra se atirar.

Ontem, eu sentei diante do mar num dia chuvoso. O céu, entre o branco e o cinza. O mar verde verde, aquele verde escuro que me fez lembrar o escuro do céu visto da sacada do quarto da minha mãe, tantos anos atrás, uma outra eu. Você olha até o fim e não vê fim. Lá no fundo, caía um lindo temporal, que não ofuscava a beleza de tudo e não metia medo. A sensação era plena de paz. Aquela imensidão ali, olhando pra mim calmamente. Não lembro quando tinha sido a última vez que eu mergulhei.

Ainda estou embriagada por aquela imensidão. A mim, ela diz: calma. Quem tem uma certeza bonita como a eternidade, não se prende ao instante. A gente não tem, mas também devia fazer isso. Pra ser mais feliz. Pra ser mais forte.

A vida ainda é longa, o horizonte ainda convida para o mergulho, o céu continua profundo. A vontade de se atirar reaparece - ou é reativada. O coração transborda tão infinito quanto tudo isso. Só pode ser de amor.

Os tempos são turbulentos. Mas eu não. E se eu puder oferecer minha paz para vencer a guerra, meus braços já estão abertos.



quinta-feira, 18 de junho de 2015

A morte do celular

Meu telefone móvel veio a falecer e levou consigo minhas memórias. Uma meia-dúzia de fotos dessas que a gente tira quando o superego já está altamente flexibilizado. Aquelas risadas exageradas, que, depois, você vai descobrir que tinham motivo torpe. Umas que você estava guardando para sacanear alguém na hora certa.

Também, uma lista de músicas favoritas de Chico Buarque. Como eu não brincaria com poesia, cada esboço de verso que ali estava já tinha morada fixa, no papel ou no computador: eu jamais os abandonaria num veículo tão pouco confiável como o celular.

E claro: toda a minha agenda, que teimo em recompor a cada troca de aparelho. Não tem problema, chance de atualizar o círculo de amizades, quem foi embora, quem chegou... É interessante notar os telefones que se tonaram imprescindíveis desde a última atualização da agenda, e aqueles que você nem utiliza mais. Parece que foi de repente. Mas foi não.

A série de exercícios da fonoterapia ("você tem algum problema com celulares, não é?" - observou sabiamente minha querida fono). Aqueles convites para festas e sambas que eu guardava para ver depois - quase todos vencidos, mas com valor sentimental em voga ainda. Os memes que eu guardava na expectativa de serem oportunos.

Aquela conversa gravada no zap, nunca apagada porque você gostava de sentir o frio na barriga que ela provocava. O sorriso bobo guardadinho num diálogo. A conta do cara que você precisa pagar; a gravação original do "Pagode Caboclo", em meio às risadas das felizes testemunhas daquela criação pelos dedos do outro amigo.

Não adianta chorar, lamentar. É bola pra frente. Superar as irreparáveis perdas, despedir-se das velhas memórias e comprar um outro aparelho para gravar as memórias novas. E deixá-las ali, charmosamente suscetíveis a desaparecer a qualquer momento. Porque memória não foi feita pra ser física. Eu gosto do gostinho da nostalgia impresso no desbotado da foto mental.

SAMBRA - Apenas uma opinião

O espetáculo SAMBRA, protagonizado por Diogo Nogueira, vem percorrendo o Brasil para saudar cem anos de história do samba - desde o registro de "Pelo Telephone" por Donga e Mauro de Almeida. A iniciativa é de se festejar, afinal, exaltar a cultura popular brasileira nunca é demais, e a história do samba se confunde mesmo com a própria história do país.

O musical é muito bem produzido no que se refere à parte artística: os números são brilhantemente executados e o repertório é uma maravilha. Sem contar que ver aqueles personagens encarnados chega a emocionar: Sinhô, Ismael Silva, Donga, Tia Ciata... Todo mundo lá, diante de nossos olhos, cantando e contando história.



