terça-feira, 26 de janeiro de 2010

As violências sobre as mulheres

Em uma semana, duas notícias trágicas que envolvem a opressão sobre as mulheres que ainda há quem se recuse a enxergar. Mas o mais trágico é que casos como esses, diferentes entre si, repetem-se com uma indesejável frequência.

Uma mulher foi morta pelo seu ex-companheiro, mesmo após registrar inúmeras denúncias, depois de recorrer à Lei Maria da Penha, depois de instalar, ela mesma, câmeras de vídeo, com intenção de se proteger dos anunciados ataques.

A cena do homem transtornado entrando no local de trabalho da ex-companheira e atirando nela a sangue frio chocou Minas Gerais e o Brasil. Especialmente por se tratar de um típico caso de “crônica de uma morte anunciada”. Agora, ele está preso. Mas agora, ela já está morta.

As pessoas devem ter ouvido falar nas vezes em que juízes não aplicaram a Lei Maria da Penha – uma conquista das mulheres brasileiras – e alegaram sua suposta “inconstitucionalidade”. Se é assim, não sei mais o que é Justiça. Os tristes dados estatísticos sobre violência contra mulheres atestam veementemente que o machismo existe, é explícito e se expressa concretamente. Justiça é atuar de verdade para combater essa realidade. Justiça é sonhar com um mundo onde igualdade não seja discurso barato de “respeito à diferença”. Diferença que me inferioriza, muito obrigada, não quero. Fique com ela.

Violência sexista é uma das formas mais crueis que tomam o machismo e a opressão. E o ato de violência, quase sempre, é precedido por ameaças ou outros indicativos de que vai acontecer. Grito é violência. Perseguição é violência. Tortura psicológica é violência. E a dita “Justiça” em nosso país deveria trabalhar para impedir que a violência aconteça.

As mulheres são vítimas de violência porque são tratadas como propriedade de um homem. Como objetos que devem obedecer a um senhor. Se saírem da linha, a punição é a violência. Se o mundo sai da linha, a violência é sobre a mulher. Se o álcool sai da linha, a violência é sobre a mulher. Nada é atenuante. Ninguém enche a cara e vai bater no chefe.

Nessa lógica de ser objeto, está uma outra morte de mulher acontecida nesta semana: a jornalista que se submetia a uma cirurgia de lipoaspiração. A ânsia de corresponder a um padrão, de se encaixar numa forma, pode chegar a esse nível de pressão.

Tem aquele discurso bobo e liberal: “se ela vai se sentir melhor, deixa ela fazer”. E tome intervenção cirúrgica, medicalização... como se essas coisas não tivessem impacto sobre a saúde da indivídua! Como se fosse natural modelar corpos em série! Como se fosse destino das mulheres ter que se adaptar a exigências que o mercado, legitimado pelos grande meios de comunicação, impõe.

Natural é que a gente reaja a isso. “Somos mulheres, e não mercadoria”. A pressão por um corpo correspondente ao padrão mata. Matou muitas mulheres em mesas de cirurgia, matou muitas mulheres de depressão, matou muitas mulheres de anorexia. Vez ou outra a mídia aborda um desses casos e provoca comoção nacional. Mas não se comove com o contexto de opressão representado em cada um deles.

Pelo fim de todas as violências que as mulheres sofrem, a solução é o feminismo. É a organização das mulheres para conquistar a igualdade e a justiça. É a presença feminista das mulheres em todos os espaços em que estão. É uma leitura feminista de mundo. É a luta feminista pra mudar o mundo, e, assim, mudar a vida das mulheres.

Não podemos permitir que novas Islaines, Lanusses, Eloás, Ana Carolinas paguem o preço de fingirem que a desigualdade e o machismo são peças de ficção.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Mentiras sinceras me interessam

Não me envergonho disso. Não gosto de verdade o tempo todo. A verdade, normalmente, é dura, ríspida, cruel e filha de chocadeira. Não sei por que essa necessidade de falar a verdade sempre.

Quando eu era pequena, acreditava em coisas que não eram verdade, eram fantasia. Era legal. O mundo era muito melhor e eu sempre podia ser quem eu queria. Se enjoasse de mim mesma, podia ser outra pessoa então. Podia ter váaaarias experiências diferentes, nenhuma no plano da realidade, mas e daí? Quem disse que só as situações verdadeiras acumulam experiência de verdade?

