domingo, 18 de dezembro de 2016

Minha falta

A sua falta já não é sua
É minha, agora
Fico à vontade com ela
Conversamos, bebemos
Às vezes compomos
E ela descarta o que não gosta

Porque se é minha é alegre
Desbocada e displicente
Não chora nem grita
Não lastima
Não implora

A sua falta é minha
E tem a minha cara agora.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Um golpe contra a Educação e o Magistério

Por Gabriel Magno, Iolanda Rocha, Ruth Brochado, Hamilton 
Caiana, Henrique Torres e Alessandra Terribili*

A esta altura do campeonato, boa parte da população brasileira já entendeu o que estava em jogo quando partidos de direita, sindicatos patronais e os setores mais conservadores da sociedade se articularam para aplicar o golpe de Estado que está em curso. Reforma da Previdência, congelamento do investimento público por 20 anos, Ensino Médio sob ameaça e muita repressão. É nesse contexto que ganham força as teses conservadoras e autoritárias da ONG “Escola Sem Partido”.

Antes de mais nada, é preciso destacar que os projetos de lei que levam esse nome não se referem à presença ou não de partido na escola. Como todo agrupamento que se autodeclara “apartidário”, esse também visa a manipular o senso comum de forma hipócrita e oportunista para fazer prevalecer a sua própria ideologia.

A real intenção do Projeto de Lei da Mordaça é eliminar das salas de aula o contraditório, a diversidade, o pensamento crítico. Para quem ainda tem dúvida, basta saber que por trás desses PLs está o Instituto Millenium, conhecido espaço de elaboração da direita brasileira, que reúne figuras alimentadas pelo ódio de classe e intolerância, como Rodrigo Constantino e Diogo Mainardi. Tal coletivo conta com a participação entusiasmada de PSDB e DEM. Fica óbvio, portanto, que a “Escola Sem Partido”, de sem partido, não tem nada.

As iniciativas desastradas e autoritárias

Foi Izalci Lucas (PSDB-DF) quem tomou as premissas da ONG comandada por Miguel Nagib para apresentá-las em formato de projeto de lei à Câmara Federal (PL 867/2015). Nenhuma surpresa, afinal, as propostas do PSDB para a Educação ficaram claras nos oito anos de Governo FHC e nos estados de São Paulo, Paraná e Goiás, suas principais vitrines, caracterizados pelo sucateamento da escola pública e pela truculência e desvalorização com que se tratam os professores e estudantes.

Ainda que a Lei da Mordaça não tenha sido aprovada, alguns parlamentares já se utilizam dela para promover a perseguição de professores (as) e a censura, recuperando esses fundamentais elementos da ditadura militar. O projeto proíbe professores (as) de convidar seus estudantes para manifestações, atos públicos e passeatas. Um ataque deliberado à liberdade de manifestação e de organização, que remete outra vez e com mais ênfase ao período ditatorial.

Na Câmara Legislativa do Distrito Federal, Sandra Faraj (SD) e Rodrigo Delmasso (PTN) lideram um conjunto de deputados (as) que têm se esmerado em formular propostas absurdas para a Educação, sempre com forte viés autoritário e desprezo por professores (as) e orientadores (as). Na mesa do governador Rollemberg, por exemplo, está o PL 137/2015, aguardando sanção ou veto. O projeto busca levar os “valores de família” às salas de aula como temática transversal. Por trás de cada iniciativa desastrada como essa está a intenção de impor um conceito de família pertinente a uma crença específica; que reprime e marginaliza aqueles e aquelas que não se enquadram nos seus conceitos particulares. É uma violência contra a democracia, a laicidade do Estado e a liberdade de pensamento e de crença.

Sandra Faraj também tem enviado ofícios a escolas para cobrar explicações e “providências” contra professores e professoras que trabalham com seus/suas estudantes questões relativas aos direitos humanos, argumentando que as questões de gênero e de orientação sexual foram retiradas do PDE (Plano Distrital de Educação). Infelizmente, a deputada e sua assessoria parecem desconhecer a Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394/1996), que estabelece em seu artigo 3º “o respeito à liberdade e apreço à tolerância” como princípios básicos do ensino. Esquece também que a Lei Orgânica do DF estabelece em seu artigo 2º que “ninguém será discriminado ou prejudicado em razão de convicções políticas ou filosóficas e orientação sexual”, e que o artigo 3º determina que um dos objetivos prioritários do Distrito Federal é “garantir e promover os direitos humanos assegurados na Constituição Federal e na Declaração Universal dos Direitos Humanos”. A mesma Lei Orgânica destaca em seu artigo 235 que “a rede oficial de ensino incluirá em seu currículo, em todos os níveis, dentre outros conteúdos programáticos, a educação sexual”, e no 237, que “é dever do Poder Público estabelecer políticas de prevenção e combate à violência e à discriminação, particularmente contra a mulher, o negro e as minorias”. Além de ignorar a Constituição Federal, que assegura a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; a valorização dos profissionais da educação escolar e a gestão democrática do ensino público (artigo 206).

O PELO (Projeto de Emenda à Lei Orgânica) nº 38, assinado pelo deputado Rodrigo Delmasso, quer incorporar à Lei Orgânica do DF a “garantia do direito dos pais a que seus filhos recebam educação moral de acordo com suas próprias convicções”. Não é apenas autoritário, mas também profundamente obtuso: numa sala de aula que, via de regra, representa a pluralidade presente na nossa sociedade, como obedecer à orientação moral de um desconsiderando a do outro e abstraindo a sua própria?

Causa-nos profunda indignação que esses (as) parlamentares desconheçam os reais problemas das escolas públicas do DF hoje; ou que não estejam preocupados (as) em solucionar a situação dramática da saúde pública, do transporte coletivo ineficiente e caro, e das profundas desigualdades sociais no Distrito Federal. Resta-lhes, portanto, muito tempo para executar patrulha moral sobre o trabalho sério que professores e professoras desenvolvem nas nossas escolas, visando a construir tolerância, respeito e igualdade.

Questões de gênero, orientação sexual e combate ao racismo

Ao inventar a expressão “ideologia de gênero”, os porta-vozes da direita conservadora e intolerante buscam massacrar a diversidade. Assim, pretendem manter a comunidade LGBT invisibilizada e marginalizada; e contribuem para a reprodução das tantas violências cometidas contra mulheres e população negra cotidianamente. As consequências disso estão diariamente nos noticiários: pessoas homossexuais assassinadas em crimes de ódio; mulheres estupradas, violentadas, mortas em crimes de misoginia; negros e negras sofrendo todo tipo de violência, perseguição, exclusão e preconceito. Claro, pois segundo os idealizadores do Projeto de Lei da Mordaça, a escola não é lugar de combater a cultura do ódio, da discriminação e da opressão.

De acordo com Bráulio Porto de Matos, um dos principais defensores da Lei da Mordaça, em debate na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados no último dia 31 de maio, o ensino de história e cultura da África nas escolas deveria ser extinto. Para ele, tal conteúdo expressa uma ideologia: “Então, deveríamos estudar a história da Itália, da Alemanha, do Japão”, disse. E foram exatamente esses três os países citados.

A incomensurável tolice de tal aferição reside no fato de que nossas escolas, ao falar das origens do povo brasileiro, sempre abordaram a história e cultura europeias quase que exclusivamente. Da mesma forma, os seguidores do PL da Mordaça pretendem eliminar, ou, no mínimo, reduzir substancialmente a importância da história política e socioeconômica da América Latina. Para os defensores e defensoras da Mordaça, nossos alunos devem ser limitados a conhecer a história e a cultura dos povos europeus e estadunidenses, filtrando o conhecimento ao qual eles podem ou não ter acesso. Nada mais ideológico que isso.

Não vai ter golpe contra a Educação

A ideologia da Escola Sem Partido é óbvia: a manutenção e o recrudescimento do padrão de opressões que nosso país conhece há mais de 500 anos, com seus atentados à soberania nacional e subordinação a interesses das tradicionais potências estrangeiras.

Esses aspectos marcam também o golpe em curso: ele é contra os(as) trabalhadores(as), como vimos anunciando há meses. O golpe é pela reversão dos avanços conquistados desde a Constituição de 88 e aprofundados nos últimos 12 anos, e pelo restabelecimento da lógica da mercantilização de direitos e da organização do Estado neoliberal com elementos fascistas, patriarcais e racistas.

Por isso é imprescindível impor uma derrota acachapante ao Projeto de Lei da Mordaça. Em defesa da democracia, dos direitos sociais, e da soberania do povo brasileiro. Afinal, os Projetos de Lei oriundos da ONG “Escola Sem Partido” têm mesmo a cara do segmento que os concebeu: além de colonialista, subserviente, escravocrata e intolerante; é ignorante.