Porém, creio que há alguns problemas importantes exatamente na história que ali está contada. Escrevo estas linhas a título de contribuição a quem, assim como eu, tem gosto e amor por conhecer essa história.

O mais grave desses problemas, na minha opinião, é o esquecimento ao qual Carmen Miranda praticamente ficou relegada. Em dado momento da história, uma mulher vestida em clara referência a ela aparece cantando "O que é que a baiana tem?". Isso se dá no momento do show em que se evocam as cantoras do rádio, e o número é apresentado como "samba de Dorival Caymmi". O nome de Carmen sequer é mencionado: o locutor de rádio, que parece representar o famoso César Ladeira, anuncia a "Pequena Notável".

Diante de personagens a que o texto do espetáculo faz referência integral, como aqueles que mencionei acima, Carmen Miranda, a mais importante intérprete de samba dos anos 1930, foi escondida. Talvez haja uma justificativa da produção do musical para isso. Mas o fato é que uma estrela da grandeza de Carmen Miranda não pode ficar tão minimizada quando o tema é, justamente, a história da música que ela contribuiu muito para consagrar.

Alguns não gostam de Carmen pela opção que ela fez, a certa altura de sua carreira, de ir trabalhar nos EUA (já falei sobre isso em outro artigo). Alguns, como Noel Rosa, não gostam dela por rejeitar seu modo de cantar. Mas nenhum desses pode desabonar a importância que ela teve no momento em que o samba consolidou-se como gênero musical genuinamente brasileiro.

A referência que o espetáculo fez a Mário Reis também se apresentou bastante equivocada. Diogo, ao interpretá-lo cantando "Jura", de Sinhô, um de seus grandes sucessos, lembra muito mais o canto de Francisco Alves que de Mário Reis. Parece preciosismo, mas não é não: para se contar a história do samba, é preciso lembrar que, com ele, nasceu um modo brasileiro de cantar, no qual Mário Reis é pioneiro. Diz-se que foi ele quem inspirou João Gilberto. Sabe-se que ele inspira Chico Buarque até hoje. Portanto, expor Mário Reis executando o canto "de vozeirão" a la Francisco Alves, também se configura como erro importante.

Algumas ausências foram muito sentidas, dentre as quais eu destacaria Assis Valente, Aracy de Almeida, Clementina de Jesus e Adoniram Barbosa. Claro que, num espetáculo que tem três horas de duração, não cabe um século de personagens, necessariamente precisam-se fazer escolhas. Mas, aqui, minha crítica é que deixar esses imensos e intensos personagens de fora nunca seria uma boa escolha.

Se Bossa Nova é samba ou não, essa é uma polêmica que nunca terá fim. Ela aparece no show sob os dedos de Diogo Nogueira interpretando João Gilberto. Entretanto, resumir os anos 1960/1970 à Bossa Nova e os sambas de protesto de Chico Buarque não é nada razoável. Ficam escamoteadas, inclusive as iniciativas de João Nogueira, pai de Diogo, em defesa do Carnaval de rua e do próprio samba, que, naquele momento, queria reviver e sobreviver às investidas da indústria fonográfica estrangeira. Aliás, João e Clara Nunes foram lembrados no espetáculo no trecho dedicado à memória de sambistas eternos, que jamais serão esquecidos pelo público. Foram ambos apresentados por Diogo Nogueira, respectivamente, como seu pai e sua madrinha. Porém, mais do que isso, nos tais anos 1960/1970, eles tiveram papel fundamental na evolução do samba. João, pelas razões citadas e pelo seu modo particular de cantar fraseado, dando continuidade aos artistas do canto sincopado. Clara, bem como Clementina de Jesus, exalta e valoriza a herança africana na constituição do samba: a religiosidade, as temáticas, o batuque. Expressava uma profunda brasilidade no repertório e no figurino - como, em alguma medida, Carmen Miranda fizera décadas antes.


