Eu tenho a impressão que, neste momento sombrio que vivemos, conservar a alegria chega a ser um gesto revolucionário.
Guimarães Rosa afirmou, encarnado em Dito dando conselho a Miguilim, "que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo". É difícil, mas é importante. E não se trata de autoajuda ou coaching for life e nada disso. É que gente triste, entediada, desesperançosa, essa gente não muda a realidade.
Sábado, quando o grupo Praga de Baiano abriu sua apresentação provocando: "não se assuste pessoa se eu lhe disser que a vida é boa", aquilo mexeu com um monte de coisas dentro de mim. Se a alguns cantar isso pode aparentar maluquice ou alienação, eu tenho a plena certeza de que só assim superamos estas trevas. Só iluminando de sorrisos.
Vejo tanta gente adoecendo o meu redor, de doenças da alma, vejo tanto medo e tanta violência nos atos e nas palavras, que se a gente não tiver a alegria para se acolher, se acalentar, eles vencerão. Tanta gente que se deixa contaminar por esse terror todo e se instrumentaliza de insegurança, de desconfiança, de ensimesmamento para poder sobreviver... Eu penso que tem que ser exatamente o contrário.
Não à toa os artistas se tornaram inimigos a serem combatidos. A alegria é poderosa. A arte é poderosa. A memória é poderosa. A generosidade é poderosa Tentarão destruir tudo isso, mas nós as defenderemos.
"Defender a alegria como uma trincheira
defendê-la do escândalo e da rotina
da miséria e dos miseráveis
das ausências transitórias
e das definitivas".
(Mario Benedetti)
Música, feminismo, diálogos, política, futebol, crônica e poesia convivendo no mesmo espaço. E sem conflito.
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segunda-feira, 10 de junho de 2019
segunda-feira, 3 de junho de 2019
Juntas
Uma vez, ao dizer a um interlocutor respeitável, que não gosto de uma cantora famosa, ouvi assim:
- Vocês mulheres são muito cruéis umas com as outras.
É sim verdade. E é sim mentira. Porque a vida é o quê? É dialética mesmo.
Hoje em dia, não me poupo mais de meus gostos e desgostos. Gosto das minhas opiniões formadas, porque as formo à revelia de quem me queria eterna aceitante do que me trazem. Então não, então opino. Gosto e não gosto. Meu gosto. Boto à prova, na serenidade de quem sabe o que quer e tenta saber ouvir. Na insegurança de quem quer sempre ser compreendida, não julgada.
Dizem que as mulheres são bastante competitivas entre si, especialmente nos espaços que mais habitei nesta vida, como Música e Política. E por que será? Desde cedo, sempre percebemos que não há espaço pra todas. São poucas as mulheres que vencem, e essas sempre são usadas para que o status quo afirme que as mulheres sempre podem vencer. É mentira que sempre podem. Os filtros que colocam pra nós são da ordem do MUITO MAIS (mas MUITO MAIS mesmo) que pros homens. Muitos filtros. E eles vêm, principalmente, da vida material. Você sabe por quê Clementina e Jovelina só se tornaram conhecidas depois de terem mais idade?
Pois então. Não xingue nem critique nem muito menos condene as mulheres que têm essa dificuldade, que se veem em disputa, que temem perder o que não têm - seu espaço. De outro lado, nós também vamos entender que não há nada o que fazer se não for juntas. Chega de ser a exceção. Queremos ser a regra.
Sabe o que é mais legal? Tentar fazer realmente um mundo onde caibam TODAS, como cabem os homens. Personalidades, forças, vivências, artes, tudo é diverso, as mulheres são tantas! Eu quero um mundo onde caibam todas. E se não... Por que será que os homens teriam tanto receio das cotas??! Perder espaço? Pois é! Bem-vindoooos!
- Vocês mulheres são muito cruéis umas com as outras.
É sim verdade. E é sim mentira. Porque a vida é o quê? É dialética mesmo.
Hoje em dia, não me poupo mais de meus gostos e desgostos. Gosto das minhas opiniões formadas, porque as formo à revelia de quem me queria eterna aceitante do que me trazem. Então não, então opino. Gosto e não gosto. Meu gosto. Boto à prova, na serenidade de quem sabe o que quer e tenta saber ouvir. Na insegurança de quem quer sempre ser compreendida, não julgada.
Dizem que as mulheres são bastante competitivas entre si, especialmente nos espaços que mais habitei nesta vida, como Música e Política. E por que será? Desde cedo, sempre percebemos que não há espaço pra todas. São poucas as mulheres que vencem, e essas sempre são usadas para que o status quo afirme que as mulheres sempre podem vencer. É mentira que sempre podem. Os filtros que colocam pra nós são da ordem do MUITO MAIS (mas MUITO MAIS mesmo) que pros homens. Muitos filtros. E eles vêm, principalmente, da vida material. Você sabe por quê Clementina e Jovelina só se tornaram conhecidas depois de terem mais idade?
Pois então. Não xingue nem critique nem muito menos condene as mulheres que têm essa dificuldade, que se veem em disputa, que temem perder o que não têm - seu espaço. De outro lado, nós também vamos entender que não há nada o que fazer se não for juntas. Chega de ser a exceção. Queremos ser a regra.
Sabe o que é mais legal? Tentar fazer realmente um mundo onde caibam TODAS, como cabem os homens. Personalidades, forças, vivências, artes, tudo é diverso, as mulheres são tantas! Eu quero um mundo onde caibam todas. E se não... Por que será que os homens teriam tanto receio das cotas??! Perder espaço? Pois é! Bem-vindoooos!
quinta-feira, 30 de maio de 2019
O Sonho, a Vida, a Roda Viva
Assisti pela TV Brasil o show MPB-4 - O Sonho, a Vida, a Roda Viva - 50 Anos Ao Vivo. Sem medo de recorrer ao senso comum da expressão "eu faço parte disso", eu afirmo emocionadamente que é bem o contrário: o MPB-4 faz parte de muito do que sou e, especialmente, do que me tornei ao trazer a Música para o centro da minha vida.
Eu os escuto encantada desde pequena, quando O Pato me enchia de compaixão porque só se dava mal, mas mesmo depois de ir para a panela, continuava quaquarejando e resmungando coisas que eu não entendia, até a música terminar. Comoveram-me todas as parcerias com o Quarteto em Cy, que amo também, e acho que tudo que interpretaram juntos se tornaram versões definitivas - olha que foram algumas das mais belas obras da nossa Música Popular. Entre os primeiros CDs que comprei, estava lá um da coleção Millenium, Quarteto em Cy e MPB-4. Certamente um dos que eu mais ouvi na vida.
Acompanhando esse lindo show ao qual aqui me refiro, dei-me conta de que a influência deles sobre mim é ainda maior do que eu pensava. Aquele repertório comemorativo - aliás: eles sabem melhor do que ninguém escolher repertório -, traz músicas que falam comigo diretamente ao coração, saem pelo corpo carregando meu sangue e, sei lá como, chegam à garganta, e aí eu canto.
A participação especial de Kleiton e Kledir foi o que sacramentou tal percepção. Por que diabos eu cortei essa do set-list, pensei comigo, referindo-me a Vira Virou, que eu queria ter cantado no lançamento do meu Outras Manhãs, mas foi uma das que precisei riscar para que o show coubesse em uma hora e meia. No pot-pourri do bis, lá estão eles a expor a questão amarga de Sidney Miller, Pois É, Pra Quê?, canção afiada à qual destinei a mesma borracha.
Até o que eu não fiz está presente em mim através deles.
Então, sem ter como agradecer o MPB-4 por todas as aulas que já tive com eles nesta vida; eu precisei vir aqui dizer isso pra vocês que me leem: quem tiver a oportunidade de assistir MPB-4 - O Sonho, a Vida, a Roda Viva - 50 Anos Ao Vivo, agarre-a com um abraço afetuoso.
Eu os escuto encantada desde pequena, quando O Pato me enchia de compaixão porque só se dava mal, mas mesmo depois de ir para a panela, continuava quaquarejando e resmungando coisas que eu não entendia, até a música terminar. Comoveram-me todas as parcerias com o Quarteto em Cy, que amo também, e acho que tudo que interpretaram juntos se tornaram versões definitivas - olha que foram algumas das mais belas obras da nossa Música Popular. Entre os primeiros CDs que comprei, estava lá um da coleção Millenium, Quarteto em Cy e MPB-4. Certamente um dos que eu mais ouvi na vida.
Acompanhando esse lindo show ao qual aqui me refiro, dei-me conta de que a influência deles sobre mim é ainda maior do que eu pensava. Aquele repertório comemorativo - aliás: eles sabem melhor do que ninguém escolher repertório -, traz músicas que falam comigo diretamente ao coração, saem pelo corpo carregando meu sangue e, sei lá como, chegam à garganta, e aí eu canto.
A participação especial de Kleiton e Kledir foi o que sacramentou tal percepção. Por que diabos eu cortei essa do set-list, pensei comigo, referindo-me a Vira Virou, que eu queria ter cantado no lançamento do meu Outras Manhãs, mas foi uma das que precisei riscar para que o show coubesse em uma hora e meia. No pot-pourri do bis, lá estão eles a expor a questão amarga de Sidney Miller, Pois É, Pra Quê?, canção afiada à qual destinei a mesma borracha.
Até o que eu não fiz está presente em mim através deles.
Então, sem ter como agradecer o MPB-4 por todas as aulas que já tive com eles nesta vida; eu precisei vir aqui dizer isso pra vocês que me leem: quem tiver a oportunidade de assistir MPB-4 - O Sonho, a Vida, a Roda Viva - 50 Anos Ao Vivo, agarre-a com um abraço afetuoso.
terça-feira, 4 de julho de 2017
Mesmo calado o peito, resta a cuca
A Cultura está sob ataque em todo o país.
