quarta-feira, 17 de agosto de 2011

As mulheres como sujeito político

Abaixo, resumo do artigo que inscrevi no Seminário de Sociologia Política da UFPR, que vai acontecer em setembro. A íntegra pode ser acessada nos anais do evento.

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As mulheres como sujeito político: A contribuição do feminismo, na redemocratização do Brasil, para uma nova noção de cidadania.

O período de redemocratização pós-regime militar no Brasil foi de rica efervescência social. As ações de oposição à ditadura tomaram diferentes formas, de meados da década de 1970 a meados dos anos 1980.

Desenhou-se ali a interlocução entre mulheres das periferias das grandes cidades, protagonistas do movimento contra o custo de vida; e mulheres da Universidade, das artes e das organizações de esquerda, que participaram da resistência à ditadura. O encontro entre essas personagens e sua desembocadura na organização do movimento de mulheres no Brasil tem repercussão até hoje sobre as políticas públicas e sobre a noção de cidadania.

No final da década de 1970, o Dia Internacional da Mulher voltou a ser celebrado no país, e passaram a ser realizados Encontros Nacionais Feministas, reunindo boa parte das mulheres que marcaram a oposição ao regime. Entre os muitos temas sobre os quais elas se debruçaram, concentraremos nossa análise em dois, bastante representativos: o combate à violência contra a mulher e a demanda por mais participação e representação política.

As duas questões partem do pressuposto de que não há iguais condições, na sociedade brasileira, entre homens e mulheres. Essa constatação levou as feministas a entenderem o Estado como espaço central de disputa, capaz de interferir nas relações sociais de sexo a fim de produzir a igualdade entre homens e mulheres registrada na Constituição de 1988.

Fundado em 1980, o Partido dos Trabalhadores, hoje comandando o país pelo 9º ano consecutivo, foi um dos palcos privilegiados para a atuação desse movimento naquele momento. Através de resoluções políticas e plataformas eleitorais do partido, é possível perceber a influência do feminismo e sua opção pela disputa do Estado como instrumento fundamental do combate à desigualdade.

Essa intervenção, gestada desde a queda do regime militar, concretizou-se, anos depois, em políticas públicas e legislação, aplicadas em âmbito federal.

Os últimos 30 anos, portanto, são expressivos de que a ação organizada das feministas contribuiu decisivamente para o reposicionamento do Estado brasileiro e para o redimensionamento do conceito de cidadania no Brasil.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O diário de uma geração



Uma das expressões mais claras de que os vinte anos de ditadura militar não são história bem resolvida para o Brasil é a quantidade de filmes que abordam ou se ambientam nesse período histórico. Entre ficção e não ficção, perpassando alguns diferentes gêneros, os anos de chumbo são frequentemente explorados pelo cinema brasileiro, que parece encontrar ali não somente um palco ou um cenário, mas sim, uma realidade a ser desbravada.

"Diário de uma busca" é uma dessas expressões. O documentário narra a busca da diretora, Flávia Castro, por respostas sobre a misteriosa morte de seu pai, Celso Castro, em 1984. Celso fora exilado político, e passou por seis países até poder voltar ao Brasil, em 1979, com a lei da anistia.

Acontece que, embora procure investigar um período histórico tão invocado, o filme apresenta-se absolutamente original na abordagem e no olhar sobre o momento. Com um belo jogo de metalinguagem, Flávia recupera a história de seus pais, então militantes de organizações de esquerda jogadas à clandestinidade pela ditadura. Eles foram obrigados a sair do país no início da década de 1970, levando os filhos pequenos (Flávia e seu irmão caçula) a lhes acompanharem na jornada. É desde o ponto de vista de uma menina, que começa a narrativa aos 6 anos, que o espectador conhece os fatos.

As duas crianças vivem em meio à fuga, à resistência, mas também, lado a lado com as esperanças e as dores de toda uma geração, muito materializada em seus pais e nas pessoas que com eles se relacionavam. Estranham o fato de não irem à escola, brincam de "fazer reunião" e observam tudo à sua volta. A opção por localizar aí seu relato livra o filme do risco de tornar-se "pesado", mas, ao contrário, envolve o espectador na busca de Flávia e na recomposição de uma infância atípica.

O espectador também tem o prazer de "conversar" com personagens centrais da história. Além de Sandra, a mãe de Flávia, e demais figuras da família; Daniel Aarão Reis, Marco Aurélio Garcia, Flávio Koutzii, Jean Marc Von der Weid (presidente da UNE em 1968) e o saudoso Daniel Bensaid são quem contextualiza o período histórico a partir de suas memórias políticas e da relação com Celso Castro e sua família.

Ao longo do filme, a compreensão da morte de Celso fica subordinada à grandiosidade da sua história, contada a partir de relatos, entrevistas, documentos, fotografias; e da dimensão humana de todo aquele processo, evidente, entre outros, nas dezenas de cartas dele, recuperadas por Flávia.

A vida de todo mundo, em qualquer período, é repleta de percalços, obstáculos, grandes imprevistos. Muitas coisas podem mudar para sempre a vida de uma pessoa. Mas, naqueles vinte anos, o Estado brasileiro colocou-se para seus cidadãos como um desses fatores, ou o principal, e isso é algo deveras sério. Sendo assim, independentemente de quem puxou o gatilho naquela tarde, e da razão que levou Celso ao apartamento onde ele se encontrou com a morte, a verdade é que sua vida mudara para sempre em 1964.

Enquanto os arquivos da ditadura permanecerem vergonhosamente sigilosos, enquanto brasileiros e brasileiras forem privados do direito à sua própria história, ainda haverá muito o que se falar sobre ditadura, ainda haverá muito o que se remexer nesse passado. Embora Flávia Castro declare-se, enfaticamente, alguém "não militante", a preciosidade da sua contribuição está justamente em escancarar as vidas que foram afetadas pela brutalidade do regime, e o quanto a desumanidade com que aquela geração foi tratada interferiu na sua forma de olhar o mundo dali por diante.

A história de cada um daqueles personagens teve diferentes desfechos, e opções variadas se apresentaram. Mas jamais será possível ignorar que, a despeito da especificidade do desenvolvimento de cada trajetória pessoal, nenhuma lei de anistia apaga as mortes, os desaparecimentos, tampouco a angústia e as dores que cada uma daquelas pessoas enfrentou. "Diário de uma busca" tem o mérito de ampliar os horizontes desse impacto. A sensibilidade é, afinal, um pressuposto de qualquer militância.


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Veja o trailer do filme:



DIÁRIO DE UMA BUSCA
direção: Flávia Castro
roteiro: Flávia Castro
gênero: documentário
origem: Brasil/França
duração: 108 minutos
tipo: longa-metragem

Em cartaz no CineBancários (Rua General Câmara, 424, centro de Porto Alegre) de 3 a 14 de agosto (exceto dia 8), em três horários: 15h, 17h, 19h.


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Em novembro de 2008, escrevi sobre um episódio que me comoveu muito: a Caravana da Anistia, passando por Caxias do Sul, anistiou o ex-deputado Flávio Koutzii (PT-RS), que é um dos personagens do filme. Pra quem quiser lembrar, clique aqui.