O espetáculo marca corretamente dois pontos de virada importantíssimos na história do samba, compreendendo, inclusive, invenção e ressignificação de instrumentos: a turma do Largo do Estácio, no fim dos anos 1920; e o Cacique de Ramos, nos anos 1980. Também marca a importância do Teatro de Revista e da era do rádio para a popularização do samba.

Mas, para mim, nada foi mais emocionante do que ver Noel Rosa e Martinho da Vila conversando num banco de praça em Vila Isabel (sei que eu sou suspeita, mas e daí? rsrs). "Nosso tempo é o da poesia, Noel", retruca Martinho quando o Poeta da Vila assombra-se com o diálogo entre dois tempos históricos.

A experiência que o show propõe é interessante, certamente. Mais precisão histórica e inclusão de personagens e marcas fundamentais enriqueceriam decisivamente essa experiência, que, afinal, conta a história de todos e todas nós.

terça-feira, 16 de junho de 2015

O Plano Distrital de Educação e o obscurantismo autoritário e desqualificado na CLDF

Hoje tivemos mais um triste episódio que demonstra a total desqualificação dos setores conservadores e da direita nos parlamentos deste país. A exibição de luxo dessa boçalidade se deu em meio a uma importante vitória do Sinpro-DF e demais entidades e movimentos integrantes do Fórum Distrital de Educação: a aprovação do PDE (Plano Distrital de Educação).

Ainda pela manhã, em reunião da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), já se percebiam cartazes e intervenções contra a "ideologia de gênero".

[Colchetes: eu não sei que diacho é isso. Nunca vi nenhuma militante, teórica, estudiosa, pesquisadora, dirigente feminista ou do movimento LGBT se referir a uma "ideologia de gênero". Aliás, eu sempre fui a primeira a chamar a atenção de minhas próprias companheiras feministas quanto a esse conceito: gente, gênero não é sujeito político. Não existem plenária de gênero, política de gênero, violência de gênero. Existem plenária de mulheres, políticas para as mulheres, violência contra as mulheres. Não podemos nós esconder as sujeitas dessas situações todas. Gênero é recorte, é categoria de análise, é um conceito útil para compreender a construção social do feminino e do masculino.]

Mas esse pessoal das trevas inventou a tal coisa que é a ideologia de gênero. Enfim.

E então, líderes de igrejas cristãs (não sei quais, não entendo disso) no parlamento passaram a criticar o PDE afirmando que este fazia apologia à tal da "ideologia de gênero". Os cartazes das pessoas traziam dizeres em defesa da família tradicional e outras bobagens que elas se recusam a entender que faz parte da crença religiosa delas, e elas não podem impor a crença religiosa delas a todo mundo, que isso é feio.

Se você perguntasse para essas pessoas onde no projeto está a defesa da tal da "ideologia de gênero", a pessoa:

a) Fazia cara de paisagem;
b) Juntava meia-dúzia de palavras sem lé com cré e, no fim, não respondia;
c) Gritava, te xingava ferzomente, se retorcia.

Era óbvio que aqueles cidadãos e cidadãs não conheciam o texto ora sob apreciação. Mas, para mim, que ainda não perdi totalmente a fé na humanidade, já não era tão óbvio que seus representantes no legislativo também desconhecessem o projeto que eles mesmos estavam colocando em votação.

Em suas intervenções, deputados como Rodrigo Delmasso (PTN), Raimundo Ribeiro (PSDB) e Sandra Faraj (Solidariedade) diziam que a "ideologia de gênero" presente no PDE (???!!!!) destruiria a família; que as crianças não mais seriam educadas como meninos ou meninas, mas que decidiriam isso ao atingir a maioridade; atrocidades desse nível. Ou seja, ou esses parlamentares são mais que medíocres e limitados, e sim, bastante ignorantes mesmo; ou então, são mal intencionados, o que coloca em questão seu próprio caráter. Em qualquer das alternativas, eles não merecem os mandatos que lhes foram oferecidos.

