sexta-feira, 28 de outubro de 2016

A violência do golpe

Um ano atrás, professores e professoras em greve no Distrito Federal foram covardemente atacados pela Tropa de Choque a mando do Governador Rollemberg e seus cúmplices. A manifestação paralisou o Eixão na saída norte e na saída sul por cerca de meia hora, e nós já estávamos nos dirigindo aos nossos carros para sair de lá quando a polícia chegou e promoveu aquele festival de agressões, arbitrariedades e pancadaria que nunca vamos esquecer.

Era só o começo de um triste período marcado por violência, violação de direitos e retrocessos até no plano cívico. Um ano depois, a lei do Plano de Carreira do magistério segue sem ser cumprida - o governador anunciou que, mais uma vez, descumprindo o acordo de fim de greve, ele não vai pagar a última parcela do referido Plano.

A greve é um instrumento legítimo da classe trabalhadora. Ninguém faz greve por esporte, é o último recurso para quem só tem a paralisação da própria força de trabalho como mecanismo para garantir a efetivação de seus direitos. É difícil construir uma greve, é difícil manter uma greve. Mas é preciso fazer greve. Os responsáveis por existirem greves não são os trabalhadores, são seus patrões.

O Plano de Carreira dos professores e professoras do DF é motivo de orgulho da categoria, e foi conquistado com muita luta, depois de uma greve de 52 dias em 2012. O que Rollemberg faz agora é desrespeitar a lei. Entretanto, quem é punido pela Justiça são aqueles que lutam para fazer valer a lei.

Infelizmente, a cada dia que passa, mais elementos nos indicam que o golpe que tanto denunciamos nos trouxe a um Estado de exceção, no qual governo golpista, Congresso Nacional e Poder Judiciário estão articulados e empenhados em esmagar os trabalhadores (as), suas organizações e ações políticas.

O STF anulou o direito de greve garantido pela Constituição de 1988. Há, a todo momento, ameaças de ações truculentas contra a ocupação de escolas por estudantes secundaristas, que nos dão uma aula em defesa da Educação ao levantar-se contra a MP do Ensino Médio, autoritariamente lançada pelo governo golpista para sucatear o ensino público.

Um ano atrás, aquelas imagens chocaram o país inteiro: professores e professoras sendo covardemente violentados em Brasília pela Polícia Militar. Alguns foram presos, alguns sangraram, outros entraram em estado de choque. As marcas ficaram em todos nós que estávamos lá, e também, em milhares que não estavam. E por mais que já suspeitássemos, ainda não sabíamos, então, que a violência do golpe se recrudesceria a cada dia.

Cassaram nossos votos ao cassar a presidenta que elegemos. Constituíram um governo golpista com os nomes e programa daqueles que tinham sido derrotados nas urnas. Sob o pretexto de combater a corrupção, inauguraram um Estado de exceção no qual a esquerda é suspeita de tudo, exatamente como foi em 1964. Depois, construíram fortes para proteger os corruptos, seus mandatos e suas propriedades. Vão estrangular a educação e a saúde pública por vinte anos, entregar o pré-sal para as potências imperialistas, e nos proíbem de reagir.

Se isso não é ditadura, não sei que nome tem.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O menino e a lua

Séculos atrás, um menino se apaixonou pela lua. Já tinha mais de 20 anos de idade, e sabia um pouco como a vida funcionava. Nunca esperou da lua o que a lua não lhe pudesse oferecer, mas a felicidade plena se realizava nele quando a lua cumpria seu esplendoroso potencial de despertá-lo. Conheciam-se bem, o menino sabia das fases, entendia quando a lua preferia encobrir-se sob nuvens. Os eclipses eram seu show para o mundo, a lua não havia de exibir-se só para ele. Entendia. Era assim a relação, de expectativas comedidas, compreensão e explosões de amor.

Quantas vezes se não lhe disseram que aquele amor não prosperaria, que era impossível manter-se enamorado pela lua? Mas o menino trazia um céu de serenidade nos olhos, e, se sentia saudades ao longo do dia, a chegada da noite o acalentava como abraço nenhum neste mundo. Conversavam, trocavam confidências, cuidavam-se, beijavam-se silenciosos, banhavam-se em leves águas prateadas, e ele se deixava levar, às vezes, mais do que devia. Claro que doía o trajeto de volta ao ponto de onde não é permitido ultrapassar. Mas sentir dor é coisa da vida. No plano dos sentimentos, não há experiência que não cause dor. E se houver, há de ser coisa infeliz, porque incapaz de sentir com o corpo e a alma inteiros de uma vez.