* Gabriel Magno, Iolanda Rocha, Ruth Brochado e Hamilton Caiana são diretores do Sinpro-DF; Henrique Torres é dirigente da CUT-DF; Alessandra Terribili é jornalista e assessora política do Sinpro-DF.

sábado, 19 de novembro de 2016

O feminismo é uma prática*

Um dos melhores abraços que já ganhei na vida veio acompanhado de uma frase forte: “Muito obrigada por nunca ter desistido de mim”. Eu estava chegando a um Encontro de Mulheres da UNE, onde iria palestrar, e a moça se dirigiu a mim antes mesmo de eu entrar no local.

Eu a conhecia havia algum tempo. Era uma aguerrida militante do movimento estudantil, cheia de disposição, inteligente, forte. Ocorre que não gostava do feminismo. “Ai, Alê, desculpa, eu gosto de você, mas essa coisa de feminismo não é pra mim não”, ela dizia, justificando-se ora na dificuldade que tinha com pautas delicadas, como a questão do aborto, ora porque considerava que sua trajetória individual prescindia de “muletas” para alcançar seu lugar.

Agora, eu a encontrava feliz no Encontro de Mulheres Estudantes da UNE (EME), realizada na plataforma feminista e transformada como militante e como pessoa. Disse-me que o feminismo mudou sua vida. E, certamente, ela faz diferença na vida de muitas mulheres hoje.

Não é um caso isolado. Neste meu caminho de mais de 15 anos no feminismo, conheço muitas companheiras que já se disseram “femininas e não feministas”, ou que não vão se meter com “pauta de mulher”; e hoje são corajosas e determinadas defensoras da plataforma feminista nos espaços que ocupam.

A gente não tem o direito de desistir de ninguém. Nossa luta é dura, o caminho é longo e difícil. Todas são importantes. Como era mesmo aquela palavra de ordem... Nenhuma a menos, certo?

Aprendi com o movimento de mulheres que a gente deve acreditar nas mulheres. Quando elas narram uma situação de violência que sofreram, mas o homem nega. Quando elas se sentem incapazes de fazer uma fala em público. Quando elas participam do movimento de mulheres, mas têm dificuldade de enfrentar o patriarcado na própria casa. Quando elas dizem que não precisam de feminismo.

Eu nunca desisti daquela moça mesmo, e me alegro quando lembro aquela tarde em Salvador. Orgulho-me de não ter aproveitado nenhuma das chances que se me apareceram de desqualificar uma mulher com base nos argumentos machistas que combato, mesmo quando essa mulher já se utilizou da sua condição hierárquica sobre mim para me constranger.

Fui formada numa tradição que entende que podemos ter convergência no feminismo e divergência na conjuntura. Que podemos ter convergência na conjuntura e divergência no feminismo. O que nós não podemos nunca nunca é pensar que podemos prescindir umas das outras. Ou pior: não podemos em hipótese alguma afastar ou excluir mulheres das nossas fileiras. Ou pior ainda: JAMAIS desqualificar de forma leviana uma mulher que frequenta os espaços de debate feminista, a fim de expulsá-la de lá. Mesmo se algum dia ela tenha dito que é feminina e não feminista. Mesmo que você não vá com a cara dela. Mesmo que você a confronte nas instâncias políticas cabíveis.

Na minha humilde opinião, aquela que pensa que pode excluir mulheres da “sua” luta precisa mais de ajuda que aquela que ainda não se convenceu do feminismo. De minha parte, estou aqui para estender-lhe a mão. Foi o feminismo que me ensinou que é assim que eu devo agir.

____
* Esse foi o título de um dos processos de formação e debate que organizamos com as mulheres da Juventude do PT, há muitos anos. Sigo confiando muito nessa premissa.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

A violência do golpe

Um ano atrás, professores e professoras em greve no Distrito Federal foram covardemente atacados pela Tropa de Choque a mando do Governador Rollemberg e seus cúmplices. A manifestação paralisou o Eixão na saída norte e na saída sul por cerca de meia hora, e nós já estávamos nos dirigindo aos nossos carros para sair de lá quando a polícia chegou e promoveu aquele festival de agressões, arbitrariedades e pancadaria que nunca vamos esquecer.

Era só o começo de um triste período marcado por violência, violação de direitos e retrocessos até no plano cívico. Um ano depois, a lei do Plano de Carreira do magistério segue sem ser cumprida - o governador anunciou que, mais uma vez, descumprindo o acordo de fim de greve, ele não vai pagar a última parcela do referido Plano.

A greve é um instrumento legítimo da classe trabalhadora. Ninguém faz greve por esporte, é o último recurso para quem só tem a paralisação da própria força de trabalho como mecanismo para garantir a efetivação de seus direitos. É difícil construir uma greve, é difícil manter uma greve. Mas é preciso fazer greve. Os responsáveis por existirem greves não são os trabalhadores, são seus patrões.

O Plano de Carreira dos professores e professoras do DF é motivo de orgulho da categoria, e foi conquistado com muita luta, depois de uma greve de 52 dias em 2012. O que Rollemberg faz agora é desrespeitar a lei. Entretanto, quem é punido pela Justiça são aqueles que lutam para fazer valer a lei.

Infelizmente, a cada dia que passa, mais elementos nos indicam que o golpe que tanto denunciamos nos trouxe a um Estado de exceção, no qual governo golpista, Congresso Nacional e Poder Judiciário estão articulados e empenhados em esmagar os trabalhadores (as), suas organizações e ações políticas.

O STF anulou o direito de greve garantido pela Constituição de 1988. Há, a todo momento, ameaças de ações truculentas contra a ocupação de escolas por estudantes secundaristas, que nos dão uma aula em defesa da Educação ao levantar-se contra a MP do Ensino Médio, autoritariamente lançada pelo governo golpista para sucatear o ensino público.

Um ano atrás, aquelas imagens chocaram o país inteiro: professores e professoras sendo covardemente violentados em Brasília pela Polícia Militar. Alguns foram presos, alguns sangraram, outros entraram em estado de choque. As marcas ficaram em todos nós que estávamos lá, e também, em milhares que não estavam. E por mais que já suspeitássemos, ainda não sabíamos, então, que a violência do golpe se recrudesceria a cada dia.

Cassaram nossos votos ao cassar a presidenta que elegemos. Constituíram um governo golpista com os nomes e programa daqueles que tinham sido derrotados nas urnas. Sob o pretexto de combater a corrupção, inauguraram um Estado de exceção no qual a esquerda é suspeita de tudo, exatamente como foi em 1964. Depois, construíram fortes para proteger os corruptos, seus mandatos e suas propriedades. Vão estrangular a educação e a saúde pública por vinte anos, entregar o pré-sal para as potências imperialistas, e nos proíbem de reagir.

Se isso não é ditadura, não sei que nome tem.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O menino e a lua

Séculos atrás, um menino se apaixonou pela lua. Já tinha mais de 20 anos de idade, e sabia um pouco como a vida funcionava. Nunca esperou da lua o que a lua não lhe pudesse oferecer, mas a felicidade plena se realizava nele quando a lua cumpria seu esplendoroso potencial de despertá-lo. Conheciam-se bem, o menino sabia das fases, entendia quando a lua preferia encobrir-se sob nuvens. Os eclipses eram seu show para o mundo, a lua não havia de exibir-se só para ele. Entendia. Era assim a relação, de expectativas comedidas, compreensão e explosões de amor.

Quantas vezes se não lhe disseram que aquele amor não prosperaria, que era impossível manter-se enamorado pela lua? Mas o menino trazia um céu de serenidade nos olhos, e, se sentia saudades ao longo do dia, a chegada da noite o acalentava como abraço nenhum neste mundo. Conversavam, trocavam confidências, cuidavam-se, beijavam-se silenciosos, banhavam-se em leves águas prateadas, e ele se deixava levar, às vezes, mais do que devia. Claro que doía o trajeto de volta ao ponto de onde não é permitido ultrapassar. Mas sentir dor é coisa da vida. No plano dos sentimentos, não há experiência que não cause dor. E se houver, há de ser coisa infeliz, porque incapaz de sentir com o corpo e a alma inteiros de uma vez.

Quem se apaixonava por estrelas cadentes ou seres humanos, casava-se, gerava herdeiros, dividia contas, problemas e soluções, jamais conseguia entender aquele amor. É fadado ao fracasso, evidente!, acusavam.

E são diferentes as estrelas cadentes e os seres humanos?, perguntava ele, curioso. São perfeitamente harmoniosos esses encontros? Você consegue suportar as contradições imprevisíveis como eu posso suportar as previsíveis? E via pelo mundo traição, violência, mentira e desamor. Por que meu amor é menos real do que isso? Por que temem pelo meu sofrimento se ele é comum a todos nós?

Ora, já se apaixonaram pela lua antes, respondiam-lhe. Nunca vingou, é história pré-determinada: acaba triste.