Em São Paulo, o prefeito playboy e higienista estrangula tanto o Clube do Choro quanto a Orquestra do Teatro São Pedro; enquanto o pai político dele, o governador, mata a Banda Sinfônica do estado.
Em Porto Alegre, a Fundação Piratini corre risco sério e iminente de extinção. A TVE e a Rádio FM Cultura são espaços privilegiados para circulação e promoção da produção musical de Porto Alegre.
Em Brasília, amanhecemos todos os dias alertas para evitar que metam a mão no FAC (Fundo de Apoio à Cultura).
No Rio, cidade que abrigou as tias baianas que embalaram o samba nos braços, que concebeu a Santíssima Trindade do Samba; o prefeito quer restringir e controlar quase que pessoalmente a ocupação do espaço público por manifestações culturais - inclusive o sagrado samba da Pedra do Sal.
E por aí vai.
Nessas quatro capitais, citei apenas poucos e representativos exemplos do que está havendo. Há muito muito mais. Há muito mais nas demais cidades, nos demais estados, no Brasil em cujo centro de poder os golpistas se instalaram, e mostram, dia após dia, seu desprezo pela arte e pela cultura popular brasileira. Falo de música porque é o que eu conheço mais, mas situações análogas se verificam nas artes cênicas, plásticas, audiovisuais, literatura, nos investimentos em Educação e formação de público.
Coincidência ou não, a comunidade artística foi das mais combativas na resistência ao golpe. A ponto de reverter o retrocesso máximo, que seria a extinção do Ministério da Cultura.
O pessoal das trevas não brinca em serviço não. Eles sabem que a cultura popular impulsiona um povo forte e consciente de si.
[Há quase um ano, escrevi uma crônica sobre as incessantes tentativas de nos calar e de nos desalojar. Tudo aquilo parece estar se aprofundando. Mas como disse Belchior, a voz resiste, a fala insiste: você me ouvirá!]
Em São Paulo, o prefeito playboy e higienista estrangula tanto o Clube do Choro quanto a Orquestra do Teatro São Pedro; enquanto o pai político dele, o governador, mata a Banda Sinfônica do estado.
Em Porto Alegre, a Fundação Piratini corre risco sério e iminente de extinção. A TVE e a Rádio FM Cultura são espaços privilegiados para circulação e promoção da produção musical de Porto Alegre.
Em Brasília, amanhecemos todos os dias alertas para evitar que metam a mão no FAC (Fundo de Apoio à Cultura).
No Rio, cidade que abrigou as tias baianas que embalaram o samba nos braços, que concebeu a Santíssima Trindade do Samba; o prefeito quer restringir e controlar quase que pessoalmente a ocupação do espaço público por manifestações culturais - inclusive o sagrado samba da Pedra do Sal.
E por aí vai.
Nessas quatro capitais, citei apenas poucos e representativos exemplos do que está havendo. Há muito muito mais. Há muito mais nas demais cidades, nos demais estados, no Brasil em cujo centro de poder os golpistas se instalaram, e mostram, dia após dia, seu desprezo pela arte e pela cultura popular brasileira. Falo de música porque é o que eu conheço mais, mas situações análogas se verificam nas artes cênicas, plásticas, audiovisuais, literatura, nos investimentos em Educação e formação de público.
Coincidência ou não, a comunidade artística foi das mais combativas na resistência ao golpe. A ponto de reverter o retrocesso máximo, que seria a extinção do Ministério da Cultura.
O pessoal das trevas não brinca em serviço não. Eles sabem que a cultura popular impulsiona um povo forte e consciente de si.
[Há quase um ano, escrevi uma crônica sobre as incessantes tentativas de nos calar e de nos desalojar. Tudo aquilo parece estar se aprofundando. Mas como disse Belchior, a voz resiste, a fala insiste: você me ouvirá!]
terça-feira, 2 de maio de 2017
Belchior: Queremos tudo outra vez
Convivo com Belchior desde criança, quando me foi apresentado através de Apenas um Rapaz Latino-Americano. Obviamente, tendo menos de dez anos de idade, era impossível que compreendesse bem aquela amargura com que ele observava o tempo e o espaço ao seu redor; tampouco aquela missão, reconhecida nos versos que escancaravam que sons, palavras são navalhas; e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém. Mesmo sem entender nada disso naquela época, passei um bom tempo apresentando-me por aí como apenas uma menina latino-americana sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vinda da capital.
A mim, sempre chamou a atenção a poesia de versos cortantes, a abordagem marcadamente original dos temas cotidianos e da conjuntura. Em 2012, quando comecei a cantar o repertório de Belchior, os estudos me levaram a lugares ainda mais diversos e sonoridades que até então tinham passado despercebidas por mim.
Diversas influências musicais podem ser flagradas em constante diálogo com seus versos intensos, ácidos, e a certeira disposição de contrastar com o que observava. Sua obra é repleta de intertextualidade, o que já o colocou em conversa com Bob Dylan, John Lennon, Caetano Veloso, Stanley Kubrick. Belchior foi alguém que fez Dante Alighieri e Olavo Bilac conviverem na mesma canção – que ele concluía, mais uma vez, demarcando: enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto.
Aliás, até para falar de romance, Belchior conseguia ser original. A Divina Comédia Humana, uma das minhas prediletas, aborda com naturalidade e doçura o que quase todos veem como a triste fatalidade do amor, ao indicar que, sendo que nada é eterno, a certeza do fim não deveria amedrontar ninguém.
A falta que lhe fazia sua casa, o Ceará, foi retratada numa narrativa de saudade que percorreu muitas músicas belas, cada vez empunhando uma tonalidade diferente da mesma dor. A América Latina pulsava nele, a ponto de A Palo Seco tornar-se quase um hino da latinoamericanidade, num país que poucas vezes se lembra de que é esse o contexto no qual está inserido. E ali, outra vez, ele revela: eu quero é que este canto torto, feito faca, corte a carne de vocês.
Era atento observador do seu tempo, com quem sempre brigou. Exibindo as cicatrizes que marcam aqueles e aquelas que têm que deixar sua terra natal, ele deixava escapar sua melancolia de mãos dadas com sua ânsia de futuro. Sendo ele um crítico dos modismos e do entusiasmo exacerbado, quando esboçava um sorriso de esperança em meio ao marasmo que via, ninguém era capaz de fazer melhor, e com tão singela grandeza. A música que vinha concentrando minha atenção nos últimos dias era justamente Tudo Outra Vez, onde ele diz que viveria as coisas novas, que também são boas, o amor, o humor das praças cheias de pessoas. E agora nós é que queremos tudo, tudo outra vez.
O cara angustiado para superar o “velho”; avesso a reverências e obediências. Quem conhece a obra de Belchior tem a impressão de estar diante de uma inquietação sem limites, que talvez tenha encontrado na referida missão um alento na busca de paz e dias melhores. Sua ironia era de uma riqueza extraordinária, porque contida no universo sem fronteiras do filósofo-artista que, assim como Drummond, tinha o tempo como sua matéria.
Belchior não existiu. Foi uma Alucinação que a gente teve.
A mim, sempre chamou a atenção a poesia de versos cortantes, a abordagem marcadamente original dos temas cotidianos e da conjuntura. Em 2012, quando comecei a cantar o repertório de Belchior, os estudos me levaram a lugares ainda mais diversos e sonoridades que até então tinham passado despercebidas por mim.
Diversas influências musicais podem ser flagradas em constante diálogo com seus versos intensos, ácidos, e a certeira disposição de contrastar com o que observava. Sua obra é repleta de intertextualidade, o que já o colocou em conversa com Bob Dylan, John Lennon, Caetano Veloso, Stanley Kubrick. Belchior foi alguém que fez Dante Alighieri e Olavo Bilac conviverem na mesma canção – que ele concluía, mais uma vez, demarcando: enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto.
Aliás, até para falar de romance, Belchior conseguia ser original. A Divina Comédia Humana, uma das minhas prediletas, aborda com naturalidade e doçura o que quase todos veem como a triste fatalidade do amor, ao indicar que, sendo que nada é eterno, a certeza do fim não deveria amedrontar ninguém.
A falta que lhe fazia sua casa, o Ceará, foi retratada numa narrativa de saudade que percorreu muitas músicas belas, cada vez empunhando uma tonalidade diferente da mesma dor. A América Latina pulsava nele, a ponto de A Palo Seco tornar-se quase um hino da latinoamericanidade, num país que poucas vezes se lembra de que é esse o contexto no qual está inserido. E ali, outra vez, ele revela: eu quero é que este canto torto, feito faca, corte a carne de vocês.
Era atento observador do seu tempo, com quem sempre brigou. Exibindo as cicatrizes que marcam aqueles e aquelas que têm que deixar sua terra natal, ele deixava escapar sua melancolia de mãos dadas com sua ânsia de futuro. Sendo ele um crítico dos modismos e do entusiasmo exacerbado, quando esboçava um sorriso de esperança em meio ao marasmo que via, ninguém era capaz de fazer melhor, e com tão singela grandeza. A música que vinha concentrando minha atenção nos últimos dias era justamente Tudo Outra Vez, onde ele diz que viveria as coisas novas, que também são boas, o amor, o humor das praças cheias de pessoas. E agora nós é que queremos tudo, tudo outra vez.
