quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O que o amor envolve

O amor envolve tanta coisa, que dá preguiça só de pensar. Como um bolo de roupas pressionadas uma contra a outra, envoltas por um elástico (ou coisa do tipo) pra caber numa mala de viagem.

O amor envolve o teu medo de se relacionar e a minha pressa de me aprumar. Envolve os traumas e as manias que acumulamos solitariamente no caminho que um percorreu até o outro. Amor envolve um certo orgulho, envolve vergonha também, paciência, e um sem-fim de dúvidas e de vontades.

O amor envolve meu medo de me relacionar e a tua vontade de viver só. Tua sede de noite e minha necessidade de dia. O amor envolve meus fantasmas, teu tédio, os romances que leste e as minhas lembranças de família, derramadas dum baú.

O amor desenvolve as minhas teorias sobre o tempo e as tuas hipóteses sobre o nada. Desenvolve conversas perdidas na história e desejos mal-resolvidos; desenvolve porque, como coisa viva, não pára de ir pra algum lugar enquanto não morre. O amor desenvolve o medo da morte e a paz da vida.

O amor desembrulha pequenas coragens, temores ocultos, o amor desembrulha os corpos e os mergulha um no outro só pra mostrar que o que é real se toca. O amor desembrulha presentes e passados, anseia o futuro perigosamente e embrulha estômagos com ansiedade e poréns.

O amor envolve a nossa música, as manhãs de sábado, as tensões na nuca. O amor envolve uma disposição assustadora para a eternidade, e tenta a todo momento escapar da juventude pra dizer que não se aprisiona em lugar nenhum.

O amor envolve o que meus amigos pensam de você, e o que sua mãe te predestinou desde sempre. O amor envolve os times opostos, o vinho e a tequila, o samba e o rock, a praia e a chapada. O amor é birrento porque, de tanto medo de que o matem, prefere dominar a própria morte suicidando-se.

O amor envolve a pele áspera do teu braço, os dedos curtos do meu pé, os olhos fundos, os dentes tortos. O amor envolve nossa diferença de altura, de idade, de origem, de endereço.

O amor envolve as concepções que há sobre ele e devolve os formatos que inventaram para senti-lo. O amor balança, dança, bamboleia e se esquiva docemente das fórmulas que o sufocam, o amor sobrevive. O amor floresce nos jardins, nas árvores e no mato também, o amor acontece, o amor cresce; o amor não tem dono nem relator.

O amor desenvolve o conflito de expectativas e o receio de se subordinar. O amor desenvolve a inércia mal-explicada pela física, o curso do rio; o caminhar cansado e desconfiado pra um lugar desconhecido, o amor cassa às vezes. O amor desembrulha aquilo que está e fecha os olhos pra ser feliz. Mas o amor também rasga a fantasia para se atirar numa realidade irremediável de amor.

O amor me envolve como um abraço caloroso num dia de inverno. O amor envolve o que eu esperava e você que veio, o que eu sempre sonhei e você que sonha. O amor envolve um sem-nome de tipos de esquivar-se, justificativas, racionalidades, exclamações e coisas pequenas. O amor desenvolve as coisas pequenas e as deixa grandes.

O amor desvia, e na mesma via, sem querer, desavisado, por um momento, afrouxa o elástico, e as roupas vão ao chão, espalham-se.

O amor, agora, envolve eu e você. Mais nada.


***
Aos amigos e amigas, desejo um 2015 cheio de amor!

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A Vila Matilde

Às vezes, é a Vila Matilde.

Ela cruza o caminho e chega num sorteio de bicicleta dum programa vespertino na TV. Nas caminhadas longas em pernas curtas até um mercadinho ou uma banca de jornal. Até o correio.

A Vila Matilde vem e traz um mundo que era muito grande, quando a casa era um sobrado e a rua era pacata, mas mesmo assim, a gente tem medo.

A vizinha curandeira
A vizinha alcóolatra
Os meninos jogando bola, fazendo barulho no portão

Uma tartaruga e um cachorro convivendo (mal)
Carpete
Quintal
E um camundongo eternamente perdido no quarto dos fundos

A sensação de que a vida será imensa
Uma pulsação de coração que joga seu próprio som pra fora e além
Uma paz que ficou ali, perdida
Presa numa ratoeira
Esquecida que nem brinquedo velho

Sempre que eu esqueço como faz pra ter paz,
Penso que preciso ir lá na Vila Matilde procurar.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Para Noel

Vive, Noel, vive!
Porque a vida não acaba em 26 anos
Num somatório de meses
De dias e noites

Ora, e quem seria tolo o bastante
Pra pensar que a vida se conta
Em medida cronológica?

A vida transborda pra fora do corpo e do tempo
A vida se eterniza
Segue o verso
Outro verso
Improvisa
Não se esgota
Cantarola

A vida brota, suja e rota
Em baforadas de cigarro
Em copos e mais copos
Até perder a hora
Perder o medo
E enxergar na noite
O baile dos arvoredos

Vive, Noel, na vontade de vida
E gasta-a à vontade
Que vida não é coisa que se economiza
Para trocar por mais vida depois,
Quando a vida cobra a conta
Da vida lavrada em atas
Que a vida se vive agora
Que a vida não tem errata

Vive ainda Noel
Em teus amores
Guardados nos amores
Que cada um segue vivendo
Embalado em samba e poesia
Em dor e despeito
Em ternura e desejo

Noel vive
Noel não morre
Porque ele, ao se desfazer no ar,
Integrou-se à vida coletiva
À personalidade nacional
E vive na vida da gente
Até que a vida da gente
Faça por merecer viver
Noel.