E o menino assistiu, ao longo de décadas, romances de estrelas cadentes e seres humanos se acabarem tristes. Por traição, violência, mentira, desamor, ou mesmo pela morte. No renascer das almas, aqueles seres não se reconheciam mais. Enquanto isso, o fim jamais chegou para ele e a lua. O menino renasce em flor, coruja, pássaro, borboleta e ser humano, sempre no mesmo amor, e a lua continua iluminando-o risonha em prateado, como se fosse a primeira vez.

Leonid Tishkov, Private Moon

sábado, 15 de outubro de 2016

Uma aula para Alice

Ao longo de sua caminhada pelo País, Alice carregava uma mochila na qual guardava as coisas que recolhia no percurso. Como o trajeto tinha sido longo, a mochila estava cheia. Lá pelas tantas, ela deu falta de alguma coisa. Não sabia o que era, mas sabia que alguma coisa estava faltando.

Era estranho, porque a mochila pesava mais que nunca. Como era possível que alguma coisa tivesse caído? Talvez fosse uma coisa leve.

Também, não adiantava ficar preocupada. Perdeu, perdeu. Não tem jeito: perder coisas pelo caminho é normal. Tomara que não fosse nada essencial.

O problema é que, com o passar do tempo e do caminho, a falta revelou-se avassaladora, e não dava pra percorrer o trajeto inverso buscando. Andara muito já. Um vazio tomava lugar em seu coração, mas não sabia o que fazia tanta falta, que tamanho tinha, qual a cor, a forma. Sabia que era leve, porque caiu da mochila sem fazer alarde.

Certo dia, apareceu-lhe o Gato Risonho.

- Noto que estás estranha, Alice.

- Pois perdi alguma coisa que não sei o que é.

- Talvez por isso a senhorita esteja meio ranzinza? - considerou o Gato - Seus passos andam mais duros.

- É porque quero ir rápido, mas não posso, a mochila pesa demais.

- Ninguém lhe ajuda?

- Não pedi ajuda...

Mirando Alice fixamente nos olhos, o Gato sentenciou:

- Você perdeu foi a esperança, Alice.

Era essa a falta que ela sentia em vão! Atordoada pela descoberta, Alice se entristeceu. Não sabia em que parte do caminho a esperança havia ficado, ou por onde havia se espalhado, talvez despedaçada, talvez esparramada aos poucos. Não sabia como resgatá-la.

Vai ver é assim mesmo, faz parte do caminhar. A esperança desbota, gasta, vaza - que nem aquelas almofadas de bolinhas de isopor, quando furam sem que você perceba. Que nem tudo que você usa muito. Gasta, ué, é assim mesmo.

Alice estava quase conformada, quando um homem que tinha nos olhos a cor das folhas que caem no outono cruzou o seu caminho.

- E por que, Alice, você não pediu ajuda a ninguém para levar esse peso? - ele quis saber.

- Não sei bem... Acho que não confio nas pessoas. A maioria delas não é boa não.

Ao ouvir aquilo, o homem adoçou a voz ternamente e respondeu com uma pergunta:

- Lembra-se, Alice, quando você era uma menina, antes ainda de encontrar este País das Maravilhas?

- Um pouco.

- Lembra-se da sua casa? Dos vizinhos que moravam à sua direita? À sua esquerda? Lembra-se dos vizinhos da frente?

Alice lembrava pouco, mas o pouco que lembrava era bom. Nenhum deles era lá muito normal, não. Mas veio à boca o gosto do bolo de cenoura coberto por chocolate que a senhora da frente fazia e compartilhava. As broncas rabugentas que ouvia da velhinha da direita cada vez que a bola escapava para a casa dela - mas ela sempre devolvia. As festas juninas na rua, os sorteios de bicicletas. As tardes de domingo. Mas lembrou-se, principalmente, de que a forma como a gente olha para as coisas e para as pessoas é parte fundamental do que a gente vê.

- Então, Alice. Aquelas pessoas eram boas - disse ela - Por que você pensaria que não?

Alice lavou os olhos de dentro pra fora para limpar toda desilusão que eles ainda guardassem. E assim, viu que, na verdade, ela não tinha perdido a esperança não. Ela estava ali o tempo todo, enrolada em outras coisas, misturada, sufocada dentro da mochila.

Olhou agradecida para aquele homem, e logo deduziu: para ser capaz de ensinar coisa importante assim, como salvar a esperança da omissão, de duas, uma: ou ele é professor, ou é um anjo que alguém me mandou.

Mas Alice não queria que ele fosse embora morar nas nuvens, então, passou a chamá-la de Professor. Era isso mesmo que ele era.

***
Minha singela homenagem a essa categoria tão indispensável e tão especial, com quem tenho muito orgulho de trabalhar. 

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Fraudes, mentiras e falácias: fundamentos da Lei da Mordaça

Ruth Brochado e Alessandra Terribili*

Que os PLs autodenominados “Escola Sem Partido” baseiam suas premissas em falácias, todos já sabemos. A principal delas reside no próprio nome, afinal, o projeto não se refere à disputa partidária no interior das escolas. O que ele pretende, de fato, é assegurar o predomínio de suas próprias convicções conservadoras, forjando um pensamento único caracterizado pela intolerância e pela ignorância.

No DF, os porta-vozes das trevas adotaram a tática de fatiamento do projeto, ou seja: fragmentaram-no e apresentaram-no em partes, inclusive apelando a fundamentos inconstitucionais. Seus idealizadores propõem a perseguição de professores (as) e a censura de conteúdos sob o pretexto de defender o “direito dos pais a que seus filhos menores recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Ora, e como cumprir tal promessa em meio a uma diversidade de convicções, expectativas, referências morais e visões de mundo que há numa sala de aula? E mais: é desejável que, num espaço público, os diferentes não entrem em contato?

Portanto, a Lei da Mordaça não é apenas uma falácia, é também hipócrita e autoritária. Ao anunciar sua cruzada contra uma suposta “doutrinação” praticada por professores e professoras, os defensores (as) da Mordaça pretendem, na realidade, manter sua doutrinação particular. Para isso, precisam expulsar o senso crítico das escolas, como quis fazer a ditadura militar de diversas formas – inclusive, prendendo, exilando, torturando e matando professores (as).

Gênero

Para argumentar suas frágeis teses, os autores dos Projetos de Lei da Mordaça apelam a conceitos vazios, como a tal “ideologia de gênero”.

Na literatura feminista, o conceito de gênero aparece pela primeira vez em 1975, na definição de Gayle Rubin. Basicamente, trata-se de afirmar que a desigualdade entre homens e mulheres, geradora de toda sorte de violência, conflitos e exclusão, não é natural, mas sim, construída socialmente. Isso quer dizer que a opressão das mulheres é sustentada há séculos por valores morais e práticas sociais e econômicas que condenam a mulher à submissão. De acordo com os idealizadores da Lei da Mordaça, são esses os valores morais que devem circular livremente nas escolas, sem questionamento ou confronto de ideias.

Não há teórica ou liderança feminista que utilize o termo “ideologia de gênero” para se referir a qualquer coisa. “Gênero” não é uma “ideologia”, mas sim, um conceito, uma categoria de análise. Portanto, podemos afirmar que aquela é uma expressão fabricada por eles para causar pânico nas suas bases e, assim, gerar a comoção necessária para implementar seu projeto reacionário e autoritário para a Educação.

Na Câmara Legislativa do DF, há PLs em tramitação como o 1138/2016, de autoria de Sandra Faraj (SDD), que não só proíbe a “aplicação da ideologia de gênero” como visa a impedir que qualquer proposição que relacione o termo gênero à construção de políticas pedagógicas seja sequer discutida pela Câmara. Na justificativa do projeto, encontramos um festival de estupidezes de todos os formatos. Referenciando-se em nota política emitida por uma pequena associação de pediatras conservadores estadunidenses, a parlamentar diz que “ideologia de gênero” é uma “corrente” que contraria “até a teoria da evolução, a biologia e tudo mais que já se ouviu falar” (sic). Ironicamente, Faraj afirma que conceitos como identidade de gênero e orientação sexual foram suprimidos dos textos do PNE e do PDE por “falta de base científica”.

Assim sendo, os (as) parlamentares que se utilizam da expressão “ideologia de gênero” em seus projetos deveriam ser convocados a revelar as devidas referências teóricas e políticas associadas ao termo. Não podemos aceitar que a Câmara Legislativa, que deveria reunir representantes do povo para estudar, discutir e propor de forma séria e consequente, se dê o luxo de basear seus debates em expressões fraudulentas sem nenhuma fundamentação teórica ou política.