O cara angustiado para superar o “velho”; avesso a reverências e obediências. Quem conhece a obra de Belchior tem a impressão de estar diante de uma inquietação sem limites, que talvez tenha encontrado na referida missão um alento na busca de paz e dias melhores. Sua ironia era de uma riqueza extraordinária, porque contida no universo sem fronteiras do filósofo-artista que, assim como Drummond, tinha o tempo como sua matéria.
Belchior não existiu. Foi uma Alucinação que a gente teve.
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017
Senhor Samba #4 - A arquiduquesa do Encantado
"Noel foi quem acreditou em mim, desde o primeiro dia em que eu vi um microfone na vida.
Eu morava no Encantado, um subúrbio um pouco longe, e vivia cantando em festinhas... Eu cantei no candomblé da Paulina, na rua Borges Reis. Cantei na escola de samba 'Somos de pouco falar', no largo da Abolição. Cantei em coro de igreja protestante, no Méier. Mas isso tudo não rendia dinheirinho, e eu estava precisando de arrumar uma nota. Já estava farta de cantar de graça, e quem canta de graça é galo, mas tem certos direitos no terreiro.
Diante disso, eu estava louca para ir para o rádio, porque o rádio era a sensação daquela época, lá
pelas bandas de 1932, 33, né? E apareceu lá um rapaz, um matusquela lá no Encantado, que era amigo de Custódio Mesquita. Eu arrumei uma roupinha melhorzinha que eu tinha, que não era lá muito legal, mas servia, né?, e fui até a avenida Rio Branco, pela primeira vez na minha vida, que eu não conhecia a cidade, nem nada. Era um verdadeiro xavante.
Custódio Mesquita estava lá, e me ensaiou um samba. Mas eu não estava dando no couro, porque eu estava muito nervosa, a primeira vez com um piano na minha frente pra me acompanhar! Eu aí resolvi partir pra marcha, porque marcha era mais fácil, era uma espécie de bossa-nova, qualquer tom servia e era naquela base, né?
Custódio aí disse:
- Tá bom Aracy, eu vou te levar então até a Rádio Educadora do Brasil.
Quando acabei de cantar aquela marchinha no programa de Pinóquio, eu... apareceu uma figurinha formidável, assim magrinha, assim, de terno de flanela branca, assim, uma gravata branca, camisa azul-marinho, sapato branco, muito bem vestido. Apareceu o Noel Rosa. E parece que foi pra me dar assim um pouco de alento, uma colherzinha de chá, vamos dizer assim, né? Disse:
- Aracy, eu gostei muito. Você cantou muito bem e tal...
Nós ficamos batendo um papo, coisa e loisa.... Nessas alturas, o Noel disse pra mim assim:
- Ô, Aracy?! Vamos tomar uma cerveja Cascatinha na Taberna da Glória?
Lá fui eu pra Taberna da Glória com o Noel, de bonde. Sentamos, encontramos uma porção de malandros conhecidos do Noel: Saturnino, Brancura, Zeca Meia-noite... Ele tinha uns amigos espetaculares, o Noel. Os malandros mais [gargalhando], mais gloriosos da época eram amigos de Noel Rosa. De maneira que, naquela turminha, fiquei eu ali botando as minhas banca, né?, cantando muito, porque eu cantava desde que acordava até que ia dormir. E aconteceu o seguinte: eu fiquei bebendo até de manhã cedo, naquela roda, parecia até que eu já conhecia eles e tal. E afinal de contas, cheguei em casa num porre que não tinha mais tamanho, né? E depois desse porre que eu tomei, eu me emendei com os da Glória:
- Eu pretendo hoje tomar um daqueles gloriosos às onze e meia.”
[Monólogo de Aracy de Almeida extraído do disco "O Samba Pede Passagem" (1965) registro dos melhores momentos do show de mesmo nome realizado em 1965.]
Eu morava no Encantado, um subúrbio um pouco longe, e vivia cantando em festinhas... Eu cantei no candomblé da Paulina, na rua Borges Reis. Cantei na escola de samba 'Somos de pouco falar', no largo da Abolição. Cantei em coro de igreja protestante, no Méier. Mas isso tudo não rendia dinheirinho, e eu estava precisando de arrumar uma nota. Já estava farta de cantar de graça, e quem canta de graça é galo, mas tem certos direitos no terreiro.
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Aracy de Almeida |
pelas bandas de 1932, 33, né? E apareceu lá um rapaz, um matusquela lá no Encantado, que era amigo de Custódio Mesquita. Eu arrumei uma roupinha melhorzinha que eu tinha, que não era lá muito legal, mas servia, né?, e fui até a avenida Rio Branco, pela primeira vez na minha vida, que eu não conhecia a cidade, nem nada. Era um verdadeiro xavante.
Custódio Mesquita estava lá, e me ensaiou um samba. Mas eu não estava dando no couro, porque eu estava muito nervosa, a primeira vez com um piano na minha frente pra me acompanhar! Eu aí resolvi partir pra marcha, porque marcha era mais fácil, era uma espécie de bossa-nova, qualquer tom servia e era naquela base, né?
Custódio aí disse:
- Tá bom Aracy, eu vou te levar então até a Rádio Educadora do Brasil.
Quando acabei de cantar aquela marchinha no programa de Pinóquio, eu... apareceu uma figurinha formidável, assim magrinha, assim, de terno de flanela branca, assim, uma gravata branca, camisa azul-marinho, sapato branco, muito bem vestido. Apareceu o Noel Rosa. E parece que foi pra me dar assim um pouco de alento, uma colherzinha de chá, vamos dizer assim, né? Disse:
- Aracy, eu gostei muito. Você cantou muito bem e tal...
Nós ficamos batendo um papo, coisa e loisa.... Nessas alturas, o Noel disse pra mim assim:
- Ô, Aracy?! Vamos tomar uma cerveja Cascatinha na Taberna da Glória?
Lá fui eu pra Taberna da Glória com o Noel, de bonde. Sentamos, encontramos uma porção de malandros conhecidos do Noel: Saturnino, Brancura, Zeca Meia-noite... Ele tinha uns amigos espetaculares, o Noel. Os malandros mais [gargalhando], mais gloriosos da época eram amigos de Noel Rosa. De maneira que, naquela turminha, fiquei eu ali botando as minhas banca, né?, cantando muito, porque eu cantava desde que acordava até que ia dormir. E aconteceu o seguinte: eu fiquei bebendo até de manhã cedo, naquela roda, parecia até que eu já conhecia eles e tal. E afinal de contas, cheguei em casa num porre que não tinha mais tamanho, né? E depois desse porre que eu tomei, eu me emendei com os da Glória:
- Eu pretendo hoje tomar um daqueles gloriosos às onze e meia.”
[Monólogo de Aracy de Almeida extraído do disco "O Samba Pede Passagem" (1965) registro dos melhores momentos do show de mesmo nome realizado em 1965.]
terça-feira, 20 de setembro de 2016
O Samba e as Lutas do Povo
A vida do nosso povo é a alma do samba. Aquele que sai da batalha, entra no botequim, pede uma cerva gelada e agita na mesa uma batucada. O povo que canta em versos suas dores, seus amores, suas lutas, mesmo naquela época em que alguém poderia ser preso simplesmente por portar um violão ou um pandeiro. Era um Brasil de Delegados Chico Palha, sem alma nem coração, querendo banir o samba e a corimba de sua jurisdição. Mas o violão e pandeiro ganharam os corações e os salões irreversivelmente, sob olhares furiosos dos senhores, que os queriam mudos ou domesticados, que queriam o samba "com livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor". E tantos foram calados, e tantos foram banidos, e tantos foram esquecidos.
Hoje, nesta Brasília amordaçada, cidade-arte, cidade-artista, reprimida, silenciada, onde ninguém ouviu o soluçar da dor no canto do Brasil, as coisas não mudaram tanto assim. A cidade emudecida, que já foi alegria. A cidade que já foi palco de Cássia, Zélia e Ednardo, a cidade que foi um sonho do Oscar, a cidade-borboleta. A cidade que hoje abriga aqueles que querem calar nossos sonhos com um golpe baixo na boca do coração.
Mas aqueles e aquelas que nos abriram os caminhos também nos ensinaram a seguir. É para eles que oramos, e com eles contamos ao nos defrontar com gente infeliz, que diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba. Valei-nos Nara Leão, Clara Nunes, João Nogueira, Noel Rosa, Chico Buarque, Cartola, Elis Regina, João Bosco, Aldir Blanc! Socorram-nos Zé Kéti, Gonzaguinha, Alcione, Paulo César Pinheiro, Nelson Sargento!
Nossa carne é feita da carne de todos aqueles que desde o início do século passado usaram notas musicais como armas em combate, que encantaram multidões a preferir um verso de samba do que escutar som de tiro. Eles e elas, que jamais se intimidaram, jamais aceitaram a imposição do silêncio, a proibição de pensar. Nós nos levantamos e eles vêm junto, fazer do nosso canto um canto mais forte. No nosso sangue tem a luta do nosso povo, nossas lágrimas contêm nossa ânsia de futuro, nossos passos apontam nosso gosto pela vida. Nossos instrumentos produzem o som do nosso amor e da nossa luta. Enquanto houver quem tente abafar o voz do oprimido com a dor e o gemido, nós cantaremos. Ninguém vai nos acorrentar, enquanto pudermos cantar, enquanto pudermos sorrir. A gente samba para resistir. A gente canta para não permitir. A gente batuca para conseguir. Afinal, uma dor assim, pungente, não há de ser inutilmente.
Não adianta nos matar: somos herdeiros e herdeiras de um povo que não morre nunca.
