sábado, 27 de fevereiro de 2016

A casa no morro

A mãe sempre gritava por causa da demora no banheiro, mas nem imaginava que o menino passava minutos infinitos (para menino, tudo é infinito) de pé em cima do vaso sanitário, de onde seus olhos podiam alcançar a janela que ficava quase na altura do chuveiro. A janelinha era pequena, mas dela, via-se o topo do morro ao longe, e ali o menino ficava vagando sem pressa de voltar.

O morro parecia que tocava o céu. Não tinha nada acima dele. Da janela, não enxergava o chão, só o alto, onde havia uma casinha branca e o céu. O que via da janela era uma combinação do verde-marrom do morro, com o azul do céu e o branco da casinha pequenina. Pensava que queria ir morar naquela casinha. Imaginava risonho a vista que teria da cidade: talvez, de lá pudesse ver o rio!

Não precisaria de cerca, porque ninguém que chegasse ao alto do morro mereceria ser temido. Seriam bem-vindos na sua casa, ele ofereceria café, chimarrão, bolo de laranja. Plantaria árvores em volta da casa, e assim, poderia também oferecer frutas frescas para quem o visitasse. Haveria uma horta! Com certeza, teria um cachorro. Não para guardar a casa, para brincar na casa.

Saía da casinha só quando a mãe gritava, pensando que o filho estava enrolando no banho, gastando muita energia.

Conforme os anos se passavam, a casinha branca ganhava mais adereços, animais, árvores, cores e até cômodos: quando decidiu ser arquiteto, achou que a casa teria de abrigar seu atelier.

No aniversário de 13 anos, pediu de presente um binóculo. Recebeu o agrado com muita alegria, e correu para o banheiro enxergar a casa onde moraria um belo dia. Quando subiu no vaso (ele tinha espichado bastante desde os seis anos, mas não o suficiente para alcançar a janelinha) e olhou pelo binóculo, sua decepção foi flagrante: a casinha branca não era uma casa. Era um letreiro que exibia o nome do morro: Apamecor.

Ficou cabisbaixo por alguns momentos, ninguém entendeu por quê. Mas era como se a casinha branca tivesse sucumbido a um terremoto, uma tempestade, um furacão. Foi tragada pela terra. Quando fechava os olhos via os escombros de tudo, isso doeu, e ele sentiu falta de ser criança de novo.

Mas daqui a pouco, uma luz se fez em seu rosto e ele voltou a ser feliz como antes. Dia seguinte, ligou o chuveiro e postou-se sobre o vaso sanitário, olhando atento pelo binóculo. Começou ali a projetar a construção da sua casa de infância.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Pra Ninar Você

Esta semana estou em estúdio, em Porto Alegre, para gravar duas músicas minhas. Uma delas é esta canção de ninar, cuja letra está abaixo. 

***



PRA NINAR VOCÊ

(Alessandra Terribili)

Essa sombra em teu olhar
Denuncia um mal que há
Perturbando o sono teu
Tua luz não se acendeu

Se teu peito sente um nó
Logo vai nascer o sol
E se depender de mim
Não vai ser tão triste assim

Se sentes frio
Te sopro um vento de calor
E teço um lindo cobertor
Com versos que eu recém colhi

Quem não se abriu
Pra vida nunca vai sofrer
Então não temas se doer
Pois tens o oceano em ti

E o tamanho que ele tem
Nunca vai ficar aquém
Dessa lágrima que cai
Tão teimosa e tão fugaz

Olhando bem
No fundo dos teus olhos-mar
Se vê, nada vai evitar
Que eles brilhem outra vez

Porque ninguém
Conseguirá de ti roubar
O dom que tens de respirar
Os bons motivos de viver

Hoje eu acordei por ti
Fui andando por aí
Procurar uma canção
Pra fazer você dormir

E pra noite te abraçar
Hoje eu só vou cantar
Pra fazer você dormir
Pra fazer você dormir

***
Ouça aqui!

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Uma chamada

- Alô?

- Oi, tudo bem?

- (murmurando, um pouco brabo) Poxa, Lívia, já não pedi pra não me ligar quando eu estiver em casa?

- Pediu, mas não encontrei um motivo razoável para não fazê-lo.

- Eu estou com minha família, caramba!

- E daí? Você me liga quando eu estou com meus amigos, e eu atendo.

- Que comparação esdrúxula, Lívia.

- Esdrúxulo é que, em pleno século XXI, as pessoas se subordinem a um conceito atrasado como o de família! É uma instituição que acorrenta as pessoas, como se sentimento e convivência pudessem ser coisas coercitivas. Não me venha com essa conversa fiada de que família é um templo sagrado, hein. Pra muita gente, é o espaço da violência e da repressão, sabia?

- (quase implorando) Lívia, por favor, agora não posso falar com você...

- Tem que ser agora sim, Carlos Roberto! Liguei porque quero falar com você, e se você não quer me atender, que arrume uma justificativa melhor que “estou com minha família”.

- Meus filhos e minha mulher estão aqui!

- Seus filhos são adultos, Carlos Roberto!

- A Amanda!

- A Amanda? Aquela sonsa-monga que se faz de mais sonsa ainda para te manter aprisionado, com teus medos e tuas culpas pesando que nem aquelas bolas de ferro? Ora, francamente, Carlos Roberto. Arrume justificativa melhor.

- Eu passo muito tempo fora, eu só...

- (interrompendo) Você passa tempo fora porque é fora de casa que encontra as realizações que seu casamento de fachada não te dá. Em vez de se sentir culpado por isso, deveria buscar formas de se libertar. Você tem uma vida pra viver, deveria ir ser feliz. E deixar a pobre da Amanda ser feliz também, em nome de Jesus!

- Que absurdo você dizer isso!

- Absurdo, Carlos Roberto??? Deixe de hipocrisia, rapaz! Se esse seu casamento fosse bom, você não saía por aí dando suas escapadinhas! Ora! Pronto, falei.

- (sussurrando de novo) Você sabe que a vida não é essa simplicidade antropológica que você vive pregando, já falamos sobre isso. A gente casa, a gente forma uma família, a gente tem que ter responsabilidade com as decisões que se tomam. Ninguém aqui é adolescente mais.

- Claro que não. Adolescentes são curiosos e corajosos, e você é um covarde. Que conversa é essa de "responsabilidade com as decisões"?! Toda decisão humana é reversível. Ainda mais essas que precisam de contrato para se firmar. Amor não precisa de contrato não, Carlos Roberto. Nem de testemunha.

- (suspirando, rendido) Ok, Lívia. O que você quer.

- Te mandei um e-mail com dois relatórios para mandar para a matriz, um enxuto e um bem completo. Preciso que você leia os dois, sugira o que achar conveniente em cada um deles, veja o que falta e opine sobre qual enviar. Ainda hoje!

- Ok.

- Aguardo então. Beijão, bom fim de semana!