sexta-feira, 26 de maio de 2017

Vidraça

Te acalma
Não deixe que te agridam o coração
Deixa ele aberto,
Que os tiros te ultrapassam
Sem te ferir

Não feche tuas veias,
Que assim o sangue não passa
Não deixe à vista tua laringe tensionada
Para voz passar,
Tu precisas abrir

Os tempos são duros
Não te endureças
Para não pareceres com os tempos

A certeza do caminho
Dá leveza aos nossos passos
As manobras do destino
Não se amarram feito laço

Fiquemos nas ruas!

Nossos sonhos
Não podem ser contidos pelas vidraças
Deles.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Algo está faltando


Semana passada, eu extraí uma pinta. Uma pinta, uma marca do rosto, que ficava na lateral da minha face, praticamente no meio do caminho entre o olho e a orelha.

Ela não existia quando eu era criança. Foi depois da adolescência que a bicha começou a se apresentar, e aumentar de tamanho até ensaiar tornar-se uma verruga. Uma verruguinha, vai, pequenina, tão inofensiva quanto indefesa. Feia porque em alto-relevo. Da outra pinta, no mesmo lado da face, mas abaixo, na altura do queixo, dessa eu gosto. Ela é marrom e não é pretuberante - e sempre esteve ali. A outra confundia-se com a pele pela cor, mas formava um pequeno monte em meio à planície. Não gostava dela desde que ela começou a se fazer notar.

Ameaço eliminá-la há meses já. Semana passada, encontrei tempo, disposição e coragem ao mesmo tempo e lá fomos nós. Não demorou, não doeu, foram dois pontinhos só.

Hoje cedo eu tirei o ponto que restara (um já havia sido removido). Olhei meu novo rosto, já sem a marca. O local onde ela existia está avermelhado, recuperando-se, cicatrizando, até não haver mais sinal nenhum de que ali houve, um dia, uma pinta com cara de verruga.

Veio uma sensação esquisita de não reconhecer meu rosto. Onde está aquela coisa? Eu não gostava dela, mas ela sempre esteve ali. Ok, não sempre. Não sempre. Mas um dia ela chegou, sei lá quando, e desde então - faz tempo - ela estava ali, assombrando todas as minhas fotos de perfil. Tão inofensiva quanto indefesa.

Sei lá por quê senti essa espécie de vazio interior. Por que diabos eu quis extrair uma marca dessas, que a natureza pôs ali? Logo eu, que tenho centenas de restrições a intervenções cirúrgicas com finalidade estética. Não sei, essa pergunta não tem resposta. É estranho arrancar algo do seu próprio corpo sem ter necessidade. Olhar-se no espelho e não alcançar aquela marca.

Vai ver que é coisa do tempo também. O tempo põe marcas no nosso corpo: linhas de expressão, cicatrizes, manchas. Mas ele tira também: ele tira porque ele te traz a iniciativa de tirar.

Acho que em algum momento eu vou deixar de sentir falta da tal pintinha, e vou até esquecer, porque em seu lugar, a pele nova chegará e inundará o vazio que tinha ficado. O que eu não vou esquecer é essa sensação louca de arrancar algo de si mesma e depois perguntar-se onde está aquilo. Com todas as metáforas e analogias que isso pode gerar. Ser humano é um troço muito louco mesmo.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Ode à Pedra - 2

Por favor
Não criminalizes meus quereres
Eles são o melhor de mim

Não me venhas tu
Do alto do teu amor-perfeito
Amaldiçoar as pedras do meu caminho
Porque eu me afeiçoo a pedras
Tenho uma coleção
E posso atirar-lhe algumas

Não queiras dissuadir-me do amor
Gosto do que me provoca
Gosto do que fracassa
Gosto mais da partida
Que da chegada

Gosto das chagas abertas do que apenas é humano
Gosto da carne abaixo da pele

Não julgues meus desejos
Não me condenes à busca da perfeição
Não sou tua para que me salves
Não sou uma para que me caiba
Nem tu és imune ao vento que carrega balões
E movimenta o ar que respiras