Hoje, nesta Brasília amordaçada, cidade-arte, cidade-artista, reprimida, silenciada, onde ninguém ouviu o soluçar da dor no canto do Brasil, as coisas não mudaram tanto assim. A cidade emudecida, que já foi alegria. A cidade que já foi palco de Cássia, Zélia e Ednardo, a cidade que foi um sonho do Oscar, a cidade-borboleta. A cidade que hoje abriga aqueles que querem calar nossos sonhos com um golpe baixo na boca do coração.
Mas aqueles e aquelas que nos abriram os caminhos também nos ensinaram a seguir. É para eles que oramos, e com eles contamos ao nos defrontar com gente infeliz, que diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba. Valei-nos Nara Leão, Clara Nunes, João Nogueira, Noel Rosa, Chico Buarque, Cartola, Elis Regina, João Bosco, Aldir Blanc! Socorram-nos Zé Kéti, Gonzaguinha, Alcione, Paulo César Pinheiro, Nelson Sargento!
Nossa carne é feita da carne de todos aqueles que desde o início do século passado usaram notas musicais como armas em combate, que encantaram multidões a preferir um verso de samba do que escutar som de tiro. Eles e elas, que jamais se intimidaram, jamais aceitaram a imposição do silêncio, a proibição de pensar. Nós nos levantamos e eles vêm junto, fazer do nosso canto um canto mais forte. No nosso sangue tem a luta do nosso povo, nossas lágrimas contêm nossa ânsia de futuro, nossos passos apontam nosso gosto pela vida. Nossos instrumentos produzem o som do nosso amor e da nossa luta. Enquanto houver quem tente abafar o voz do oprimido com a dor e o gemido, nós cantaremos. Ninguém vai nos acorrentar, enquanto pudermos cantar, enquanto pudermos sorrir. A gente samba para resistir. A gente canta para não permitir. A gente batuca para conseguir. Afinal, uma dor assim, pungente, não há de ser inutilmente.
Não adianta nos matar: somos herdeiros e herdeiras de um povo que não morre nunca.
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Foto de Karla Gamba. |
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
Não sambe
As palavras ruins se associam por afinidade. Tristeza, ódio, golpe, obscurantismo, autoritarismo. A imposição do silêncio; e nós sabemos que paz sem voz não é paz, é medo. O toque de recolher. Os assuntos proibidos, as desavenças gratuitas: preconceito, violência, cultura do ódio a todo vapor. O cara nem sabe por que odeia, pensa que ele mesmo formulou o ódio ao outro, sem notar que ele comprou um ódio prontinho de fábrica, de segunda mão, único dono. Mas meu senhor, por que tanto rancor? Por que me agride sem me conhecer?
A resposta é o silêncio que atravessa a madrugada. O escuro da noite é belo, mas querem tonar sombrio. A beleza dos nossos sonhos e das nossas lutas, nossos punhos cerrados, nossos braços erguidos, tudo isso virou ofensa. A democracia virou ofensa.
Não pode. Não vá. Não cante. Não pule. Não torça. Não vaie. Não fale de amor. Não erga sua bandeira. Não vista vermelho. Não expresse sua opinião. Há um grito parado no ar, eu não vejo, mas posso senti-lo.
Não sambe. Não sambe. Não sambe. Mas senhor, o samba não agride ninguém. No início do século passado, a gente era criminalizado, samba era vadiagem, João da Baiana foi preso somente por portar um pandeiro. Delegados sem alma e sem coração que não querem samba nem corimba na sua jurisdição. Tinha ficado no passado, mas não. Quando o ódio é maior que o amor, o samba não encontra seu lugar mesmo. Já fomos criminosos. Já fomos vagabundos. Já fomos baderneiros. Tudo bêbado. Mas por que, senhor? É que mesmo calado o peito, resta a cuca.
Somos de novo vagabundos. Artista é vagabundo. Outra vez, somos baderneiros. Vamos acabar com o samba, madame não gosta que ninguém sambe. Mas por que, senhor? Tanta alegria ofende. Juntar gente é perigoso.
Meu samba está sem casa. Mas ainda tem gente que canta, ainda tem gente que brinca. Não podem tolerar gente que canta, somos perigosos. Silêncio, silêncio. Já não há lugar, vamos fechar, vamos esvaziar, vamos interromper. Mandou parar a cuíca: é coisa dos hóme. A fome e a raiva é coisa dos hóme.
Meu samba está sem casa. Mas o samba não se aprisiona em casa nenhuma, não senhor. Quem suportar uma paixão, saberá que a casa do samba é o coração. E em nossos corações vocês não vão poder mandar. Quero ver quem haverá de calar a música que ecoa aqui dentro da minha cabeça.
Meu samba está sem casa, mas o samba é da rua, o samba é sem rumo, o samba é do povo, do amor e de todo lugar. Nós não vamos ficar na saudade: o samba é a nossa casa. E sempre haverá casa para quem tem amor.
"É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar
Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva"
(MORDAÇA - Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro)
A resposta é o silêncio que atravessa a madrugada. O escuro da noite é belo, mas querem tonar sombrio. A beleza dos nossos sonhos e das nossas lutas, nossos punhos cerrados, nossos braços erguidos, tudo isso virou ofensa. A democracia virou ofensa.
Não pode. Não vá. Não cante. Não pule. Não torça. Não vaie. Não fale de amor. Não erga sua bandeira. Não vista vermelho. Não expresse sua opinião. Há um grito parado no ar, eu não vejo, mas posso senti-lo.
Não sambe. Não sambe. Não sambe. Mas senhor, o samba não agride ninguém. No início do século passado, a gente era criminalizado, samba era vadiagem, João da Baiana foi preso somente por portar um pandeiro. Delegados sem alma e sem coração que não querem samba nem corimba na sua jurisdição. Tinha ficado no passado, mas não. Quando o ódio é maior que o amor, o samba não encontra seu lugar mesmo. Já fomos criminosos. Já fomos vagabundos. Já fomos baderneiros. Tudo bêbado. Mas por que, senhor? É que mesmo calado o peito, resta a cuca.
Somos de novo vagabundos. Artista é vagabundo. Outra vez, somos baderneiros. Vamos acabar com o samba, madame não gosta que ninguém sambe. Mas por que, senhor? Tanta alegria ofende. Juntar gente é perigoso.
Meu samba está sem casa. Mas ainda tem gente que canta, ainda tem gente que brinca. Não podem tolerar gente que canta, somos perigosos. Silêncio, silêncio. Já não há lugar, vamos fechar, vamos esvaziar, vamos interromper. Mandou parar a cuíca: é coisa dos hóme. A fome e a raiva é coisa dos hóme.
Meu samba está sem casa. Mas o samba não se aprisiona em casa nenhuma, não senhor. Quem suportar uma paixão, saberá que a casa do samba é o coração. E em nossos corações vocês não vão poder mandar. Quero ver quem haverá de calar a música que ecoa aqui dentro da minha cabeça.
Meu samba está sem casa, mas o samba é da rua, o samba é sem rumo, o samba é do povo, do amor e de todo lugar. Nós não vamos ficar na saudade: o samba é a nossa casa. E sempre haverá casa para quem tem amor.
"É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar
Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva"
(MORDAÇA - Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro)
segunda-feira, 8 de agosto de 2016
Sobre presença de palco
Outro dia, falávamos do show de uma cantora que eu não conhecia. Ouvi críticas à presença de palco dela, e mesmo não a conhecendo, não pude ouvir calada.
Precisa ter cuidado para condenar a presença de palco de alguém. Teresa Cristina disse que já foi muito criticada por cantar de olhos fechados, e foi por isso que compôs "Cantar". Eu penso que a interpretação é parte fundamental da tal da presença de palco, e ela é muito pessoal de cada artista, não podem querer ensinar alguém a fazer isso. Você pode, no máximo, contribuir para a pessoa encontrar a melhor maneira de se expressar, mas sem contrariar sua própria personalidade. Quando eu canto uma canção, o que sai de mim é uma síntese da soma eu + ela; eu falo dela como eu entendo dela, não como ela é. E é a minha forma de falar.
Eu valorizo muito a espontaneidade, então, obviamente, não creio que exista um só jeito de fazer isso. Tenho horror a "ensaio" de presença de palco, do treinamento sistemático de movimentos coordenados, de expressões faciais. Elza Soares, que não tem podido levantar-se da cadeira para cantar, tem, ainda assim, mais presença de palco que muita gente que gosta de saltitar e falta só dar piruetas - mas tudo fake, porque não espontâneo.
Nunca permiti que meus professores e professoras de canto tentassem interferir nessa parte. Essa parte é minha, eu extravaso a música espontaneamente, do jeito que ela sair de mim na hora.
Treinar presença de palco me parece uma tentativa de botar na caixinha a abordagem que o próprio artista faz da sua arte - ou seja, aprisionar algo que tem que ser livre. Torná-la mais um elemento que pode ser produzido em série, como se todo mundo fosse igual, ou devesse ser. Óbvio que, para alguém que se apresenta para uma plateia, é importante superar a timidez e estabelecer algum tipo de empatia com seu público. Mas há diversas formas de fazer isso. Treinar presença de palco não me parece uma boa coisa, ao contrário.
Precisa ter cuidado para condenar a presença de palco de alguém. Teresa Cristina disse que já foi muito criticada por cantar de olhos fechados, e foi por isso que compôs "Cantar". Eu penso que a interpretação é parte fundamental da tal da presença de palco, e ela é muito pessoal de cada artista, não podem querer ensinar alguém a fazer isso. Você pode, no máximo, contribuir para a pessoa encontrar a melhor maneira de se expressar, mas sem contrariar sua própria personalidade. Quando eu canto uma canção, o que sai de mim é uma síntese da soma eu + ela; eu falo dela como eu entendo dela, não como ela é. E é a minha forma de falar.