O pobre Plano só pretendia - como vocês, pessoas capazes de juntar lé com cré, facilmente supõem - que todos os seres humanos dentro de uma escola sejam tratados com igualdade. Que se desconstruam preconceitos, discriminações e qualquer forma de opressão de alguém sobre outro alguém. Porque isso também é feio.

Mas o pessoal das trevas não admite isso. Parece que querem manter a população LGBT excluída, marginalizada, vulnerável. Não se importam com os milhares e milhares que morrem em decorrência da homofobia assassina que eles alimentam e valorizam. São cúmplices dessas mortes, e depois rezam impunemente para seu deus.

Afora as questões referentes a orientação sexual, diversidade e RECORTES de gênero; os deputados da CLDF não quiseram nem saber do Plano Distrital de Educação. Não debateram suas metas e estratégias; a oferta de vagas; a educação de jovens e adultos; a valorização dos profissionais da educação; o financiamento da educação. Mas, isso sim, retiraram toda e qualquer flexão de gênero do texto - aparentemente, há quem se incomode muito com o saudável hábito de visibilizar as mulheres nos textos políticos.

É uma gente pequena, tão pequena, mas tão pequena, que eu só posso lamentar. E festejar que, apesar de todo o obscurantismo que impediu que o texto contemplasse a diversidade presente nas nossas escolas e na nossa sociedade, nem a boçalidade desse pessoal das trevas pôde impedir que o DF tenha, agora, um plano com metas e estratégias a serem alcançadas para a Educação num prazo de dez anos.

Que venha a próxima década. A disputa pela igualdade não acabou esta tarde.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Não à truculência, ao autoritarismo e à mordaça!

Na noite de 25 de maio, em Audiência Pública na Câmara Legislativa, dirigentes do Sindicato dos Professores no DF (Sinpro-DF) foram expulsos das galerias com agressividade, o que provocou o repúdio e a retirada em bloco de todos os professores e professoras que compareceram ao evento, inclusive do dirigente sindical que compunha a mesa.

A presidenta da sessão era a deputada Sandra Faraj (Partido Solidariedade), autora do projeto então em pauta. Na ocasião, a deputada levara uma claque para aplaudi-la e saudar o projeto, ainda que boa parte daquelas pessoas tenha demonstrado total desconhecimento quanto ao conteúdo. A mesa era composta por defensores das ideias ali contempladas, com a exceção única do dirigente do Sinpro-DF, que, afinal, teve de se retirar como forma de protesto contra a agressão sofrida por seus colegas.

Partiu de Sandra Faraj a ordem para que os seguranças retirassem à força os professores do local. Para isso, ela utilizou o mesmo microfone com o qual presidiu a sessão. A atitude autoritária e truculenta da deputada representa com muita coerência o projeto que ela defende. É importante saber do que trata o PL 01/2015 para conhecer a grave ameaça à qual as escolas do Distrito Federal e do Brasil estão sujeitas, e para entender por que é fundamental mobilizar-se para defender uma educação laica, democrática e de qualidade para formar cidadãos e cidadãs.

“Escola Sem Partido”

Em primeiro lugar, é preciso revelar que o PL 01/2015 que tramita na Câmara Legislativa do DF não é exatamente de autoria de Sandra Faraj. O mesmo conteúdo tem sido apresentado em diversas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, e são todos derivados do PL 867/2015, apresentado à Câmara Federal pelo deputado Izalci (PSDB/DF). Mas também não é ele o autor original da ideia.

Os projetos exaltam as premissas da ONG “Escola Sem Partido”, dirigida pelo advogado Miguel Nagib, “mentor intelectual” da empreitada. O site da ONG apresenta artigos de figuras como Rodrigo Constantino, Olavo de Carvalho, Luís Felipe Pondé e Reinaldo de Azevedo, cuja identidade político-ideológica é reconhecida e assumida. Nagib também é articulista do Instituto Millenium, conhecido espaço de organização, articulação e elaboração da direita brasileira, que reúne as mencionadas figuras e representa interesses políticos e econômicos mais que evidentes. Entre os porta-vozes de seus ideais estão políticos de partidos como PSDB e DEM (1).