As mentirinhas inocentes deixam o mundo colorido. Porque o mundo de verdade não o é. Mentirinhas à toa são responsáveis por existir esperança. Se todo mundo olhasse tudo do jeito que realmente é, ninguém mais saía de casa. Mas acreditamos em algumas mentiras que nos contam, ou que inventamos, e daí vale a pena sair. Pra perseguir o cenário mentiroso.

Por que as pessoas têm prazer em dizer a verdade como ela é e magoar os outros?

- Amor, você vai me esperar?
- Não prometo.


Ou então:

- Vamos ao jogo de futebol hoje?
- Olha, você é uma péssima companhia pro futebol. Além de gritar histericamente e atormentar os que estão em volta, ainda é pé frio. Vou sem você.


Não se faz isso. É maldade.

As mentiras sinceras, por sua vez, expressam algo que não necessariamente é verdade, mas que queremos que seja.

- Amor, você vai me esperar?
- Eternamente, se for preciso.

- Vamos ao jogo de futebol hoje?
- Tô com mau presságio sobre esse jogo, melhor não.


Poxa, o que custa?

A verdade é pros inimigos. Pros amigos, pras pessoas que consideramos, que temos em bom lugar, reservamos as mentiras sinceras. Com todo carinho.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Nossa homenagem a Daniel Bensaid

Nota da Democracia Socialista, tendência interna do PT

Daniel Bensaïd morreu na manhã do dia 12 de janeiro. Perdemos um companheiro militante revolucionário com muitas contribuições originais para o marxismo.

Daniel nasceu em Toulouse há 64 anos. Foi dirigente destacado do maio de 68 na França. O primeiro livro de sua autoria – junto com Henri Weber – que publicamos no Brasil foi justamente Maio de 68 – Um ensaio geral. Traduzimos do francês, datilografamos em matriz e rodamos no mimeógrafo do DAIU (centro acadêmico da Filosofia da UFRGS) em 1977.

Com sua militância iniciada nos anos sessenta, Daniel deu uma contribuição decisiva para construir um elo entre o difícil acúmulo da militância revolucionária anti-estalinista e as novas gerações que lutam pelo socialismo.

Daniel Bensaïd foi fundador da Liga Comunista Revolucionária na França e depois do NPA (Novo Partido Anticapitalista). Foi um dirigente fundamental da IVª Internacional, um de seus mais argutos pensadores. Nos anos 90, já adoentado, passou a uma produção teórica impressionante, expressa em ensaios e livros, muitos traduzidos e publicados no Brasil, dentre eles Marx, o Intempestivo (Rio: Civilização Brasileira, 1999).

Na passagem do século passado, com o advento do movimento antiglobalização, engajou-se com energia renovada nas mobilizações e nos Fóruns Sociais Mundiais.

Daniel foi um colaborador assíduo nos debates para a formação da nossa corrente, sobretudo nos anos 80. Reconhecemos sua contribuição para a nossa construção. Nossa relação foi de amizade, respeito e carinho, mesmo no difícil momento de 2005, quando publicamente divergimos sobre as perspectivas do PT e quando nosso diálogo, antes tão profícuo, foi interrompido.

Partilhamos com a militância revolucionária de Daniel os mesmos valores da democracia socialista, a identidade sempre reiterada com a luta dos oprimidos e explorados de todo o mundo, o internacionalismo de raiz e a convicção de que hoje, mais do que nunca, é o tempo histórico da superação do capitalismo.

No seu livro Une lente impatience, sobre sua trajetória militante, Daniel dedica um capítulo à sua experiência brasileira. Com grande sensibilidade, com a sua admiração pela música de Chico e Milton, começa (e termina) citando a poesia de Carlos Drummond de Andrade, que bem pode resumir todo seu esforço militante: “Oh vida futura! Nós te criaremos!”

Prestamos nossa homenagem a Daniel Bensaïd, uma homenagem à rebeldia, uma homenagem à revolução!