Eu valorizo muito a espontaneidade, então, obviamente, não creio que exista um só jeito de fazer isso. Tenho horror a "ensaio" de presença de palco, do treinamento sistemático de movimentos coordenados, de expressões faciais. Elza Soares, que não tem podido levantar-se da cadeira para cantar, tem, ainda assim, mais presença de palco que muita gente que gosta de saltitar e falta só dar piruetas - mas tudo fake, porque não espontâneo.
Nunca permiti que meus professores e professoras de canto tentassem interferir nessa parte. Essa parte é minha, eu extravaso a música espontaneamente, do jeito que ela sair de mim na hora.
Treinar presença de palco me parece uma tentativa de botar na caixinha a abordagem que o próprio artista faz da sua arte - ou seja, aprisionar algo que tem que ser livre. Torná-la mais um elemento que pode ser produzido em série, como se todo mundo fosse igual, ou devesse ser. Óbvio que, para alguém que se apresenta para uma plateia, é importante superar a timidez e estabelecer algum tipo de empatia com seu público. Mas há diversas formas de fazer isso. Treinar presença de palco não me parece uma boa coisa, ao contrário.
domingo, 3 de julho de 2016
Senhor Samba #3 - No rancho fundo
"No Rancho Fundo" não é música sertaneja, nem é de Chitãozinho e Xororó. É um samba-canção composto por Ary Barroso para musicar poema do caricaturista e poeta José Carlos de Brito Cunha. e foi apresentado por Aracy Côrtes numa peça do Teatro de Revista. Nasceu como "Esse mulato vai ser meu", com subtítulo "Na grota funda":
Na grota funda
Na virada da montanha
Só se conta uma façanha
Do mulato da Reimunda
Pois Lamartine Babo ficou muito impressionado com a música, mas não gostou da letra. Reza a lenda que pediu permissão para Ary, que não a concedeu, para botar outros versos na canção. Ignorou a negativa e criou a nova letra mesmo assim, substituindo a Grota Funda por um Rancho Fundo. Mas não há consenso se houve o pedido e se foi negada ou não a autorização. Fato é que foi a letra de Lamartine que ficou para a posteridade; e que na primeira gravação, com Elisinha Coelho, em 1931, Ary tocou piano.
Detalhe: Chitãozinho e Xororó alteraram o final da letra. Trocaram a cabrocha por uma morena, e, para manter a rima, recriaram os versos: "O sol queimando / Se uma flor lá desabrocha / A montanha vai gelando / Lembra o aroma da cabrocha".
Na grota funda
Na virada da montanha
Só se conta uma façanha
Do mulato da Reimunda
Pois Lamartine Babo ficou muito impressionado com a música, mas não gostou da letra. Reza a lenda que pediu permissão para Ary, que não a concedeu, para botar outros versos na canção. Ignorou a negativa e criou a nova letra mesmo assim, substituindo a Grota Funda por um Rancho Fundo. Mas não há consenso se houve o pedido e se foi negada ou não a autorização. Fato é que foi a letra de Lamartine que ficou para a posteridade; e que na primeira gravação, com Elisinha Coelho, em 1931, Ary tocou piano.
Detalhe: Chitãozinho e Xororó alteraram o final da letra. Trocaram a cabrocha por uma morena, e, para manter a rima, recriaram os versos: "O sol queimando / Se uma flor lá desabrocha / A montanha vai gelando / Lembra o aroma da cabrocha".
terça-feira, 17 de maio de 2016
Senhor Samba #2 - Estrela de Madureira
Para exaltar a sua arte, que encantou Madureira
Um lindo samba cantado nas rodas de todo o país é "Estrela de Madureira", de Acyr Pimentel e Cardoso, consagrado na voz do grande Roberto Ribeiro. Hoje em dia, mais de 40 anos depois de sua composição, e quase 60 anos depois a morte da sua musa, pouca gente sabe de quem fala a bela letra.
Trata-se de Záquia Jorge, atriz, cantora e empresária. Atuou nas décadas de 40 e 50, com sucesso, no cinema e no Teatro de Revista (formato dramatúrgico muito comum nas primeiras décadas do século XX, tendo revelado grandes artistas). Mas Záquia fez mais: "foi a pioneira" ao erguer o Teatro de Revista Madureira no bairro de mesmo nome, em frente à estação de trem, com a intenção de compartilhar com o subúrbio a cultura que se disseminava pelo centro e regiões nobres do Rio de Janeiro - inclusive praticando preços mais acessíveis para conquistar aquele público.
Záquia e seu marido, Júlio Leiloeiro, empreenderam muitos esforços para fazer vingar a ideia. Segundo conta Nei Lopes, aquele era um momento em que diversas possibilidades se abriam para Madureira nas áreas de Cultura e de Lazer. O Teatro de Revista começava a experimentar sua decadência, mas mesmo assim, a casa foi inaugurada em 1952 com o espetáculo "Trem de Luxo", mencionado no samba. Durante os dias, o teatro abrigou aulas de artes dramáticas. Porém, não sobreviveu à morte de sua "vedete principal".
Záquia morreu vítima de afogamento na praia da Barra da Tijuca, que era muito pouco frequentada na época, deixando marido, filho e uma legião de fãs e amigos. Seu velório no Teatro de Revista Madureira foi acompanhado por mais de 4 mil pessoas.
Em 1975, a Império Serrano, com justiça e com propriedade, homenageou Záquia. O samba escolhido para isso não foi "Estrela de Madureira", mas sim, um samba de Avarese, "Záquia Jorge, Estrela de Madureira, Vedete do Subúrbio", que rendeu à escola o terceiro lugar no Carnaval daquele ano. Entretanto, antes de ambos, houve "Madureira Chorou", samba de Carvalhinho e Júlio Leiloeiro, gravado por Joel de Almeida em 1958.
Pelo papel desempenhado nos palcos, sets e, especialmente, em Madureira, Záquia é uma personagem à altura da grandiosidade dos sambas que a homenageiam.
Um lindo samba cantado nas rodas de todo o país é "Estrela de Madureira", de Acyr Pimentel e Cardoso, consagrado na voz do grande Roberto Ribeiro. Hoje em dia, mais de 40 anos depois de sua composição, e quase 60 anos depois a morte da sua musa, pouca gente sabe de quem fala a bela letra.
Trata-se de Záquia Jorge, atriz, cantora e empresária. Atuou nas décadas de 40 e 50, com sucesso, no cinema e no Teatro de Revista (formato dramatúrgico muito comum nas primeiras décadas do século XX, tendo revelado grandes artistas). Mas Záquia fez mais: "foi a pioneira" ao erguer o Teatro de Revista Madureira no bairro de mesmo nome, em frente à estação de trem, com a intenção de compartilhar com o subúrbio a cultura que se disseminava pelo centro e regiões nobres do Rio de Janeiro - inclusive praticando preços mais acessíveis para conquistar aquele público.
Záquia e seu marido, Júlio Leiloeiro, empreenderam muitos esforços para fazer vingar a ideia. Segundo conta Nei Lopes, aquele era um momento em que diversas possibilidades se abriam para Madureira nas áreas de Cultura e de Lazer. O Teatro de Revista começava a experimentar sua decadência, mas mesmo assim, a casa foi inaugurada em 1952 com o espetáculo "Trem de Luxo", mencionado no samba. Durante os dias, o teatro abrigou aulas de artes dramáticas. Porém, não sobreviveu à morte de sua "vedete principal".
Záquia morreu vítima de afogamento na praia da Barra da Tijuca, que era muito pouco frequentada na época, deixando marido, filho e uma legião de fãs e amigos. Seu velório no Teatro de Revista Madureira foi acompanhado por mais de 4 mil pessoas.
Em 1975, a Império Serrano, com justiça e com propriedade, homenageou Záquia. O samba escolhido para isso não foi "Estrela de Madureira", mas sim, um samba de Avarese, "Záquia Jorge, Estrela de Madureira, Vedete do Subúrbio", que rendeu à escola o terceiro lugar no Carnaval daquele ano. Entretanto, antes de ambos, houve "Madureira Chorou", samba de Carvalhinho e Júlio Leiloeiro, gravado por Joel de Almeida em 1958.
Pelo papel desempenhado nos palcos, sets e, especialmente, em Madureira, Záquia é uma personagem à altura da grandiosidade dos sambas que a homenageiam.
sexta-feira, 13 de maio de 2016
A volta dos que não foram
É mesmo a volta dos que não foram. Para quem tinha qualquer dúvida, o anúncio do "novo" ministério salda todas. Sem obter nenhum voto, Michel Temer assume "interinamente" e traz para o Governo Federal aqueles que foram derrotados nas últimas eleições, para implantar a sua "Ponte para o Futuro" (sic) que representa pura e simplesmente o programa derrotado nas últimas eleições.
Para mim, que comecei minha militância no movimento estudantil e, duas décadas depois, trabalho com um sindicato de professores, é simbólico e melancólico ver essa figura da foto de volta à cena.
Ao lado do ministro da educação (minúsculo mesmo) recém-empossado, está Maria Helena Guimarães Castro, que presidiu o Inep durante o governo FHC e era mulher de confiança do então ministro Paulo Renato de Souza. Ela foi responsável pela implementação do provão, que eu e tantos combatemos com afinco, denunciando a privatização escondida nas entrelinhas daquele fajuto instrumento. Foi das grandes elaboradoras do projeto mercantilização da Educação que tentaram nos enfiar goela abaixo, especialmente nas universidades, mas nós resistimos, nós o derrotamos e até tripudiamos sobre ele... Até agora há pouco: essa senhora será secretária-executiva do "novo" MEC, que recuperará o sentido que tinha na ditadura militar.