O site do Instituto traz um interessante artigo sob o título Por uma escola que promova os valores do Millenium, datado de agosto de 2009. O texto defende que as escolas promovam os princípios particulares dessa organização, como, por exemplo, a filosofia da propriedade privada e da meritocracia, que estão bem distante de serem consensos históricos e, principalmente, “apartidários”. O mesmo artigo destaca, inclusive, cinco itens que considera “deveres do professor”... Surpresa! Esses itens vêm sendo apresentado dentro dos PLs encaminhados nas casas legislativas Brasil afora.

Cai a máscara e fica nítido, então, que o projeto não é “Escola Sem Partido”, mas sim, “Escola Com O Partido Deles”.

O PL da Mordaça

Conhecendo desde já essa profunda contradição de origem, vamos examinar atentamente o texto do projeto.

O artigo 1º já anuncia o festival de horrores que se seguirá: “assegurar os princípios e diretrizes do ‘Programa Escola Sem Partido’”. Ou seja: o PL pretende estabelecer para a Educação no DF princípios e diretrizes formulados por uma ONG identificada com o Instituto Millenium.

O artigo 3º traz os “deveres do professor” que um artigo desse Instituto já antecipara há 6 anos, conforme vimos. Chama atenção o inciso V: “[o professor, o coordenador e a direção] deverá (sic) abster-se de introduzir, em disciplina obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos estudantes ou dos seus pais”. O texto proíbe, por exemplo, que um professor ou professora explique para sua turma a Teoria da Evolução de Darwin, caso haja ali um estudante cujos pais defendem o Criacionismo.

No parágrafo único do artigo 4º, o projeto determina que cartazes com os tais deveres do professor sejam afixados nas salas de aula. Mais uma violência desferida contra uma categoria que luta muito para defender a escola pública e a Educação como direito de todos e todas. A humilhação contida em tal gesto reside na afirmação implícita, que permeia todo o projeto de lei, de que professores e professoras são entes potencialmente nocivos, que exercerão seu poder sobre os estudantes para manipulá-los e impô-los suas ideias particulares. Como se não trabalhassem com conteúdos científicos. Como se sua prática cotidiana não se baseasse em premissas pedagógicas e metodológicas. Como se não vivenciassem todos os dias dezenas de violências à liberdade de ensinar, muitas vindas do próprio GDF, outras, inclusive, vindas de estudantes e outros membros da comunidade escolar.

Na justificativa do PL, Sandra Faraj afirma que a razão de ser do projeto é a necessidade de “informar” aos estudantes o direito deles de não serem “doutrinados” por seus professores. Para isso, propõe que estes sejam fiscalizados.

O PL da Mordaça em âmbito federal

No PL 867/2015, que tramita na Câmara Federal sob autoria do deputado Izalci, o desrespeito e o autoritarismo com que são tratados professores e professoras estão expostos de forma ainda mais completa.

No parágrafo 2º do artigo 3º, o nobre deputado propõe que “as escolas deverão apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estudantes material informativo que possibilite o conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados”. Isso quer dizer censura prévia de conteúdos. Anteriormente, citamos como exemplo a Teoria da Evolução. A perigosa brecha que o PL abre pode impedir os estudantes de terem acesso ao conhecimento nas mais diversas disciplinas. E se as aulas de História não puderem abordar o Holocausto? E se as aulas de Geografia não puderem discutir as crises econômicas e militares no Oriente Médio? E se Carlos Drummond de Andrade for considerado inadequado para aulas de Literatura Brasileira? Por que o deputado Izalci quer restringir o acesso de crianças e adolescentes ao conhecimento produzido ao longo da história do Brasil e da humanidade?