São Paulo, 12 de janeiro de 2010.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Viver como se pensa

- Oi, Marcinho.
- Oi.
- Por que você sumiu?
- Ah, tenho andado ocupado.
- Poxa, o que pode ser mais importante que nós pra você desaparecer assim?
- Ah, sabe, coisas pra fazer, família, umas coisas pra resolver.
- Entendo... sentimos sua falta.
- É, eu faço vocês rirem.
- Não seja bobo, menino.
- Não faço falta, Lu, por isso achei que podia dar um tempo.
- Como assim???
- Ué.
- Precisamos de você no grupo, e não é pra rir.
- Estive pensando um pouco, Lu, precisava desse tempo.
- Ah, agora sim. Fale a verdade. Diga: em que pensava?
- Eu preciso cuidar da vida um pouco... ser bom em alguma coisa. Arranjar o que fazer.
- Mais ainda pra fazer??
- É.
- Não tens o bastante com o grupo?
- Não, não faço nada lá.
- Hum, fale sobre isso.
- Olha, Lu, você, por exemplo. Você fala muito bem.
- Obrigada... mas e daí?
- Você fala bem, é importante pra um grupo político. Tem o dom da palavra. As pessoas prestam atenção quando você começa a discursar, você consegue tornar claras coisas que todo mundo acha difícil ou que ninguém sabe como explicar. Você consegue emocionar as pessoas. Você é fundamental pra nós porque sabe fazer isso.
- Estou sem jeito.
- Tentei fazer igual... mas não consigo, não tenho essa vocação. Então tentei ser como a Maria.
- E o que tem a Maria?
- A Maria tem o respeito das pessoas do bairro, todo mundo conhece ela. Ela não fala bem em público como você, mas fala bem em particular. As pessoas confiam nela, procuram por ela. É impressionante. Mas eu sou tímido demais, nem isso posso fazer.
- Tô achando esta conversa tão estranha...
- E tem o Leão.
- Que é tímido como você.
- É, mas sempre tem boas ideias. Ele que inventa quase tudo que a gente faz.
- Um cara criativo.
- Elaborador.
- Sim.
- A Iara e o João parece que são de aço, não têm medo de trabalho, não têm medo de ninguém. Vão e fazem, sem tempo feio. Trabalham muito! Sempre terminam o que começam. E eu, que sou tão disperso...
- Marcinho, onde você quer chegar?
- Eu não tenho função, Lu. Eu não sei falar em público, não sei falar em privado, não sou criativo e sou disperso. Às vezes acho que sou carregado por vocês...
- Quanta bobagem, Marcinho. Somos um grupo político composto por pessoas.
- Sim, pessoas talentosas. Qual o meu talento?
- Manter a gente como grupo.
- Ahn?
- Não vê? Um grupo de pessoas não é uma engrenagem. Não tem máquina a ser programada ou parafuso a ser apertado. Mas tem conflito a ser moderado, ego a ser controlado, tensão a ser amenizada... gente pra ser entendida, gente pra levar bronca e elogio. Política é lado humano, se não, não funciona.
- E daí?
- Você dá essa liga. A nossa coesão tem em você um impulsionador essencial. Percebe?
- Isso não é trabalho.
- Por quê? Trabalho é o que você pode classificar numa profissão? Que você pode quantificar em reais?
- Eu nunca estudei, como vocês estudaram para fazerem o que fazem. Eu sou assim e pronto.
- Por isso é que deve ser mais difícil cumprir esse papel... ninguém ensina.

O diálogo é imaginário. As pessoas são fictícias, e a história é, obviamente, uma caricatura. Na política e na vida, ninguém faz uma coisa só. Mas é verdade que é importante que haja as pessoas que “dão a liga”. Aquelas que mantêm o grupo coeso porque entendem. Porque mediam. Porque dedicam seu tempo a coisinhas que não são “trabalho” strictu senso, mas cansam igual e exigem habilidade, em larga medida.

Mas até entre nós, que queremos mudar o mundo, hierarquizamos diferenças. Reproduzimos o machismo, o racismo, a homofobia, o preconceito de classe... e valoramos as coisas, os trabalhos, as pessoas da mesma forma que o mundo que queremos mudar faz. E daí, quem tem algumas dificuldades e outras facilidades tem mais obstáculos para seguir na caminhada.

O Marcinho não saiu do grupo porque a Lu percebeu isso a tempo. Foi uma reflexão coletiva que o grupo fez. É uma questão de ter vontade de não reproduzir, mesmo se a situação nos favorece, nos valoriza. Já que defendemos a solidariedade entre os povos, entre os trabalhadores e trabalhadoras, podemos exercitar a solidariedade entre nós. Podemos nos desafiar, desde a nossa experiência militante, a pensar trabalho como algo para além do que o mercado de trabalho nos apresenta. A questionar o valor que tem cada coisa, e quem deu, e com base em quê.