Maria Helena também foi Secretária de Educação em São Paulo, onde nasci - e onde o PSDB vai completar 24 anos de governo: há toda uma geração que nunca viu outro partido governar São Paulo -, e reagiu com toda truculência característica do seu partido a uma das maiores greves de professores da história do estado. Maria Helena, que quis implementar um programa de remuneração por mérito para os profissionais da Educação. Lá, onde a Educação Pública vai de mal a pior, sendo desmontada dia a dia, com professores desmotivados e desvalorizados, e onde estudantes são criminalizados por tentar defender sua escola desses ataques. Lá, onde a verba da merenda é desviada sem nenhuma investigação; aliás, lá, onde toda e qualquer tentativa de investigar alguma coisa é enterrada de véspera.
Parabéns aos envolvidos por trazerem de volta essa galera das catacumbas.
Quanto a nós... Estaremos onde sempre estivemos. Resistir e enfrentar vocês é algo que fazemos muito bem. Especialmente na Educação.
quinta-feira, 28 de abril de 2016
A estrada e a poetisa estão a caminho!
A experiência de lançar meu primeiro livro foi intensa. Em Retratos - E algumas mentirinhas a mais, lançado em 2013 pela Editora Giostri, estavam reunidos poemas meus desde tempos imemoriais até o fim de 2012. Claro que os recentes eram maioria, mas os da origem também estavam lá.
Agora é diferente. A estrada e a poetisa é resultado das andanças, especialmente entre Porto Alegre, Brasília e São Paulo, mas também Rio e Fortaleza, cidades que me cativam, e uma pitada de Salvador, porque a Bahia está no sangue e na alma. Pretendo atingir a meta de arrecadação para poder lançar meu livros nessas seis cidades, pelo menos, para agradecer pela inspiração e pelos motivos de viver com que fui e sou contemplada.
Você pode ser parte desse projeto: A estrada e a poetisa será lançado pela Folio Digital, em sistema de financiamento coletivo. Uma produção colaborativa, na qual você adquire seu livro antecipadamente para ajudar a financiá-lo. Assim:
Com R$ 30,00, você recebe seu livro autografado com muito carinho na sua casa!
Com R$ 60,00, você recebe o livro autografado com o mesmo carinho, e ainda leva Retratos e meu EP Curto Pavio!
Com R$ 100,00, você recebe seu exemplar autografado e com carinho, e ainda mais três para você dar de presente a quem quiser!
Quer fazer parte desse projeto? Clica aqui!
Conto com vocês em mais essa empreitada de artista independente, que sofre e sua pra bancar sua arte, mas que a realiza com amor e esperança nos novos tempos que, demore o que demorar, virão. Nossa estrada leva pra lá.
Obrigada desde já!
Agora é diferente. A estrada e a poetisa é resultado das andanças, especialmente entre Porto Alegre, Brasília e São Paulo, mas também Rio e Fortaleza, cidades que me cativam, e uma pitada de Salvador, porque a Bahia está no sangue e na alma. Pretendo atingir a meta de arrecadação para poder lançar meu livros nessas seis cidades, pelo menos, para agradecer pela inspiração e pelos motivos de viver com que fui e sou contemplada.
Você pode ser parte desse projeto: A estrada e a poetisa será lançado pela Folio Digital, em sistema de financiamento coletivo. Uma produção colaborativa, na qual você adquire seu livro antecipadamente para ajudar a financiá-lo. Assim:
Com R$ 30,00, você recebe seu livro autografado com muito carinho na sua casa!
Com R$ 60,00, você recebe o livro autografado com o mesmo carinho, e ainda leva Retratos e meu EP Curto Pavio!
Com R$ 100,00, você recebe seu exemplar autografado e com carinho, e ainda mais três para você dar de presente a quem quiser!
Quer fazer parte desse projeto? Clica aqui!
Conto com vocês em mais essa empreitada de artista independente, que sofre e sua pra bancar sua arte, mas que a realiza com amor e esperança nos novos tempos que, demore o que demorar, virão. Nossa estrada leva pra lá.
Obrigada desde já!
quinta-feira, 18 de junho de 2015
SAMBRA - Apenas uma opinião
O espetáculo SAMBRA, protagonizado por Diogo Nogueira, vem percorrendo o Brasil para saudar cem anos de história do samba - desde o registro de "Pelo Telephone" por Donga e Mauro de Almeida. A iniciativa é de se festejar, afinal, exaltar a cultura popular brasileira nunca é demais, e a história do samba se confunde mesmo com a própria história do país.
O musical é muito bem produzido no que se refere à parte artística: os números são brilhantemente executados e o repertório é uma maravilha. Sem contar que ver aqueles personagens encarnados chega a emocionar: Sinhô, Ismael Silva, Donga, Tia Ciata... Todo mundo lá, diante de nossos olhos, cantando e contando história.
Porém, creio que há alguns problemas importantes exatamente na história que ali está contada. Escrevo estas linhas a título de contribuição a quem, assim como eu, tem gosto e amor por conhecer essa história.
O mais grave desses problemas, na minha opinião, é o esquecimento ao qual Carmen Miranda praticamente ficou relegada. Em dado momento da história, uma mulher vestida em clara referência a ela aparece cantando "O que é que a baiana tem?". Isso se dá no momento do show em que se evocam as cantoras do rádio, e o número é apresentado como "samba de Dorival Caymmi". O nome de Carmen sequer é mencionado: o locutor de rádio, que parece representar o famoso César Ladeira, anuncia a "Pequena Notável".
Diante de personagens a que o texto do espetáculo faz referência integral, como aqueles que mencionei acima, Carmen Miranda, a mais importante intérprete de samba dos anos 1930, foi escondida. Talvez haja uma justificativa da produção do musical para isso. Mas o fato é que uma estrela da grandeza de Carmen Miranda não pode ficar tão minimizada quando o tema é, justamente, a história da música que ela contribuiu muito para consagrar.
Alguns não gostam de Carmen pela opção que ela fez, a certa altura de sua carreira, de ir trabalhar nos EUA (já falei sobre isso em outro artigo). Alguns, como Noel Rosa, não gostam dela por rejeitar seu modo de cantar. Mas nenhum desses pode desabonar a importância que ela teve no momento em que o samba consolidou-se como gênero musical genuinamente brasileiro.
A referência que o espetáculo fez a Mário Reis também se apresentou bastante equivocada. Diogo, ao interpretá-lo cantando "Jura", de Sinhô, um de seus grandes sucessos, lembra muito mais o canto de Francisco Alves que de Mário Reis. Parece preciosismo, mas não é não: para se contar a história do samba, é preciso lembrar que, com ele, nasceu um modo brasileiro de cantar, no qual Mário Reis é pioneiro. Diz-se que foi ele quem inspirou João Gilberto. Sabe-se que ele inspira Chico Buarque até hoje. Portanto, expor Mário Reis executando o canto "de vozeirão" a la Francisco Alves, também se configura como erro importante.
Algumas ausências foram muito sentidas, dentre as quais eu destacaria Assis Valente, Aracy de Almeida, Clementina de Jesus e Adoniram Barbosa. Claro que, num espetáculo que tem três horas de duração, não cabe um século de personagens, necessariamente precisam-se fazer escolhas. Mas, aqui, minha crítica é que deixar esses imensos e intensos personagens de fora nunca seria uma boa escolha.
Se Bossa Nova é samba ou não, essa é uma polêmica que nunca terá fim. Ela aparece no show sob os dedos de Diogo Nogueira interpretando João Gilberto. Entretanto, resumir os anos 1960/1970 à Bossa Nova e os sambas de protesto de Chico Buarque não é nada razoável. Ficam escamoteadas, inclusive as iniciativas de João Nogueira, pai de Diogo, em defesa do Carnaval de rua e do próprio samba, que, naquele momento, queria reviver e sobreviver às investidas da indústria fonográfica estrangeira. Aliás, João e Clara Nunes foram lembrados no espetáculo no trecho dedicado à memória de sambistas eternos, que jamais serão esquecidos pelo público. Foram ambos apresentados por Diogo Nogueira, respectivamente, como seu pai e sua madrinha. Porém, mais do que isso, nos tais anos 1960/1970, eles tiveram papel fundamental na evolução do samba. João, pelas razões citadas e pelo seu modo particular de cantar fraseado, dando continuidade aos artistas do canto sincopado. Clara, bem como Clementina de Jesus, exalta e valoriza a herança africana na constituição do samba: a religiosidade, as temáticas, o batuque. Expressava uma profunda brasilidade no repertório e no figurino - como, em alguma medida, Carmen Miranda fizera décadas antes.
O espetáculo marca corretamente dois pontos de virada importantíssimos na história do samba, compreendendo, inclusive, invenção e ressignificação de instrumentos: a turma do Largo do Estácio, no fim dos anos 1920; e o Cacique de Ramos, nos anos 1980. Também marca a importância do Teatro de Revista e da era do rádio para a popularização do samba.
Mas, para mim, nada foi mais emocionante do que ver Noel Rosa e Martinho da Vila conversando num banco de praça em Vila Isabel (sei que eu sou suspeita, mas e daí? rsrs). "Nosso tempo é o da poesia, Noel", retruca Martinho quando o Poeta da Vila assombra-se com o diálogo entre dois tempos históricos.
A experiência que o show propõe é interessante, certamente. Mais precisão histórica e inclusão de personagens e marcas fundamentais enriqueceriam decisivamente essa experiência, que, afinal, conta a história de todos e todas nós.