Quem se apaixonava por estrelas cadentes ou seres humanos, casava-se, gerava herdeiros, dividia contas, problemas e soluções, jamais conseguia entender aquele amor. É fadado ao fracasso, evidente!, acusavam.

E são diferentes as estrelas cadentes e os seres humanos?, perguntava ele, curioso. São perfeitamente harmoniosos esses encontros? Você consegue suportar as contradições imprevisíveis como eu posso suportar as previsíveis? E via pelo mundo traição, violência, mentira e desamor. Por que meu amor é menos real do que isso? Por que temem pelo meu sofrimento se ele é comum a todos nós?

Ora, já se apaixonaram pela lua antes, respondiam-lhe. Nunca vingou, é história pré-determinada: acaba triste.

E o menino assistiu, ao longo de décadas, romances de estrelas cadentes e seres humanos se acabarem tristes. Por traição, violência, mentira, desamor, ou mesmo pela morte. No renascer das almas, aqueles seres não se reconheciam mais. Enquanto isso, o fim jamais chegou para ele e a lua. O menino renasce em flor, coruja, pássaro, borboleta e ser humano, sempre no mesmo amor, e a lua continua iluminando-o risonha em prateado, como se fosse a primeira vez.

Leonid Tishkov, Private Moon

sábado, 15 de outubro de 2016

Uma aula para Alice

Ao longo de sua caminhada pelo País, Alice carregava uma mochila na qual guardava as coisas que recolhia no percurso. Como o trajeto tinha sido longo, a mochila estava cheia. Lá pelas tantas, ela deu falta de alguma coisa. Não sabia o que era, mas sabia que alguma coisa estava faltando.

Era estranho, porque a mochila pesava mais que nunca. Como era possível que alguma coisa tivesse caído? Talvez fosse uma coisa leve.

Também, não adiantava ficar preocupada. Perdeu, perdeu. Não tem jeito: perder coisas pelo caminho é normal. Tomara que não fosse nada essencial.

O problema é que, com o passar do tempo e do caminho, a falta revelou-se avassaladora, e não dava pra percorrer o trajeto inverso buscando. Andara muito já. Um vazio tomava lugar em seu coração, mas não sabia o que fazia tanta falta, que tamanho tinha, qual a cor, a forma. Sabia que era leve, porque caiu da mochila sem fazer alarde.

Certo dia, apareceu-lhe o Gato Risonho.

- Noto que estás estranha, Alice.

- Pois perdi alguma coisa que não sei o que é.

- Talvez por isso a senhorita esteja meio ranzinza? - considerou o Gato - Seus passos andam mais duros.

- É porque quero ir rápido, mas não posso, a mochila pesa demais.

- Ninguém lhe ajuda?

- Não pedi ajuda...

Mirando Alice fixamente nos olhos, o Gato sentenciou:

- Você perdeu foi a esperança, Alice.

Era essa a falta que ela sentia em vão! Atordoada pela descoberta, Alice se entristeceu. Não sabia em que parte do caminho a esperança havia ficado, ou por onde havia se espalhado, talvez despedaçada, talvez esparramada aos poucos. Não sabia como resgatá-la.

Vai ver é assim mesmo, faz parte do caminhar. A esperança desbota, gasta, vaza - que nem aquelas almofadas de bolinhas de isopor, quando furam sem que você perceba. Que nem tudo que você usa muito. Gasta, ué, é assim mesmo.

Alice estava quase conformada, quando um homem que tinha nos olhos a cor das folhas que caem no outono cruzou o seu caminho.

- E por que, Alice, você não pediu ajuda a ninguém para levar esse peso? - ele quis saber.

- Não sei bem... Acho que não confio nas pessoas. A maioria delas não é boa não.

Ao ouvir aquilo, o homem adoçou a voz ternamente e respondeu com uma pergunta:

- Lembra-se, Alice, quando você era uma menina, antes ainda de encontrar este País das Maravilhas?

- Um pouco.

- Lembra-se da sua casa? Dos vizinhos que moravam à sua direita? À sua esquerda? Lembra-se dos vizinhos da frente?

Alice lembrava pouco, mas o pouco que lembrava era bom. Nenhum deles era lá muito normal, não. Mas veio à boca o gosto do bolo de cenoura coberto por chocolate que a senhora da frente fazia e compartilhava. As broncas rabugentas que ouvia da velhinha da direita cada vez que a bola escapava para a casa dela - mas ela sempre devolvia. As festas juninas na rua, os sorteios de bicicletas. As tardes de domingo. Mas lembrou-se, principalmente, de que a forma como a gente olha para as coisas e para as pessoas é parte fundamental do que a gente vê.