Agora, o pessoal não sai da sala ou começa a conversar durante uma fala do Marcinho na reunião. Agora, procuram consultar o que ele acha. Agora, tentam envolvê-lo também nas coisas que ele quer fazer, não só na tarefa que sobra pra ele. Contribuem para a formação dele não só o inscrevendo em cursos e atividades que às vezes ele não entende. Fazem disso um esforço cotidiano. É um exercício, pro Marcinho e pra eles. Mas tem dado certo.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Em 2010, um outro mundo continua sendo possível

Abrindo 2010 com artigo de Juberlei Bacelo, presidente do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, sobre o Fórum Social Mundial, que, em ano de atividades descentralizadas, volta ao Rio Grande do Sul na comemoração de seus 10 anos. Boa leitura e feliz ano novo!



IMPOSSÍVEL É FICAR COMO ESTÁ

* Juberlei Bacelo, presidente do SindBancários

Em 2010, por iniciativa de cidades da região metropolitana, o Rio Grande do Sul volta a receber um evento do Fórum Social Mundial que lança uma série de atividades descentralizadas e preparatórias para o FSM em Dacar, na África, em 2011.

Quando tudo começou, afirmar que “um outro mundo é possível” não era pouca coisa. Ao longo dos anos 90, o neoliberalismo desmontou o Estado, levou a militarização a patamares avançadíssimos, acentuou a desigualdade entre ricos e pobres e criminalizou os movimentos sociais. Dessa conjuntura, alguns diziam que era “o fim da História”. Que não havia alternativa e que o mundo seria assim mesmo, organizado pelo “livre” mercado.

Vejamos. Passados 10 anos, o mundo atravessa uma grave crise ambiental – e pôde comprovar, em Copenhagen, que apenas ter esperança no futuro é insuficiente para enfrentar a fúria capitalista que destroi o meio-ambiente para fazer lucro. É preciso mais. Salvar o planeta não é possível sob o capitalismo. Sua natureza predatória é incompatível com valores como solidariedade, justiça, igualdade e defesa do meio-ambiente.

Além disso, mal saímos da maior crise econômica internacional da história da humanidade. Ela teve origem exatamente no centro do capitalismo, na oferta de crédito que visa a ampliar o consumo mas permite que milhões ainda morram de fome. Ninguém controla o sistema financeiro. Quando se faz necessário, deposita-se dinheiro público nele, para que aguente firme… pelo menos até a próxima crise, e sobra sempre para os trabalhadores pagarem a conta.

Essas foram duas crises que marcaram 2009. E hoje, podemos afirmar: está claro que não resolveremos os grandes dilemas da humanidade no nosso tempo sob o sistema capitalista. Quem criou os problemas não é capaz de reagir a eles. Um outro mundo é, sim, possível.

Hoje, graças, também, ao FSM, existe mais espaço para que essa resposta ecoe. Movimentos sociais e a esquerda do mundo inteiro se reúnem para buscar alternativas. O SindBancários faz questão de ser parte de um processo que se propõe a tarefas tão grandiosas.

Para a programação do Fórum, oferecemos duas atividades que socializam o que acumulamos nestes últimos anos. Num seminário, discutiremos a regulação do sistema financeiro, um tema bastante atual e que precisa ser enfrentado pela esquerda, para que não sejamos reféns do mercado como querem os banqueiros. E o nosso CineBancários sediará o Ciclo de Cinema do Fórum, e apresentará uma programação especial na semana. Temos tido a felicidade de experimentar o quanto a arte e a cultura podem ser instrumentos da disputa de hegemonia que queremos travar.

E orgulha-nos, especialmente, ver a nossa Casa dos Bancários ser “Território Social Mundial”. Além das nossas duas atividades, a Casa receberá outros eventos e será referência para o público do Fórum Social Mundial.

Será muito bom iniciar 2010 com o seminário internacional de 10 anos do FSM. Será revigorante para impulsionarmos um ano de lutas e de conquistas. Nós, os movimentos sociais, precisamos aprender com a experiência que construímos e buscar novas formas de atuar, de interagir, de lutar. Precisamos respeitar e contemplar a diversidade que há entre nós. Precisamos renovar nossa disposição e nossa esperança, porque justiça, igualdade, não virá como concessão de ninguém, será produto da luta. Dez anos depois, sabemos, mais do que nunca, que um outro mundo não apenas é possível, como é necessário.