O musical é muito bem produzido no que se refere à parte artística: os números são brilhantemente executados e o repertório é uma maravilha. Sem contar que ver aqueles personagens encarnados chega a emocionar: Sinhô, Ismael Silva, Donga, Tia Ciata... Todo mundo lá, diante de nossos olhos, cantando e contando história.
Porém, creio que há alguns problemas importantes exatamente na história que ali está contada. Escrevo estas linhas a título de contribuição a quem, assim como eu, tem gosto e amor por conhecer essa história.
O mais grave desses problemas, na minha opinião, é o esquecimento ao qual Carmen Miranda praticamente ficou relegada. Em dado momento da história, uma mulher vestida em clara referência a ela aparece cantando "O que é que a baiana tem?". Isso se dá no momento do show em que se evocam as cantoras do rádio, e o número é apresentado como "samba de Dorival Caymmi". O nome de Carmen sequer é mencionado: o locutor de rádio, que parece representar o famoso César Ladeira, anuncia a "Pequena Notável".
Diante de personagens a que o texto do espetáculo faz referência integral, como aqueles que mencionei acima, Carmen Miranda, a mais importante intérprete de samba dos anos 1930, foi escondida. Talvez haja uma justificativa da produção do musical para isso. Mas o fato é que uma estrela da grandeza de Carmen Miranda não pode ficar tão minimizada quando o tema é, justamente, a história da música que ela contribuiu muito para consagrar.
Alguns não gostam de Carmen pela opção que ela fez, a certa altura de sua carreira, de ir trabalhar nos EUA (já falei sobre isso em outro artigo). Alguns, como Noel Rosa, não gostam dela por rejeitar seu modo de cantar. Mas nenhum desses pode desabonar a importância que ela teve no momento em que o samba consolidou-se como gênero musical genuinamente brasileiro.
A referência que o espetáculo fez a Mário Reis também se apresentou bastante equivocada. Diogo, ao interpretá-lo cantando "Jura", de Sinhô, um de seus grandes sucessos, lembra muito mais o canto de Francisco Alves que de Mário Reis. Parece preciosismo, mas não é não: para se contar a história do samba, é preciso lembrar que, com ele, nasceu um modo brasileiro de cantar, no qual Mário Reis é pioneiro. Diz-se que foi ele quem inspirou João Gilberto. Sabe-se que ele inspira Chico Buarque até hoje. Portanto, expor Mário Reis executando o canto "de vozeirão" a la Francisco Alves, também se configura como erro importante.
Algumas ausências foram muito sentidas, dentre as quais eu destacaria Assis Valente, Aracy de Almeida, Clementina de Jesus e Adoniram Barbosa. Claro que, num espetáculo que tem três horas de duração, não cabe um século de personagens, necessariamente precisam-se fazer escolhas. Mas, aqui, minha crítica é que deixar esses imensos e intensos personagens de fora nunca seria uma boa escolha.
Se Bossa Nova é samba ou não, essa é uma polêmica que nunca terá fim. Ela aparece no show sob os dedos de Diogo Nogueira interpretando João Gilberto. Entretanto, resumir os anos 1960/1970 à Bossa Nova e os sambas de protesto de Chico Buarque não é nada razoável. Ficam escamoteadas, inclusive as iniciativas de João Nogueira, pai de Diogo, em defesa do Carnaval de rua e do próprio samba, que, naquele momento, queria reviver e sobreviver às investidas da indústria fonográfica estrangeira. Aliás, João e Clara Nunes foram lembrados no espetáculo no trecho dedicado à memória de sambistas eternos, que jamais serão esquecidos pelo público. Foram ambos apresentados por Diogo Nogueira, respectivamente, como seu pai e sua madrinha. Porém, mais do que isso, nos tais anos 1960/1970, eles tiveram papel fundamental na evolução do samba. João, pelas razões citadas e pelo seu modo particular de cantar fraseado, dando continuidade aos artistas do canto sincopado. Clara, bem como Clementina de Jesus, exalta e valoriza a herança africana na constituição do samba: a religiosidade, as temáticas, o batuque. Expressava uma profunda brasilidade no repertório e no figurino - como, em alguma medida, Carmen Miranda fizera décadas antes.
O espetáculo marca corretamente dois pontos de virada importantíssimos na história do samba, compreendendo, inclusive, invenção e ressignificação de instrumentos: a turma do Largo do Estácio, no fim dos anos 1920; e o Cacique de Ramos, nos anos 1980. Também marca a importância do Teatro de Revista e da era do rádio para a popularização do samba.
Mas, para mim, nada foi mais emocionante do que ver Noel Rosa e Martinho da Vila conversando num banco de praça em Vila Isabel (sei que eu sou suspeita, mas e daí? rsrs). "Nosso tempo é o da poesia, Noel", retruca Martinho quando o Poeta da Vila assombra-se com o diálogo entre dois tempos históricos.
A experiência que o show propõe é interessante, certamente. Mais precisão histórica e inclusão de personagens e marcas fundamentais enriqueceriam decisivamente essa experiência, que, afinal, conta a história de todos e todas nós.
quinta-feira, 30 de abril de 2015
Salve o Almirante Negro!
Sempre que canto O Mestre-Sala dos Mares mencionando o ALMIRANTE NEGRO, alguém vem me "corrigir": é navegante, não almirante. Respondo que não, que é Almirante Negro, João Cândido, líder da Revolta da Chibata em 1910. Foi a ditadura militar que tentou descaracterizar nosso herói na letra da linda música de João Bosco e Aldir Blanc.
Nestes dias, encontrei a letra original inteira. Há muito mais versos censurados pela ditadura. Com grande felicidade, pude encontrar esta gravação da Elis no México, onde ela pôde saudar devidamente o Dragão do Mar (herói cearense do combate à escravidão) e João Cândido:
Se a ditadura militar matou tantos dos nossos e tentou apagar nossa história, nós estamos vivos, atentos e preservaremos com orgulho e amor nossa memória e todas as lutas inglórias. João Cândido não ficará marcado apenas nas pedras pisadas no cais.
De hoje em diante, só canto a letra original.
O Mestre Sala dos Mares*
(João Bosco / Aldir Blanc)
*Letra original sem censura
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O Dragão do Mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava não
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo...
Nestes dias, encontrei a letra original inteira. Há muito mais versos censurados pela ditadura. Com grande felicidade, pude encontrar esta gravação da Elis no México, onde ela pôde saudar devidamente o Dragão do Mar (herói cearense do combate à escravidão) e João Cândido:
Se a ditadura militar matou tantos dos nossos e tentou apagar nossa história, nós estamos vivos, atentos e preservaremos com orgulho e amor nossa memória e todas as lutas inglórias. João Cândido não ficará marcado apenas nas pedras pisadas no cais.
De hoje em diante, só canto a letra original.

(João Bosco / Aldir Blanc)
*Letra original sem censura
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O Dragão do Mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro

E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava não
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo...
quarta-feira, 22 de abril de 2015
Senhor Samba #1 - Carmen & Assis
A história do samba é repleta de personagens riquíssimos. Normalmente, não são personagens individuais, mas sim, que representam uma coletividade artística, histórica, de estilo, e muitas vezes isso se traduz numa coletividade material mesmo: um grupo de pessoas reunidas num mesmo projeto ou numa mesma comunidade.
Com os estudos que tenho feito, mesmo que ainda incipientes, já é possível identificar algumas dessas coletividades e sua obra, suas características. Quero expor essas reflexões para debate, e assim, também receber as contribuições de vocês em debate virtual. Destaco que não sou musicista, mas cantora e escritora, o que dá às letras dos sambas lugar muito especial nas minhas análises e opiniões.
Começo por uma dupla que, para mim, é até hoje das melhores produzidas pela música popular brasileira: a bem-sucedida parceria entre Carmen Miranda e seu compositor predileto, o brilhante Assis Valente.
Amo Assis Valente de paixão, pela capacidade extraordinária de abordar seus temas de forma encantadoramente original. Não é qualquer um que faz samba sobre recenseamento, mencionando, inclusive, o agente recenseador, e levando a gente em teletransporte para os anos 30. Da mesma forma, ele fala de Carnaval, do fim do mundo, do Brasil.
Amo Carmen Miranda também, uma das artistas mais reluzentes que o país produziu. Habilidade de interpretar nota mil, voz impecável, presença inconfundível. Uma revolucionária do canto brasileiro. Carmen cantando os sambas de Assis é tipo pra ouvir com o corpo todo em sorrisos.
Sugestões de sambas para conhecer o trabalho dos dois:
***
Aproveito para apresentar a quem não conhece, a minha interpretação de "E o mundo não se acabou", acompanhada pelo grupo Sai da Frente:
Com os estudos que tenho feito, mesmo que ainda incipientes, já é possível identificar algumas dessas coletividades e sua obra, suas características. Quero expor essas reflexões para debate, e assim, também receber as contribuições de vocês em debate virtual. Destaco que não sou musicista, mas cantora e escritora, o que dá às letras dos sambas lugar muito especial nas minhas análises e opiniões.

Amo Assis Valente de paixão, pela capacidade extraordinária de abordar seus temas de forma encantadoramente original. Não é qualquer um que faz samba sobre recenseamento, mencionando, inclusive, o agente recenseador, e levando a gente em teletransporte para os anos 30. Da mesma forma, ele fala de Carnaval, do fim do mundo, do Brasil.
Amo Carmen Miranda também, uma das artistas mais reluzentes que o país produziu. Habilidade de interpretar nota mil, voz impecável, presença inconfundível. Uma revolucionária do canto brasileiro. Carmen cantando os sambas de Assis é tipo pra ouvir com o corpo todo em sorrisos.