Educar para a igualdade

Enquanto isso, no mundo real, as mulheres continuam sofrendo todos os tipos de violência sexista, sendo as negras as mais vulneráveis. Os dados atestam:

3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em relacionamentos. (Instituto Avon/Data Popular – 2014)

56% dos homens admitem já ter praticado algum tipo de violência. (Instituto Avon/Data Popular – 2013)

Em 2015, um relato a cada 7 minutos. 85.85% dos casos estão no ambiente doméstico; quase 70% dos agressores são parceiros ou ex-parceiros. Mais da metade dos assassinatos de mulheres se dão em contexto de violência doméstica. Maioria das vítimas são negras. (Levantamento do Ligue 180)

De acordo com a publicação Estatísticas de Gênero – Uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010, do IBGE, pode-se inferir que as mulheres ainda são maioria entre os desempregados, entre os trabalhadores informais ou precarizados. Quanto aos rendimentos, as mulheres recebem, em média, 67,7% do rendimento dos homens que realizam mesma função. Essa realidade é mais cruel com as mulheres negras e as rurais.

Menos de 10% da Câmara dos Deputados são mulheres, o que prejudica decisivamente a capacidade do Poder Legislativo de produzir e aprovar políticas de combate a essa triste realidade.

O conceito de gênero nos ensina que nenhum desses dados é natural ou inevitável, mas sim, que podemos formar seres humanos capazes de romper com as desigualdades e construir um mundo melhor para todos e todas. O que não é natural pode ser mudado. A Educação precisa estar a serviço do combate à cultura do estupro, da discriminação e às diversas formas de violência e de opressão, contribuindo para formar cidadãos e cidadãs a partir de valores como respeito, igualdade e solidariedade.

Conforme fica nítido no discurso dos defensores e defensoras da Lei da Mordaça, a real intenção dessa iniciativa é manter as relações de poder tal qual estão: opressão das mulheres, exclusão dos negros e negras, invisibilização da população LGBT. Todas as pessoas que desejam construir um mundo melhor precisam se opor firmemente à Lei da Mordaça.

* Ruth Brochado, professora e militante feminista, é diretora da Secretaria de Mulheres do Sinpro-DF; Alessandra Terribili, mestra em ciência política e militante feminista, é assessora política do Sinpro-DF.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A culpa não é de São Paulo

Não vociferem contra o povo de São Paulo, não classifiquem a cidade como o motor do atraso, resistam à tentação de desejar que todo mundo lá se foda. A culpa não é de São Paulo. A culpa não é dos paulistanos. A culpa não é do povo da periferia.


A maior cidade do país é o espelho principal das nossas maiores contradições, sem nunca ter se conformado com elas. Ela não é imprevisível, ela não é uma geleia desforme. Ela não é de direita.

Quando a esquerda partidária recém se reerguia após vinte e um sombrios anos de ditadura militar, São Paulo elegeu uma mulher paraibana prefeita. Foi uma grande prefeita, valorizou o serviço público, priorizou a Educação, a Saúde, a Cultura Popular. Isso não se faz impunemente, e um personagem que muitos então consideravam morto (dada a sapiência nacional quanto ao seu compromisso com a derrotada ditadura, bem como quanto à sua vocação para a corrupção) foi ressuscitado pela elite que lhe entregou a tarefa do botar a cidade "nos eixos". Da força da grana que ergue e destrói coisas belas, ressurgiu Paulo Maluf para gritar diante de todos nós que a cidade não é nossa não senhor, que os servidores devem se colocar no seu devido lugar, que é o mercado que deve organizar a vida das pessoas. E dá-lhe obras milionárias, superfaturadas e pouco úteis. Sonhando ser presidente da República, essa criatura entregou a Prefeitura da maior cidade do país para o poste da vez, Celso Pitta, que ninguém conhecia, que tinha sido seu Secretário de Finanças (pense num ser que cuidou das Finanças numa gestão de Paulo Maluf), que tinha feito pós-graduação nos EUA e continuaria o trabalho do seu padrinho. Só que ele e seus vereadores foram com tanta sede ao pote que realmente trataram a cidade como propriedade sua, e caçoaram do povo paulistano em escândalos de corrupção explícita numa época em que era preciso bem mais que convicção do Ministério Público para prender alguém. Então, em 2000, quando nacionalmente se avistava uma onda vermelha, levantada pelos braços fortes e cansados de homens e mulheres que passaram toda aquela década resistindo ao neoliberalismo, às privatizações e à corrupção, São Paulo estava doente de tudo isso, e mais uma mulher conseguiu vencer a disputa pela Prefeitura, enfrentando o machismo que a reduzia a esposa de alguém e a condenava ao rótulo de "sexóloga". Ela foi uma grande prefeita, revolucionou o modelo de transportes, iniciou um processo de ligação centro-periferia que seus sucessores não conseguiram destruir. Não se faz isso impunemente, e lá veio José Serra defender o legado de tédio, do nojo e do ódio que fora derrotado nas eleições nacionais justamente na sua própria figura. E Serra reinverteu as prioridades, governou com os poderosos no bolso e nos gabinetes, não concluiu seu mandato para manter sua tradição pessoal e entregou a cidade a um aventureiro representante legítimo da covarde e escravocrata elite paulistana. Gilberto Kassab conseguiu se reeleger com o apoio de seu padrinho (que, inclusive, já em guerra interna pela hegemonia do próprio partido, só fingiu que seu candidato era aquele que hoje governa o estado e que acaba de eleger prefeito um homem que é só sua invenção tresloucada). E depois daquele marasmo todo, a cidade, acorrentada, debateu-se forte mais uma vez para poder entregar a condução dela ao cientista político, ex-Ministro da Educação, que olhou São Paulo como um todo e aceitou o desafio de transformá-la numa panamérica de áfricas utópicas em que as pessoas têm direito à própria cidade. Não se faz isso impunemente.

São Paulo está acorrentada, mas se debatendo. A cidade é viva, e mais do que nunca, graças à nossa última intervenção nela. A decisão dos paulistanos, outra vez, foi a pior possível. Mas quem aqui é ingênuo a ponto de pensar que os paulistanos tomaram essa decisão livremente, e em condições justas de disputa? A importância de São Paulo é enorme, é decisiva para nós como é para eles, e todos nós sabemos disso. É por isso que nós jamais conseguimos transformar a cidade impunemente, mas eles também não conseguem reverter as nossas conquistas com facilidade. É por isso que, em 28 anos, a cidade acorrentada está sempre se debatendo, sem se conformar, sem permitir. É por isso que, nesse poço de contradição, São Paulo é referência nossa sim. É por isso que, nesse tempo todo, eles utilizaram o pior que há em seu arsenal para construir a rejeição de Luiza Erundina, de Marta Suplicy, de Fernando Haddad. Parece que não dá pra acreditar. Mas dá sim.

A cidade que, generosa e imponente, ofereceu palco e cenário para a reconstrução da esquerda nacional, que é sede do PT, da CUT, do MST, do MTST, do PSOL, da Marcha Mundial das Mulheres; também garante terreno para a Fiesp, para a Opus Dei, para o Luciano Huck e os empreendimentos de gente que treina o sorriso no espelho todo dia para disfarçar a podridão de sua trajetória real. Tudo isso convive, e não em paz. A cidade acorrentada se debate sempre. A culpa não é do povo.

O ódio sem noção, sem sentido, sem razão (como todo ódio) do qual Erundina foi vítima, Marta foi vítima, Haddad é vítima e todos nós temos sido vítimas mais do que nunca. Ódio que se apropriou dos nossos erros, mas é motivado pelos nossos acertos. Ódio cuidadosamente elaborado nas salas fechadas nas residências do Poder Judiciário, dos banquetes palacianos, do Parlamento, da mídia, do grande empresariado nacional e internacional. Foram eles que pagaram a campanha do playboy colunista social cafona e hipócrita. Foi deles que veio o discurso. Foram eles que usaram Russomano para isso. São eles que, a partir de agora, se digladiarão internamente em batalhas fatais para escolher qual dos dois será o condutor desse projeto nacional daqui por diante: o pai de Kassab ou o pai de Dória.

São Paulo está acorrentada, mas ela não se acorrentou sozinha não. Não odeiem a cidade, seu povo, muito menos aqueles e aquelas que seguem fazendo dela o mais possível quilombo de Zumbi. O que fizemos e fazemos em São Paulo é referência e motivo de orgulho, e é assim que nossa metrópole nos deixa a principal lição que se pode assimilar de mais este processo viciado de eleições: nós, lutadores e lutadoras, jamais executaremos nosso programa impunemente.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O Samba e as Lutas do Povo

A vida do nosso povo é a alma do samba. Aquele que sai da batalha, entra no botequim, pede uma cerva gelada e agita na mesa uma batucada. O povo que canta em versos suas dores, seus amores, suas lutas, mesmo naquela época em que alguém poderia ser preso simplesmente por portar um violão ou um pandeiro. Era um Brasil de Delegados Chico Palha, sem alma nem coração, querendo banir o samba e a corimba de sua jurisdição. Mas o violão e pandeiro ganharam os corações e os salões irreversivelmente, sob olhares furiosos dos senhores, que os queriam mudos ou domesticados, que queriam o samba "com livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor". E tantos foram calados, e tantos foram banidos, e tantos foram esquecidos.