Entre os famigerados “deveres do professor”, o PL da Mordaça Federal traz um item a mais em relação ao projeto apresentado no DF. O inciso VI do artigo 4º ameaça responsabilizar o professor ou professora pela ação de terceiros: “[o professor] não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula”. Daí infere-se que desde um recado do Grêmio Estudantil até um debate de ideias entre alunos poderá incorrer na responsabilização do professor ou professora, caso o conteúdo do recado ou do debate não esteja de acordo com as opiniões do deputado Izalci.

Os próprios proponentes do PL assumem que a intenção de responsabilização de professores e professoras não pretende se restringir à fiscalização e à censura, o que já seria suficientemente grave. Nos textos publicados no site da ONG Escola Sem Partido, mencionam-se processos civis por danos morais e punições administrativas como forma de coagir docentes.

A gravidade da proposta é tamanha, que ela pode influenciar a proposição de projetos ainda mais terríveis. O deputado federal Rogério Marinho (PSDB/RN), por exemplo, apresentou à Câmara Federal, há poucas semanas, um PL que pretende criminalizar e colocar sob pena de reclusão o que ele classifica de “assédio ideológico”. Mais uma vez, o alvo é o Magistério.

Conclusão

Sob a falsa alegação de evitar “doutrinação ideológica” nas escolas, os PLs de Sandra Faraj e Izalci pretendem, na verdade, estabelecer uma mordaça para professores(as) e uma rédea para estudantes, a fim de, justamente, promover sua própria doutrinação. O projeto é uma nítida afronta à liberdade de ensinar e à liberdade de aprender, garantidas na Constituição Federal, uma vez que propõe censura prévia de conteúdos e coação da atividade docente.

Para atingir seu objetivo, esses parlamentares pretendem interferir no trabalho de professores e professoras, colocando-o sob suspeição e permanente ameaça. Mais um fator de deterioração das condições de trabalho da categoria, já tão prejudicadas pelos graves ataques que seus direitos têm sofrido nos últimos meses.

As escolas devem formar cidadãos críticos, aptos a formar sua visão de mundo de maneira autônoma, livre da imposição do mercado ou de religião X, Y ou Z. Democracia pressupõe pensamento livre, e pensamento livre pressupõe livre acesso ao conhecimento. É isso que os PLs 01/2015 e 867/2015, respectivamente em tramitação na Câmara Legislativa do DF e na Câmara Federal, querem destruir.

Todas as justificativas relativas à apresentação desses projetos trazem em si um indissociável autoritarismo, ao outorgar-se a prerrogativa de definir o que os estudantes podem ou não saber, e o que os professores podem ou não ensinar. Mais do que isso, referem-se com desprezo e preconceito à atividade de professores e professoras, ignorando que são profissionais que frequentaram as universidades; que se dispõem a jornadas de trabalho estafantes; que procuram se aperfeiçoar em pós-graduações, cursos e vivências; e que se mantêm em permanente processo de formação. Sugerir que tudo isso tem o objetivo de promover doutrinação e manipulação é um insulto descabido, que demonstra o desconhecimento dos autores de tais projetos sobre os processos pedagógicos, o dia-a-dia das escolas e a rotina do Magistério.

No entanto, mais uma vez, a Educação não se calará. Que seja feito o debate público, livre de amarras, censuras e truculência. Com certeza, todo o Distrito Federal rejeitará a mordaça que querem impor à categoria.



(1)  O Fórum da Liberdade 2015, evento organizado pelo Instituto Millenium anualmente, contou com a presença do senador Ronaldo Caiado (DEM/GO) como palestrante no painel sobre “Caminhos para o Brasil”. Em 2014, o então pré-candidato à Presidência da República Aécio Neves (PSDB/MG) foi palestrante no painel sobre “Competitividade”. As referidas programações encontram-se disponíveis no site do Instituto.