- Então, Alice. Aquelas pessoas eram boas - disse ela - Por que você pensaria que não?

Alice lavou os olhos de dentro pra fora para limpar toda desilusão que eles ainda guardassem. E assim, viu que, na verdade, ela não tinha perdido a esperança não. Ela estava ali o tempo todo, enrolada em outras coisas, misturada, sufocada dentro da mochila.

Olhou agradecida para aquele homem, e logo deduziu: para ser capaz de ensinar coisa importante assim, como salvar a esperança da omissão, de duas, uma: ou ele é professor, ou é um anjo que alguém me mandou.

Mas Alice não queria que ele fosse embora morar nas nuvens, então, passou a chamá-la de Professor. Era isso mesmo que ele era.

***
Minha singela homenagem a essa categoria tão indispensável e tão especial, com quem tenho muito orgulho de trabalhar. 

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Fraudes, mentiras e falácias: fundamentos da Lei da Mordaça

Ruth Brochado e Alessandra Terribili*

Que os PLs autodenominados “Escola Sem Partido” baseiam suas premissas em falácias, todos já sabemos. A principal delas reside no próprio nome, afinal, o projeto não se refere à disputa partidária no interior das escolas. O que ele pretende, de fato, é assegurar o predomínio de suas próprias convicções conservadoras, forjando um pensamento único caracterizado pela intolerância e pela ignorância.

No DF, os porta-vozes das trevas adotaram a tática de fatiamento do projeto, ou seja: fragmentaram-no e apresentaram-no em partes, inclusive apelando a fundamentos inconstitucionais. Seus idealizadores propõem a perseguição de professores (as) e a censura de conteúdos sob o pretexto de defender o “direito dos pais a que seus filhos menores recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Ora, e como cumprir tal promessa em meio a uma diversidade de convicções, expectativas, referências morais e visões de mundo que há numa sala de aula? E mais: é desejável que, num espaço público, os diferentes não entrem em contato?

Portanto, a Lei da Mordaça não é apenas uma falácia, é também hipócrita e autoritária. Ao anunciar sua cruzada contra uma suposta “doutrinação” praticada por professores e professoras, os defensores (as) da Mordaça pretendem, na realidade, manter sua doutrinação particular. Para isso, precisam expulsar o senso crítico das escolas, como quis fazer a ditadura militar de diversas formas – inclusive, prendendo, exilando, torturando e matando professores (as).

Gênero

Para argumentar suas frágeis teses, os autores dos Projetos de Lei da Mordaça apelam a conceitos vazios, como a tal “ideologia de gênero”.

Na literatura feminista, o conceito de gênero aparece pela primeira vez em 1975, na definição de Gayle Rubin. Basicamente, trata-se de afirmar que a desigualdade entre homens e mulheres, geradora de toda sorte de violência, conflitos e exclusão, não é natural, mas sim, construída socialmente. Isso quer dizer que a opressão das mulheres é sustentada há séculos por valores morais e práticas sociais e econômicas que condenam a mulher à submissão. De acordo com os idealizadores da Lei da Mordaça, são esses os valores morais que devem circular livremente nas escolas, sem questionamento ou confronto de ideias.

Não há teórica ou liderança feminista que utilize o termo “ideologia de gênero” para se referir a qualquer coisa. “Gênero” não é uma “ideologia”, mas sim, um conceito, uma categoria de análise. Portanto, podemos afirmar que aquela é uma expressão fabricada por eles para causar pânico nas suas bases e, assim, gerar a comoção necessária para implementar seu projeto reacionário e autoritário para a Educação.

Na Câmara Legislativa do DF, há PLs em tramitação como o 1138/2016, de autoria de Sandra Faraj (SDD), que não só proíbe a “aplicação da ideologia de gênero” como visa a impedir que qualquer proposição que relacione o termo gênero à construção de políticas pedagógicas seja sequer discutida pela Câmara. Na justificativa do projeto, encontramos um festival de estupidezes de todos os formatos. Referenciando-se em nota política emitida por uma pequena associação de pediatras conservadores estadunidenses, a parlamentar diz que “ideologia de gênero” é uma “corrente” que contraria “até a teoria da evolução, a biologia e tudo mais que já se ouviu falar” (sic). Ironicamente, Faraj afirma que conceitos como identidade de gênero e orientação sexual foram suprimidos dos textos do PNE e do PDE por “falta de base científica”.