Hoje, nesta Brasília amordaçada, cidade-arte, cidade-artista, reprimida, silenciada, onde ninguém ouviu o soluçar da dor no canto do Brasil, as coisas não mudaram tanto assim. A cidade emudecida, que já foi alegria. A cidade que já foi palco de Cássia, Zélia e Ednardo, a cidade que foi um sonho do Oscar, a cidade-borboleta. A cidade que hoje abriga aqueles que querem calar nossos sonhos com um golpe baixo na boca do coração.

Mas aqueles e aquelas que nos abriram os caminhos também nos ensinaram a seguir. É para eles que oramos, e com eles contamos ao nos defrontar com gente infeliz, que diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba. Valei-nos Nara Leão, Clara Nunes, João Nogueira, Noel Rosa, Chico Buarque, Cartola, Elis Regina, João Bosco, Aldir Blanc! Socorram-nos Zé Kéti, Gonzaguinha, Alcione, Paulo César Pinheiro, Nelson Sargento!

Nossa carne é feita da carne de todos aqueles que desde o início do século passado usaram notas musicais como armas em combate, que encantaram multidões a preferir um verso de samba do que escutar som de tiro. Eles e elas, que jamais se intimidaram, jamais aceitaram a imposição do silêncio, a proibição de pensar. Nós nos levantamos e eles vêm junto, fazer do nosso canto um canto mais forte. No nosso sangue tem a luta do nosso povo, nossas lágrimas contêm nossa ânsia de futuro, nossos passos apontam nosso gosto pela vida. Nossos instrumentos produzem o som do nosso amor e da nossa luta. Enquanto houver quem tente abafar o voz do oprimido com a dor e o gemido, nós cantaremos. Ninguém vai nos acorrentar, enquanto pudermos cantar, enquanto pudermos sorrir. A gente samba para resistir. A gente canta para não permitir. A gente batuca para conseguir. Afinal, uma dor assim, pungente, não há de ser inutilmente.

Não adianta nos matar: somos herdeiros e herdeiras de um povo que não morre nunca.


Foto de Karla Gamba.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

No quesito IGUALDADE, o Brasil ainda está longe do pódio

Talvez, a principal frustração da torcida brasileira nas Olimpíadas Rio 2016 tenha sido a ausência de nossa carismática seleção feminina de futebol no pódio de premiação. Sobre nós, prevaleceram as equipes de, respectivamente, Alemanha, Suécia e Canadá.

O time do Brasil começou a competição muito bem, com vitórias, garra, alegria de jogar e muitos gols; o que rendeu às nossas meninas comparações com sua equivalente masculina – que iniciou o torneio deixando a desejar em todos os quesitos mencionados. Porém, essa não é uma comparação justa, por três motivos: 1) Fora Temer; 2) Ao terminar as Olimpíadas, concretizou-se um resultado previsível, mas que parece desabonar o feito de nossas meninas pelo tamanho das expectativas geradas sobre elas, expectativas essas desproporcionais aos investimentos e à atenção da mídia ao longo dos últimos quatro anos; 3) Para comparar Marta a Neymar e a seleção masculina à feminina, seria necessário que todos tivessem igualdade de condições, o que está deveras distante de acontecer.

No Brasil, o futebol ainda é um esporte muito masculino. A desigualdade na distribuição de recursos é gritante, e um pouco disso pode ser atribuído aos níveis diferentes de desenvolvimento: basta lembrar que a primeira partida oficial disputada pela seleção brasileira feminina aconteceu em 1986, quando a masculina já tinha 72 anos de chão. Mas não é só isso. Há as abissais diferenças salariais. Mas não é só isso. Como atestou uma reportagem do jornal inglês The Guardian, de 2006, a partir da experiência da jogadora chilena Dania Cabello no Santos:

“‘Durante os treinos, tínhamos que esperar em nossos quartos na hora do almoço. Enquanto os jogadores almoçavam no refeitório, recebíamos bandejas. Era como se recebêssemos sobras’, contou Cabello, lembrando ainda que o time vestia uniformes masculinos usados e precisava treinar nas areias do balneário paulista porque o campo de treinamentos era ocupado por um dos times juvenis do Santos.

Ironicamente, o time foi extinto em 2011, como parte de um pacote de cortes feitos pela diretoria do clube para tentar custear a presença de Neymar - ele acabou sendo vendido pelo Santos ao Barcelona em 2013”. (1)

Mas não é só isso. Para se referir à prática de um esporte que, no Brasil, ainda é tão masculino, é preciso levar em consideração um aspecto fundamental: as barreiras impostas às mulheres para se inserir num mercado tão dominado pelos homens, parte integrante de um universo absurdamente machista.



Ouro, prata e bronze

Por exemplo: na Suécia, medalha de prata em futebol feminino, há políticas de incentivo ao combate de estereótipos contidos na separação de brinquedos e de cores entre meninos e meninas, para enfrentar o machismo desde o berço. No Brasil, o discurso obscurantista busca limitar a participação das mulheres no espaço público, e iniciativas medonhas, como a Lei da Mordaça, visam a proibir que professores e professoras desconstruam em sala de aula os estereótipos de gênero.

Segundo o primeiro-ministro Stefen Lofven, o governo sueco é feminista. O gabinete é paritário: 12 ministros e 12 ministras. No parlamento, 44,7% são mulheres (2). No Brasil, as mulheres não chegam a 10% da Câmara dos Deputados. Na Suécia, homens e mulheres dividem o trabalho doméstico e de cuidados, graças a muito investimento público no combate à desigualdade. Atualmente, estudam-se formas de intervir na composição do comando das empresas, para que mais mulheres alcancem os postos mais altos também no setor privado (3).

No Canadá, país que nos derrotou na disputa pelo bronze, o parlamento é composto por 26% de mulheres, e há paridade na composição do governo. Ao ser perguntado sobre por que ter metade de mulheres no Ministério, o primeiro-ministro Justin Trudeau não titubeou: “Porque é 2015”. Enquanto isso, no Brasil, uma mulher legitimamente eleita, e contra a qual não pesa acusação alguma, foi cassada por um golpe parlamentar que entregou o poder a um governo inteiramente masculino, conforme noticiaram alguns dos principais veículos internacionais de informação.

Na Alemanha, medalha de ouro em futebol feminino, já há cotas de mulheres na direção das empresas desde 1998. No Brasil, muita gente se queixa do mecanismo de cotas, por desafiar seus próprios privilégios. O Parlamento alemão é composto por 36,5% de mulheres. Lá, busca-se representar linguisticamente as identidades, como forma de combater a desigualdade: artigos científicos e acadêmicos devem usar uma gendergerechte sprache, ou seja, uma linguagem igualitária entre os gêneros. No Brasil, há quem se ofenda pelo uso da flexão presidenta, presente em dicionários de Língua Portuguesa desde antes de eu e Carmen Lúcia nascermos.



Ser mulher

Segundo entrevistas com 370 especialistas ouvidos pelo TrustLaw, da Fundação Thomson Reuters, em 2012, entre os países que integram o G-20 (20 maiores economias do mundo), o Canadá é o melhor país para se ser mulher. A Alemanha vem em segundo lugar. O Brasil lidera a metade inferior da lista: 11º lugar. Tal ranqueamento foi estabelecido a partir de critérios de políticas públicas de promoção da igualdade, de combate à violência e à exploração, aliadas ao acesso a educação e saúde.

O Global Gender Gap 2015, relatório produzido pelo Fórum Econômico Mundial – percebam: Fórum Econômico Mundial – mediu a igualdade entre homens e mulheres a partir de indicadores em quatro áreas: educação, oportunidade e participação na economia; saúde e sobrevivência; e empoderamento político. No ranqueamento, entre 145 países, temos: 4º Suécia; 12º Alemanha; 30º Canadá; 85º Brasil.

Por fim, vale mencionar que, num debate caro ao movimento de mulheres no que se refere à autonomia sobre o próprio corpo e a própria vida, nosso país também não sobe ao pódio: Alemanha, Suécia e Canadá têm o aborto legalizado em seu território desde os anos 70; enquanto, no Brasil, os obscurantistas procuram, cada vez mais, restringir até extinguir o acesso das mulheres aos poucos casos de aborto legal que a lei permite.

A paixão nacional brasileira é um esporte que, até outro dia, era praticado somente por homens, em cujo campo uma mulher que adentra como árbitra ou bandeirinha está sujeita a agressões e assédios que, em entrelinhas, afirmam que ela não é bem-vinda. Só por isso, Marta, Cristiane, Formiga e companhia já são verdadeiras heroínas: elas duelam com o machismo diariamente para se concretizarem como referências no país do futebol.