Sugestões de sambas para conhecer o trabalho dos dois:
Recenseamento (mencionada no texto)
Camisa Listada
E o mundo não se acabou
***
Aproveito para apresentar a quem não conhece, a minha interpretação de "E o mundo não se acabou", acompanhada pelo grupo Sai da Frente:
quarta-feira, 1 de abril de 2015
Contribua com a produção do EP Curto Pavio!
Está no ar! Contribua com a produção do EP Curto Pavio através da plataforma de financiamento coletivo Benfeitoria.Com! Basta acessar o site, escolher a quantia para contribuição e a recompensa que deseja!
O EP contará com 4 faixas: o Xote Sem Fronteiras (que vocês já conhecem), dois sambas autorais e uma marchinha de Noel Rosa. Tudo sob a direção de Vinicius Ferrão; e gravado, mixado e masterizado por Juliano Rodriguez no Estúdio Monoestereo, em Porto Alegre.
Para fazer parte dessa história, clique AQUI e muito obrigada!!!
O EP contará com 4 faixas: o Xote Sem Fronteiras (que vocês já conhecem), dois sambas autorais e uma marchinha de Noel Rosa. Tudo sob a direção de Vinicius Ferrão; e gravado, mixado e masterizado por Juliano Rodriguez no Estúdio Monoestereo, em Porto Alegre.
Para fazer parte dessa história, clique AQUI e muito obrigada!!!
sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015
The songs of freedom
Bob foi voz e mente de uma bandeira que eu pretendo carregar para sempre através do samba e da luta política. Bob significou e deu significados à música que se faz nas regiões mais oprimidas do mundo. A música também é internacionalista, a arte é um instrumento de libertação.
Hoje ele completaria 70 anos, e eu o homenageio com uma das músicas mais bonitas que conheço, esta abaixo, dele mesmo. Bob Marley, eternamente presente. Não, eles não vão matar nossos profetas.
"Emancipate yourself from mental slavery,
None but ourselves can free our minds.
Have no fear for atomic energy,
'Cause none of them can stop the time.
How long shall they kill our prophets,
While we stand aside and look?
Some say it's just a part of it,
We've got to fulfill the book"
Won't you help to sing these songs of freedom?
Hoje ele completaria 70 anos, e eu o homenageio com uma das músicas mais bonitas que conheço, esta abaixo, dele mesmo. Bob Marley, eternamente presente. Não, eles não vão matar nossos profetas.
"Emancipate yourself from mental slavery,
None but ourselves can free our minds.
Have no fear for atomic energy,
'Cause none of them can stop the time.
How long shall they kill our prophets,
While we stand aside and look?
Some say it's just a part of it,
We've got to fulfill the book"
Won't you help to sing these songs of freedom?
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
Eu que não fui feito para esquecer

"E então eu, que não fui feito para esquecer, não será possível jamais que eu me esqueça, nem de ninguém nem de nada".
A não vocação para esquecer parece fazer arder ainda mais a derradeira desavença, que ele assim caracteriza: "Eu sei que somos todos vítimas de um ventarrão que passou. Passou. Porém a árvore caiu no chão e no lugar duma árvore grande, outra árvore tamanha não nasce mais. É impossível".
O caráter irrevogável de certas dores é assustador. Mas é capaz de produzir belezas de igual proporção, que ficam pulsando eternamente no adormecer das palavras.
segunda-feira, 8 de julho de 2013
Conto de Areia...
Clara Nunes gravou "Conto de Areia", de Romildo Bastos e Toninho Nascimento, em 1974. Foi a partir dessa música que ela definitivamente tornou-se uma estrela do samba e da música popular brasileira. O álbum Alvorecer, que "Conto de Areia" integra, vendeu mais de 300 mil cópias - recorde absoluto e feito inédito para uma mulher.
Eu sempre fui apaixonada pela música, muito antes de saber dessa história, muito depois de ela ter sido composta. A chamada do cavaco no começo, a presença forte do mar, a história da moça de olhos morenos que ficou a olhar os veleiros, esperando o amor que não mais iria voltar... A energia inconfundível, incomparável. Sempre me perguntei por que as rodas de samba não costumavam tocá-la. E foi, basicamente, assim que eu comecei a cantar.
- Toca "Conto de Areia"?
- Não sabemos a letra.
- Eu sei, deixa comigo.
- Qual o tom?
- Sei lá, faz igual à gravação.
O público sempre respondeu de imediato. Há os trechos que todo mundo canta junto. A música fabrica sorrisos. As pessoas gostam. E eu peguei gosto pela coisa.
Desde que comecei a cantar, "Conto de Areia" nunca deixou de estar numa set-list. E a alegria de cantá-la é a mesma da primeira vez, é a mesma de quando eu pedia pra cantar em rodas de samba onde não conhecia ninguém, é a mesma de sempre. Digo que é minha música.
É minha música, mas é música de Toninho e Romildo - cuja parceria se desfez há muitos anos já. Ontem, na roda de samba do Espaço Cultural Coqueiro, no bar Grão, em Brasília - que adoro -, eu pedi pra cantar essa. Vi que uma cantora que tinha me antecedido - que maravilhosamente tinha cantado "Corra e olha o céu" (Cartola), e "Nasci pra cantar e sonhar" (D. Ivone Lara) - estendeu o braço com um telefone ligado, como que mostrando a música para a pessoa do outro lado da linha.
Depois, ela veio até mim e disse: "botei o Toninho Nascimento, compositor da música, para te ouvir cantar". Eu gaguejei tanto que não consegui falar nada. No máximo, deu pra proferir um "o quê?!!!". E ela ainda ligou de novo. Estendeu-me seu telefone dizendo: "Fala com ele".
Ora, o que eu teria a dizer? Gaguejei ainda mais, não disse nada com nada, fiz exclamações perdidas e joguei algumas reticências, acho. Desliguei o telefone sem lembrar de uma palavra que eu disse ou que ouvi, de tão nervosa. "Eu devia ter dito apenas obrigada", pensei. Mas como você pode resumir tanto? Quão sucinta você deve ser para dizer o que você nunca esperou que tivesse chance de dizer? Dizer o quê, afinal?!
Eu, que não posso dizer que componho porque as coisas só existem de verdade quando extrapolam você, tenho profunda admiração por quem articula palavras em notas musicais. Tenho o hábito de dizer, no palco, quem são os compositores de cada canção que interpreto - pois, em geral, os/as intérpretes é que ficam conhecidos/as por ela. E já que não consegui dizer nada para o compositor da minha música predileta na vida, eu só posso é continuar cantando a honra de participar da imortalidade de "Conto de Areia" - ano que vem, ela completa 40 anos, e, com certeza, muitas e muitas gerações de brasileiros(as) embalarão sua alegria ao som dela.
Eu sempre fui apaixonada pela música, muito antes de saber dessa história, muito depois de ela ter sido composta. A chamada do cavaco no começo, a presença forte do mar, a história da moça de olhos morenos que ficou a olhar os veleiros, esperando o amor que não mais iria voltar... A energia inconfundível, incomparável. Sempre me perguntei por que as rodas de samba não costumavam tocá-la. E foi, basicamente, assim que eu comecei a cantar.
- Toca "Conto de Areia"?
- Não sabemos a letra.
- Eu sei, deixa comigo.
- Qual o tom?
- Sei lá, faz igual à gravação.
O público sempre respondeu de imediato. Há os trechos que todo mundo canta junto. A música fabrica sorrisos. As pessoas gostam. E eu peguei gosto pela coisa.
Desde que comecei a cantar, "Conto de Areia" nunca deixou de estar numa set-list. E a alegria de cantá-la é a mesma da primeira vez, é a mesma de quando eu pedia pra cantar em rodas de samba onde não conhecia ninguém, é a mesma de sempre. Digo que é minha música.
É minha música, mas é música de Toninho e Romildo - cuja parceria se desfez há muitos anos já. Ontem, na roda de samba do Espaço Cultural Coqueiro, no bar Grão, em Brasília - que adoro -, eu pedi pra cantar essa. Vi que uma cantora que tinha me antecedido - que maravilhosamente tinha cantado "Corra e olha o céu" (Cartola), e "Nasci pra cantar e sonhar" (D. Ivone Lara) - estendeu o braço com um telefone ligado, como que mostrando a música para a pessoa do outro lado da linha.
Depois, ela veio até mim e disse: "botei o Toninho Nascimento, compositor da música, para te ouvir cantar". Eu gaguejei tanto que não consegui falar nada. No máximo, deu pra proferir um "o quê?!!!". E ela ainda ligou de novo. Estendeu-me seu telefone dizendo: "Fala com ele".
Ora, o que eu teria a dizer? Gaguejei ainda mais, não disse nada com nada, fiz exclamações perdidas e joguei algumas reticências, acho. Desliguei o telefone sem lembrar de uma palavra que eu disse ou que ouvi, de tão nervosa. "Eu devia ter dito apenas obrigada", pensei. Mas como você pode resumir tanto? Quão sucinta você deve ser para dizer o que você nunca esperou que tivesse chance de dizer? Dizer o quê, afinal?!
Eu, que não posso dizer que componho porque as coisas só existem de verdade quando extrapolam você, tenho profunda admiração por quem articula palavras em notas musicais. Tenho o hábito de dizer, no palco, quem são os compositores de cada canção que interpreto - pois, em geral, os/as intérpretes é que ficam conhecidos/as por ela. E já que não consegui dizer nada para o compositor da minha música predileta na vida, eu só posso é continuar cantando a honra de participar da imortalidade de "Conto de Areia" - ano que vem, ela completa 40 anos, e, com certeza, muitas e muitas gerações de brasileiros(as) embalarão sua alegria ao som dela.
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