Assim sendo, os (as) parlamentares que se utilizam da expressão “ideologia de gênero” em seus projetos deveriam ser convocados a revelar as devidas referências teóricas e políticas associadas ao termo. Não podemos aceitar que a Câmara Legislativa, que deveria reunir representantes do povo para estudar, discutir e propor de forma séria e consequente, se dê o luxo de basear seus debates em expressões fraudulentas sem nenhuma fundamentação teórica ou política.

Educar para a igualdade

Enquanto isso, no mundo real, as mulheres continuam sofrendo todos os tipos de violência sexista, sendo as negras as mais vulneráveis. Os dados atestam:

3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em relacionamentos. (Instituto Avon/Data Popular – 2014)

56% dos homens admitem já ter praticado algum tipo de violência. (Instituto Avon/Data Popular – 2013)

Em 2015, um relato a cada 7 minutos. 85.85% dos casos estão no ambiente doméstico; quase 70% dos agressores são parceiros ou ex-parceiros. Mais da metade dos assassinatos de mulheres se dão em contexto de violência doméstica. Maioria das vítimas são negras. (Levantamento do Ligue 180)

De acordo com a publicação Estatísticas de Gênero – Uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010, do IBGE, pode-se inferir que as mulheres ainda são maioria entre os desempregados, entre os trabalhadores informais ou precarizados. Quanto aos rendimentos, as mulheres recebem, em média, 67,7% do rendimento dos homens que realizam mesma função. Essa realidade é mais cruel com as mulheres negras e as rurais.

Menos de 10% da Câmara dos Deputados são mulheres, o que prejudica decisivamente a capacidade do Poder Legislativo de produzir e aprovar políticas de combate a essa triste realidade.

O conceito de gênero nos ensina que nenhum desses dados é natural ou inevitável, mas sim, que podemos formar seres humanos capazes de romper com as desigualdades e construir um mundo melhor para todos e todas. O que não é natural pode ser mudado. A Educação precisa estar a serviço do combate à cultura do estupro, da discriminação e às diversas formas de violência e de opressão, contribuindo para formar cidadãos e cidadãs a partir de valores como respeito, igualdade e solidariedade.

Conforme fica nítido no discurso dos defensores e defensoras da Lei da Mordaça, a real intenção dessa iniciativa é manter as relações de poder tal qual estão: opressão das mulheres, exclusão dos negros e negras, invisibilização da população LGBT. Todas as pessoas que desejam construir um mundo melhor precisam se opor firmemente à Lei da Mordaça.

* Ruth Brochado, professora e militante feminista, é diretora da Secretaria de Mulheres do Sinpro-DF; Alessandra Terribili, mestra em ciência política e militante feminista, é assessora política do Sinpro-DF.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A culpa não é de São Paulo

Não vociferem contra o povo de São Paulo, não classifiquem a cidade como o motor do atraso, resistam à tentação de desejar que todo mundo lá se foda. A culpa não é de São Paulo. A culpa não é dos paulistanos. A culpa não é do povo da periferia.


A maior cidade do país é o espelho principal das nossas maiores contradições, sem nunca ter se conformado com elas. Ela não é imprevisível, ela não é uma geleia desforme. Ela não é de direita.