Não é possível falar da prática do futebol feminino no Brasil sem levar em consideração que, embora tenhamos avançado, nosso país ainda guarda sérias dificuldades em assegurar a autonomia das mulheres e igualdade de condições. Se com tantos obstáculos, chegamos aonde chegamos, imagine só aonde as mulheres podem levar este país se rompermos as barreiras da discriminação, da opressão e da exploração que ainda nos dividem.

(1) Extraído de matéria da BBC Brasil, que pode ser encontrada em: http://www.bbc.com/portuguese/geral-37028976.

(2) Os dados sobre composição de Parlamentos neste artigo foram retirados de Global Economy.

(3) Com informações da Revista 2. Matéria disponível no portal Geledés:
Como a igualdade de gênero fez da Suécia um país mais rico - http://www.geledes.org.br/como-igualdade-de-genero-fez-da-suecia-um-pais-mais-rico/

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Não sambe

As palavras ruins se associam por afinidade. Tristeza, ódio, golpe, obscurantismo, autoritarismo. A imposição do silêncio; e nós sabemos que paz sem voz não é paz, é medo. O toque de recolher. Os assuntos proibidos, as desavenças gratuitas: preconceito, violência, cultura do ódio a todo vapor. O cara nem sabe por que odeia, pensa que ele mesmo formulou o ódio ao outro, sem notar que ele comprou um ódio prontinho de fábrica, de segunda mão, único dono. Mas meu senhor, por que tanto rancor? Por que me agride sem me conhecer?

A resposta é o silêncio que atravessa a madrugada. O escuro da noite é belo, mas querem tonar sombrio. A beleza dos nossos sonhos e das nossas lutas, nossos punhos cerrados, nossos braços erguidos, tudo isso virou ofensa. A democracia virou ofensa.

Não pode. Não vá. Não cante. Não pule. Não torça. Não vaie. Não fale de amor. Não erga sua bandeira. Não vista vermelho. Não expresse sua opinião. Há um grito parado no ar, eu não vejo, mas posso senti-lo.

Não sambe. Não sambe. Não sambe. Mas senhor, o samba não agride ninguém. No início do século passado, a gente era criminalizado, samba era vadiagem, João da Baiana foi preso somente por portar um pandeiro. Delegados sem alma e sem coração que não querem samba nem corimba na sua jurisdição. Tinha ficado no passado, mas não. Quando o ódio é maior que o amor, o samba não encontra seu lugar mesmo. Já fomos criminosos. Já fomos vagabundos. Já fomos baderneiros. Tudo bêbado. Mas por que, senhor? É que mesmo calado o peito, resta a cuca.

Somos de novo vagabundos. Artista é vagabundo. Outra vez, somos baderneiros. Vamos acabar com o samba, madame não gosta que ninguém sambe. Mas por que, senhor? Tanta alegria ofende. Juntar gente é perigoso.

Meu samba está sem casa. Mas ainda tem gente que canta, ainda tem gente que brinca. Não podem tolerar gente que canta, somos perigosos. Silêncio, silêncio. Já não há lugar, vamos fechar, vamos esvaziar, vamos interromper. Mandou parar a cuíca: é coisa dos hóme. A fome e a raiva é coisa dos hóme.

Meu samba está sem casa. Mas o samba não se aprisiona em casa nenhuma, não senhor. Quem suportar uma paixão, saberá que a casa do samba é o coração. E em nossos corações vocês não vão poder mandar. Quero ver quem haverá de calar a música que ecoa aqui dentro da minha cabeça.

Meu samba está sem casa, mas o samba é da rua, o samba é sem rumo, o samba é do povo, do amor e de todo lugar. Nós não vamos ficar na saudade: o samba é a nossa casa. E sempre haverá casa para quem tem amor.

"É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar

Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva"

(MORDAÇA - Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro)


segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Sobre presença de palco

Outro dia, falávamos do show de uma cantora que eu não conhecia. Ouvi críticas à presença de palco dela, e mesmo não a conhecendo, não pude ouvir calada.

Precisa ter cuidado para condenar a presença de palco de alguém. Teresa Cristina disse que já foi muito criticada por cantar de olhos fechados, e foi por isso que compôs "Cantar". Eu penso que a interpretação é parte fundamental da tal da presença de palco, e ela é muito pessoal de cada artista, não podem querer ensinar alguém a fazer isso. Você pode, no máximo, contribuir para a pessoa encontrar a melhor maneira de se expressar, mas sem contrariar sua própria personalidade. Quando eu canto uma canção, o que sai de mim é uma síntese da soma eu + ela; eu falo dela como eu entendo dela, não como ela é. E é a minha forma de falar.

Eu valorizo muito a espontaneidade, então, obviamente, não creio que exista um só jeito de fazer isso. Tenho horror a "ensaio" de presença de palco, do treinamento sistemático de movimentos coordenados, de expressões faciais. Elza Soares, que não tem podido levantar-se da cadeira para cantar, tem, ainda assim, mais presença de palco que muita gente que gosta de saltitar e falta só dar piruetas - mas tudo fake, porque não espontâneo.

Nunca permiti que meus professores e professoras de canto tentassem interferir nessa parte. Essa parte é minha, eu extravaso a música espontaneamente, do jeito que ela sair de mim na hora.

Treinar presença de palco me parece uma tentativa de botar na caixinha a abordagem que o próprio artista faz da sua arte - ou seja, aprisionar algo que tem que ser livre. Torná-la mais um elemento que pode ser produzido em série, como se todo mundo fosse igual, ou devesse ser. Óbvio que, para alguém que se apresenta para uma plateia, é importante superar a timidez e estabelecer algum tipo de empatia com seu público. Mas há diversas formas de fazer isso. Treinar presença de palco não me parece uma boa coisa, ao contrário.

domingo, 7 de agosto de 2016

Chega

Chega de tentar me enganar
Eu já não caio mais
Nas armadilhas que eu mesma fiz
Não vou fingir
Que eu não sabia que isso tudo
Só podia ser assim
Foi o abismo de onde me atirei
A sorrir

Chega de tentar te encontrar
Nas cartas doces que eu mesma escrevi
Nas ruas loucas onde eu me consumi
Pr'onde fugi para me esconder
De mim

Chega de ampliar o universo
E reduzir o meu espaço
De ser uma mulher do avesso
Em qualquer passo, eu recomeço
Eu reconheço
Que desconexa é que desconecto
De você

Chega de falar, de procurar
Eu já não tenho mais papel
Perdi o céu
Perdi o navio
Eu já não sei qual era mesmo o rio
Onde boiou meu corpo
À mercê

Eu já não tenho mais saúde
Para sustentar
Este sentimento por você

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Demora

*** Abaixo, a letra do meu novo samba, "Demora", que contou com arranjo de Vinicius Ferrão e um time maravilhoso de músicos de Porto Alegre. Clique AQUI para ver o clipe. ***


DEMORA
(Alessandra Terribili)

Por que você demorou?
Olha se isso são horas
Você só me chega agora
Eu já tinha desistido de esperar

Chega aqui toda contente
Pois que seja convincente
Pr'eu poder acreditar

O tempo não foi perdido
O caminho percorrido
Traz bem mais pra gente andar

Vai que a vida surpreende
Se for esperar pra sempre
O infinito é o meu lugar

Não sei se veio de barca
Fazendo escalas
Saiu atrasada
Ou se veio a pé

Se correu a vida afora
Não quis ir embora
Chegou com a aurora
Nem sabe onde é

Não sei se perdeu o caminho
Errou o sentido
Brigou com destino
Veio dando olé

Não sei se tava buscando
Em cada passo, o meu abraço
O tempo tava passando
Você nem sentiu cansaço

Ou se veio vacilando
Por uma estrada comprida
Por que você demorou tanto
Pra chegar na minha vida?



quinta-feira, 21 de julho de 2016

Escola Sem Partido: por uma Educação medíocre e enganadora

A Lei da Mordaça, estupidez galopante formulada por um advogado das causas obscurantistas e conservadoras, não tem como alvo os partidos, nem mesmo o suposto problema do proselitismo partidário. Até porque ele mesmo tem partido e quer ver sua ideologia organizando a escola e a Educação.

A iniciativa pretende exterminar a construção de senso crítico e massacrar a diversidade presente nas nossas escolas, que somente é uma amostra da diversidade do mundo fora delas. E assim sendo, não é "só" a democracia que será atacada pelo projeto: a qualidade do ensino, de forma geral, estará.

Há 17 anos, um artigo de Rubem Alves num jornal de grande circulação me chamou a atenção para sempre. Nele, o educador trazia uma importante reflexão, ao contar a história da aeromoça a quem perguntou qual o rio que se avistava ao sobrevoar o Paraná. Ela, sorridente, respondeu que era o São Francisco.