Quando a esquerda partidária recém se reerguia após vinte e um sombrios anos de ditadura militar, São Paulo elegeu uma mulher paraibana prefeita. Foi uma grande prefeita, valorizou o serviço público, priorizou a Educação, a Saúde, a Cultura Popular. Isso não se faz impunemente, e um personagem que muitos então consideravam morto (dada a sapiência nacional quanto ao seu compromisso com a derrotada ditadura, bem como quanto à sua vocação para a corrupção) foi ressuscitado pela elite que lhe entregou a tarefa do botar a cidade "nos eixos". Da força da grana que ergue e destrói coisas belas, ressurgiu Paulo Maluf para gritar diante de todos nós que a cidade não é nossa não senhor, que os servidores devem se colocar no seu devido lugar, que é o mercado que deve organizar a vida das pessoas. E dá-lhe obras milionárias, superfaturadas e pouco úteis. Sonhando ser presidente da República, essa criatura entregou a Prefeitura da maior cidade do país para o poste da vez, Celso Pitta, que ninguém conhecia, que tinha sido seu Secretário de Finanças (pense num ser que cuidou das Finanças numa gestão de Paulo Maluf), que tinha feito pós-graduação nos EUA e continuaria o trabalho do seu padrinho. Só que ele e seus vereadores foram com tanta sede ao pote que realmente trataram a cidade como propriedade sua, e caçoaram do povo paulistano em escândalos de corrupção explícita numa época em que era preciso bem mais que convicção do Ministério Público para prender alguém. Então, em 2000, quando nacionalmente se avistava uma onda vermelha, levantada pelos braços fortes e cansados de homens e mulheres que passaram toda aquela década resistindo ao neoliberalismo, às privatizações e à corrupção, São Paulo estava doente de tudo isso, e mais uma mulher conseguiu vencer a disputa pela Prefeitura, enfrentando o machismo que a reduzia a esposa de alguém e a condenava ao rótulo de "sexóloga". Ela foi uma grande prefeita, revolucionou o modelo de transportes, iniciou um processo de ligação centro-periferia que seus sucessores não conseguiram destruir. Não se faz isso impunemente, e lá veio José Serra defender o legado de tédio, do nojo e do ódio que fora derrotado nas eleições nacionais justamente na sua própria figura. E Serra reinverteu as prioridades, governou com os poderosos no bolso e nos gabinetes, não concluiu seu mandato para manter sua tradição pessoal e entregou a cidade a um aventureiro representante legítimo da covarde e escravocrata elite paulistana. Gilberto Kassab conseguiu se reeleger com o apoio de seu padrinho (que, inclusive, já em guerra interna pela hegemonia do próprio partido, só fingiu que seu candidato era aquele que hoje governa o estado e que acaba de eleger prefeito um homem que é só sua invenção tresloucada). E depois daquele marasmo todo, a cidade, acorrentada, debateu-se forte mais uma vez para poder entregar a condução dela ao cientista político, ex-Ministro da Educação, que olhou São Paulo como um todo e aceitou o desafio de transformá-la numa panamérica de áfricas utópicas em que as pessoas têm direito à própria cidade. Não se faz isso impunemente.

São Paulo está acorrentada, mas se debatendo. A cidade é viva, e mais do que nunca, graças à nossa última intervenção nela. A decisão dos paulistanos, outra vez, foi a pior possível. Mas quem aqui é ingênuo a ponto de pensar que os paulistanos tomaram essa decisão livremente, e em condições justas de disputa? A importância de São Paulo é enorme, é decisiva para nós como é para eles, e todos nós sabemos disso. É por isso que nós jamais conseguimos transformar a cidade impunemente, mas eles também não conseguem reverter as nossas conquistas com facilidade. É por isso que, em 28 anos, a cidade acorrentada está sempre se debatendo, sem se conformar, sem permitir. É por isso que, nesse poço de contradição, São Paulo é referência nossa sim. É por isso que, nesse tempo todo, eles utilizaram o pior que há em seu arsenal para construir a rejeição de Luiza Erundina, de Marta Suplicy, de Fernando Haddad. Parece que não dá pra acreditar. Mas dá sim.

A cidade que, generosa e imponente, ofereceu palco e cenário para a reconstrução da esquerda nacional, que é sede do PT, da CUT, do MST, do MTST, do PSOL, da Marcha Mundial das Mulheres; também garante terreno para a Fiesp, para a Opus Dei, para o Luciano Huck e os empreendimentos de gente que treina o sorriso no espelho todo dia para disfarçar a podridão de sua trajetória real. Tudo isso convive, e não em paz. A cidade acorrentada se debate sempre. A culpa não é do povo.

O ódio sem noção, sem sentido, sem razão (como todo ódio) do qual Erundina foi vítima, Marta foi vítima, Haddad é vítima e todos nós temos sido vítimas mais do que nunca. Ódio que se apropriou dos nossos erros, mas é motivado pelos nossos acertos. Ódio cuidadosamente elaborado nas salas fechadas nas residências do Poder Judiciário, dos banquetes palacianos, do Parlamento, da mídia, do grande empresariado nacional e internacional. Foram eles que pagaram a campanha do playboy colunista social cafona e hipócrita. Foi deles que veio o discurso. Foram eles que usaram Russomano para isso. São eles que, a partir de agora, se digladiarão internamente em batalhas fatais para escolher qual dos dois será o condutor desse projeto nacional daqui por diante: o pai de Kassab ou o pai de Dória.

São Paulo está acorrentada, mas ela não se acorrentou sozinha não. Não odeiem a cidade, seu povo, muito menos aqueles e aquelas que seguem fazendo dela o mais possível quilombo de Zumbi. O que fizemos e fazemos em São Paulo é referência e motivo de orgulho, e é assim que nossa metrópole nos deixa a principal lição que se pode assimilar de mais este processo viciado de eleições: nós, lutadores e lutadoras, jamais executaremos nosso programa impunemente.