"Posso jurar que ela não colou para passar de ano. Ela sabia direitinho os nomes. Sabia também olhar os mapas. Nas provas, marcou certo o rio São Francisco. Na escola, tirou dez. Então, como explicar que ela visse o São Francisco no norte do Paraná? A resposta é simples: não foi ensinado a ela que o mapa, coisa que se faz com símbolos para representar o espaço, só tem sentido se estiver ligado a um espaço que não é símbolo, feito de montanhas, rios de verdade, planícies e mares. Saber um mapa é ver, pelos símbolos, o espaço que ele representa".

O que Miguel Nagib e seus seguidores querem é ferir de morte exatamente isso. Querem que a escola se limite a falar das fases da mitose, do seno e do cosseno, da vegetação do sul da Ásia, das causas da Guerra dos Cem Anos; fazendo disso tudo apenas símbolos que não saem do laboratório, conhecimento sem sentido.

Expulsar o pensamento crítico das escolas é fortalecer esse olhar medíocre sobre a Educação; é contribuir para formar jovens incapazes de estabelecer relações e de se instrumentalizar dos símbolos para ler o mundo real. Como bem apontava Rubem Alves, conhecimento que não decifra a vida e não ilumina o mundo não é conhecimento. É enganação. Uma ótima palavra, aliás, para definir a tal Escola Sem Partido.

(Alessandra Terribili)
***

PS: É sintomático que, 17 anos depois, eu recorra ao mesmo artigo para falar de Educação que eu usava na época, quando estávamos no auge do combate contra o Provão. Os tempos sombrios estão mesmo de volta.

PS 2: O artigo do Rubem Alves está no link http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz11079909.htm.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

A conclusão do golpe foi ontem

Um artigo despretensioso para analisar a conjuntura, sob as emoções dos resultados da eleição para Presidente da Câmara Federal ontem.
***

O que aconteceu ontem não foi surpresa. Não foi fato isolado. Não foi incoerente com o que o PT vem fazendo há, no mínimo, 20 anos. Isso não é "errar na tentativa de acertar", não. Isso é ESCOLHA POLÍTICA, uma escolha feita há muito tempo, diante da qual houve e há muita resistência; resistência que foi, por diversas vezes, esmagada com autoritarismo.

Um setor do partido fez SIM uma opção que nos conduziu a esse processo todo. As políticas de alianças, o pragmatismo eleitoral, as concessões programáticas. Entramos num jogo aceitando jogar sob as regras dos adversários, muitas vezes nos misturamos com eles, muitas vezes nos rebaixamos ao nível deles. E lhes demos espaço e os mantivemos no poder. Isso não é o imponderável, esse não é o único jeito, e não foi decidido coletivamente que seria assim.

Não tem conversinha fiada de "vem disputar o fórum partidário" que me convença de que eu também tenho responsabilidade pelo que está acontecendo. Eu fiz isso enquanto minha saúde física e mental aguentou, e fiz muito. Fui dirigente municipal e estadual do PT. Integrei a Secretaria Nacional de Mulheres. Disputei com sangue, suor e lágrimas opiniões e ações. Trabalhei muito. Fui derrotada na maioria das vezes.

Eu não vou aceitar a responsabilidade coletiva não. E com isso, não estou responsabilizando a maioria do partido de forma monolítica. Mas camaradas, não se enganem: escolhas foram feitas. Alguém fez. E uma parte delas foi feita fora das tais instâncias partidárias, inclusive.

Nossa presidenta sofreu um golpe articulado e encaminhado por quem foi considerado aliado nesse maldito presidencialismo de coalizão em cujas estruturas não ousamos mexer. Eu sei que foi pelos nossos acertos que tomamos o golpe. Mas foram os erros que abriram o caminho pra ele. E ontem, vimos parte do PT votar num sujeito pertencente ao agrupamento que nos usurpou o poder, e achar que isso poderia dar certo em qualquer critério que se queira adotar. Vimos parte do PT ajudar a eleger Presidente da Câmara um verme político, leal e legítimo representante da nojenta elite colonialista brasileira, guardião de propostas conservadoras, privatistas e que certamente arrancarão direitos da classe trabalhadora que tanto nos custou conquistar.

Os Governos Lula e Dilma, por contradições que nos tenham trazido, melhoraram a vida do povo. Trouxeram para o centro do poder itens de um programa democrático e popular que é a jóia mais linda que a gente já produziu. A gente sabe, a gente defende com unhas, dentes e garras essas conquistas. Mas a direção do PT achou que poderíamos governar em conciliação com os setores que sempre desejaram "se livrar da nossa raça". Incorporamos suas práticas e adotamos suas opiniões muitas vezes. Na primeira oportunidade, eles tomaram de assalto a presidência, num golpe ao qual não pudemos reagir, porque não conseguimos construir força política para isso. Só construímos coalizão.

Eu aguardo há dez anos alguma autocrítica. Alguma sinalização de que um dia vamos discutir o que foi que deu errado. Um mínimo de balanço sério e decente dos últimos 14 anos. Não é pra apontar dedos na cara. É pra crescer. É pra ser melhor. É pra estar à altura da conjuntura.

Mas infelizmente, nós não estamos à altura da conjuntura. O que aconteceu ontem é só o desfecho de toda essa tristeza: a gente não só não vai fazer autocrítica, como vamos insistir no erro quantas vezes o erro se apresentar para nós. Parece até que esse setor se convenceu do erro, mesmo. É por isso que eu não aceito e não vou aceitar a coletivização da "culpa".

Eu sei o tipo de coisa que posso ouvir e/ou ler por estar dizendo tudo isso. "Vocês também sujaram as mãos", "Se a parte ruim é nossa, a boa é nossa também", "Vocês se beneficiaram dos tais erros" e baboseiras desse tipo, sem nenhum valor político, muito menos moral. O que só me fará ter mais certeza de tudo que escrevi acima: não estamos à altura da conjuntura.

E lá vamos nós para as eleições municipais, como se nada tivesse acontecido.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Amor & Bem

Tinha ficado pensativa a semana toda. A tal conversa não lhe saía da memória, mesmo que parte dela tivesse sido sugada para algum canto desconhecido da mente, levada que nem canoa desgovernada num extenso rio de águas calmas.

Falaram sobre demonstrações de amor. Ora, não precisam ser efusivas, nem frequentes. Ela sabia bem a chatice que é quando alguém insiste em dar um amor que o outro não quer receber. Tem também aquela história de assustar, e blá blá blá. Mas, no final das contas, ela nem percebia que demonstrava tanto, e amor é mesmo uma coisa que a pessoa faz sem notar. Coisa muito medida não tem como ser amor não.

Ao entrar na loja, Noel Rosa apareceu-lhe através de seus versos, que alguém, pelo rádio, pronunciava:

Agora vou mudar minha conduta
Eu vou à luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar.

"Vai ver é assim que a gente tem que ser", pensou. A letra do poeta da Vila a fez contente novamente, e quando reparou, o céu estava muito azul e o sol brilhava majestoso. Não havia motivo para cansaço nem incerteza. A vida andava para frente, os caminhos se abriam naturalmente, como se fosse a natureza abençoando-a.

Porém, no mesmo instante em que deixou a loja com o pequeno embrulho nas mãos, e antes que as palavras de Noel fizessem sentido de vez, a mente lhe trouxe a voz de Renato Russo, aquele poeta triste que, ironicamente, cantarolou-lhe palavras doces e risonhas:

Vem cá, meu bem,
Que é bom lhe ver
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você.

Olhou para o presente e sorriu para si mesma, pensando: "É, acho que eu não tenho jeito não".

domingo, 3 de julho de 2016

Senhor Samba #3 - No rancho fundo

"No Rancho Fundo" não é música sertaneja, nem é de Chitãozinho e Xororó. É um samba-canção composto por Ary Barroso para musicar poema do caricaturista e poeta José Carlos de Brito Cunha.  e foi apresentado por Aracy Côrtes numa peça do Teatro de Revista. Nasceu como "Esse mulato vai ser meu", com subtítulo "Na grota funda":

Na grota funda
Na virada da montanha
Só se conta uma façanha
Do mulato da Reimunda

Pois Lamartine Babo ficou muito impressionado com a música, mas não gostou da letra. Reza a lenda que pediu permissão para Ary, que não a concedeu, para botar outros versos na canção. Ignorou a negativa e criou a nova letra mesmo assim, substituindo a Grota Funda por um Rancho Fundo. Mas não há consenso se houve o pedido e se foi negada ou não a autorização. Fato é que foi a letra de Lamartine que ficou para a posteridade; e que na primeira gravação, com Elisinha Coelho, em 1931, Ary tocou piano.


Detalhe: Chitãozinho e Xororó alteraram o final da letra. Trocaram a cabrocha por uma morena, e, para manter a rima, recriaram os versos: "O sol queimando / Se uma flor lá desabrocha / A montanha vai gelando / Lembra o aroma da cabrocha".

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Não seja cúmplice

É por isso que é necessário um organismo de governo para elaborar, propor, articular e desenvolver políticas para as mulheres.

É por isso que os sindicatos e organizações dos movimentos sociais precisam ter secretarias de mulheres.

É por isso que é inaceitável que não haja mulheres no Ministério.

É por isso que é necessário haver mulheres em número razoável no parlamento.

É por isso que é necessário que haja mecanismos artificiais de distribuir recursos e tempo de TV entre homens e mulheres que disputam vagas no parlamento.

É por isso que existe o mecanismo de cotas e de paridade, que assegura uma proporção mínima de mulheres nas direções de entidades representativas.

É por isso que é preciso falar de gênero nas escolas.

É por isso que você JAMAIS deve desqualificar uma mulher chamando-a de vagabunda, vadia, puta e afins.

É por isso que não tem graça nenhuma fazer piada com estupro ou com qualquer outro tipo de violência contra a mulher.

É por isso que você não pode tratar as mulheres que te cercam como suas serviçais.

É por isso que você NÃO PODE legitimar a violência nem no campo material nem no campo simbólico.

É por isso que você precisa entender que NÃO é NÃO.

É por isso que não adianta compartilhar post ou meme de indignação no facebook, se você não age coerententemente.

É por isso que o governo golpista de Michel Temer é cúmplice de cada caso de estupro e de violência contra as mulheres que ocorre em todo o Brasil.

Não é porque poderia ter sido sua irmã ou sua mãe. É porque foi com ela. É porque é com todas nós diariamente.

É porque não há igualdade.

E é porque precisa haver.



terça-feira, 17 de maio de 2016

Senhor Samba #2 - Estrela de Madureira

Para exaltar a sua arte, que encantou Madureira



Um lindo samba cantado nas rodas de todo o país é "Estrela de Madureira", de Acyr Pimentel e Cardoso, consagrado na voz do grande Roberto Ribeiro. Hoje em dia, mais de 40 anos depois de sua composição, e quase 60 anos depois a morte da sua musa, pouca gente sabe de quem fala a bela letra.

Trata-se de Záquia Jorge, atriz, cantora e empresária. Atuou nas décadas de 40 e 50, com sucesso, no cinema e no Teatro de Revista (formato dramatúrgico muito comum nas primeiras décadas do século XX, tendo revelado grandes artistas). Mas Záquia fez mais: "foi a pioneira" ao erguer o Teatro de Revista Madureira no bairro de mesmo nome, em frente à estação de trem, com a intenção de compartilhar com o subúrbio a cultura que se disseminava pelo centro e regiões nobres do Rio de Janeiro - inclusive praticando preços mais acessíveis para conquistar aquele público.

Záquia e seu marido, Júlio Leiloeiro, empreenderam muitos esforços para fazer vingar a ideia. Segundo conta Nei Lopes, aquele era um momento em que diversas possibilidades se abriam para Madureira nas áreas de Cultura e de Lazer. O Teatro de Revista começava a experimentar sua decadência, mas mesmo assim, a casa foi inaugurada em 1952 com o espetáculo "Trem de Luxo", mencionado no samba. Durante os dias, o teatro abrigou aulas de artes dramáticas. Porém, não sobreviveu à morte de sua "vedete principal".

Záquia morreu vítima de afogamento na praia da Barra da Tijuca, que era muito pouco frequentada na época, deixando marido, filho e uma legião de fãs e amigos. Seu velório no Teatro de Revista Madureira foi acompanhado por mais de 4 mil pessoas.

Em 1975, a Império Serrano, com justiça e com propriedade, homenageou Záquia. O samba escolhido para isso não foi "Estrela de Madureira", mas sim, um samba de Avarese, "Záquia Jorge, Estrela de Madureira, Vedete do Subúrbio", que rendeu à escola o terceiro lugar no Carnaval daquele ano. Entretanto, antes de ambos, houve "Madureira Chorou", samba de Carvalhinho e Júlio Leiloeiro, gravado por Joel de Almeida em 1958.

Pelo papel desempenhado nos palcos, sets e, especialmente, em Madureira, Záquia é uma personagem à altura da grandiosidade dos sambas que a homenageiam.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

A volta dos que não foram

É mesmo a volta dos que não foram. Para quem tinha qualquer dúvida, o anúncio do "novo" ministério salda todas. Sem obter nenhum voto, Michel Temer assume "interinamente" e traz para o Governo Federal aqueles que foram derrotados nas últimas eleições, para implantar a sua "Ponte para o Futuro" (sic) que representa pura e simplesmente o programa derrotado nas últimas eleições.

Para mim, que comecei minha militância no movimento estudantil e, duas décadas depois, trabalho com um sindicato de professores, é simbólico e melancólico ver essa figura da foto de volta à cena.

Ao lado do ministro da educação (minúsculo mesmo) recém-empossado, está Maria Helena Guimarães Castro, que presidiu o Inep durante o governo FHC e era mulher de confiança do então ministro Paulo Renato de Souza. Ela foi responsável pela implementação do provão, que eu e tantos combatemos com afinco, denunciando a privatização escondida nas entrelinhas daquele fajuto instrumento. Foi das grandes elaboradoras do projeto mercantilização da Educação que tentaram nos enfiar goela abaixo, especialmente nas universidades, mas nós resistimos, nós o derrotamos e até tripudiamos sobre ele... Até agora há pouco: essa senhora será secretária-executiva do "novo" MEC, que recuperará o sentido que tinha na ditadura militar.



Maria Helena também foi Secretária de Educação em São Paulo, onde nasci - e onde o PSDB vai completar 24 anos de governo: há toda uma geração que nunca viu outro partido governar São Paulo -, e reagiu com toda truculência característica do seu partido a uma das maiores greves de professores da história do estado. Maria Helena, que quis implementar um programa de remuneração por mérito para os profissionais da Educação. Lá, onde a Educação Pública vai de mal a pior, sendo desmontada dia a dia, com professores desmotivados e desvalorizados, e onde estudantes são criminalizados por tentar defender sua escola desses ataques. Lá, onde a verba da merenda é desviada sem nenhuma investigação; aliás, lá, onde toda e qualquer tentativa de investigar alguma coisa é enterrada de véspera. 

Parabéns aos envolvidos por trazerem de volta essa galera das catacumbas.

Quanto a nós... Estaremos onde sempre estivemos. Resistir e enfrentar vocês é algo que fazemos muito bem. Especialmente na Educação.

sábado, 7 de maio de 2016

Imagens mentais

Gosto de lembrar da época em que não existia telefone celular nem internet. As pessoas tinham que cumprir o combinado, porque não poderiam te localizar facilmente para desmarcar. Se você ligava e a pessoa não estava, deixava recado. E não precisava ficar conferindo de tempo em tempo para saber se o recado foi visualizado, não existia essa perspectiva. Se alguém te ligasse e você não quisesse atender, poderia falar pra Maricotinha que eu mandei dizer que não tô. Naquela época, você podia não estar, se não quisesse!

Quanto mais tecnologia, mais pressa. Uma pressa desprovida de sentido, pela inércia da pressa, a pressa de se apressar, de ter resposta, de responder, de entender, de sair correndo e chegar sabe-se lá onde. A pressa dá origem a mais pressa, e quanto mais pressa você tem, mais rápido você chega e de mais velocidade precisa pra continuar. Eta vida besta, meu deus.

Quando não havia a internet, a gente tinha mais tempo para descobrir as coisas.

Para registrar momentos, havia câmeras fotográficas. Os filmes eram de 12, 24 ou 36 poses. Eu sempre me arrependia de não ter comprado o de 36. Ninguém tinha estoque de filme em casa, então, a gente fotografava os momentos especiais. Comprava filme para algumas ocasiões, não para se fotografar diante do espelho. Bom, é bem verdade que também se registravam momentos pouco especiais, porque precisava terminar o filme para poder revelar. Aí lá vinham um monte de fotos triviais, do dia-a-dia mesmo. Quando revelava, passava um tempo e você percebia que os momentos pouco especiais eram muito legais também. E escolhia um álbum bonito pra eles.

A gente fazia mais imagens mentais. Eu guardo na lembrança até hoje algumas cenas que não fotografei. Elas são mais vivas do que muitas que ganharam o papel, até porque eu não preciso procurar por elas quando as quero ver. Hoje em dia, fotografa-se tanto e tão frequentemente que não é possível que essas imagens sejam visitadas depois. Tenho medo que as crianças de hoje em dia não saibam mais produzir imagens mentais.

Quando eu fico cansada, sentindo o peso de tudo, com o coração palpitando todo errado, eu tenho vontade de me esconder nos anos 80 por uns tempos. Não preciso ir morar lá não, eu só queria passar uma semaninha ou duas.