Não te preocupes: eu não caio
Porque me atiro

Convido-te a caminhar de olhos vendados
Sentindo aromas misteriosos
Pisando em texturas esquisitas
Provando sabores fugazes
Amando amores vorazes
Só para sentires a graça que tem
A vida
Quando erra o alvo.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Quando o rabo abana o cachorro

O filme estadunidense Wag The Dog (tradução literal: Abane o cachorro), de 1997, conta a história de um presidente que, envolvido em um escândalo sexual, contrata um cineasta para produzir uma guerra fictícia a fim de desviar a atenção da população. O início do filme explica o título: “Você sabe por que o cachorro abana o rabo? Porque ele é mais inteligente que o rabo. Mas se o rabo fosse mais inteligente...”. O letreiro entra em seguida, sugerindo: abane o cachorro.

Um ano atrás, se concretizava, no Brasil, um golpe de Estado jurídico-parlamentar-midiático que poderia ter sido filmado no lugar da história criada por Hilary Henkin e David Mamet.

Derrotado nas eleições presidenciais de 2014, o candidato da direita ameaça não reconhecer o resultado das urnas, iniciando ali um movimento visível a olho nu para quem prestou atenção nos livros de história que estudou na adolescência. Àquela altura, a Operação Lava-Jato já avançava, capitaneada por um juiz com nítida vocação para super-man (com as mesmas cores, inclusive). Embora lidando com um objeto fundamental de ser examinado – as relações promíscuas entre poder público e grandes empresas a partir do financiamento de campanhas eleitorais -, a iniciativa já mostrara a que veio: servir de instrumento para carimbar de corrupto apenas um setor da disputa política. Adaptando-se à conjuntura diariamente, a operação evolui selecionando investigações a serem conduzidas, vazamentos a serem feitos para a imprensa e a própria direção dos fatos.

Estão criadas as condições para um roteiro surreal no qual a corrupção no Brasil começa com a eleição de Lula, e nunca antes na história deste país havia acontecido nada semelhante. Quinhentos e quatorze anos de história são, então, reescritos, e apagam-se todos os escândalos de desvio de recursos públicos, tráfico de influência, privatizações, compra de votos e, especialmente, o enriquecimento ilícito de coronéis, donos da mídia, latifundiários, empresários e outros que até pouco tempo atrás oligopolizavam o fazer política no Brasil. E nunca foram presos.

O toque final é a abordagem da mídia, que, tão seletiva quanto as investigações do juiz fanfarrão, elabora sob medida uma narrativa cuja consequência óbvia e planejada é um discurso de ódio acéfalo contra o PT e a esquerda. Tal discurso encontra terreno propício para germinar: a paupérrima cultura política brasileira. O efeito colateral é o descrédito generalizado contra todos os políticos e a satanização da atividade política. Mas não tem problema, porque a despolitização sempre favoreceu os donos do poder, e eles sempre souberam reinventar sua própria embalagem para parecerem novos e atraentes. Assim, fantasiam-se de empresários bem-sucedidos ou apresentadores de televisão e continuam a fazer o que sempre fizeram.

Cria-se, então, uma acusação contra a presidenta: as “pedaladas fiscais”, que muitos governadores haviam praticado no mesmo período. Meses depois, num ato de vingança contra o PT, que contribuíra para que ele fosse investigado, o presidente da Câmara, com largo histórico de envolvimento em práticas controversas (digamos assim), inicia o processo de impedimento da presidenta da República. O vice-presidente publica carta na qual rompe com o governo, lamentando ter assumido posição somente “decorativa” (sic).

Chegamos, então, ao ápice do roteiro: com olhos em chamas, setores médios e elites vão às varandas de seus apartamentos bater panela. Grandes manifestações são convocadas por esses segmentos, por meio de movimentos laranja e partidos de oposição, financiadas pela Fiesp e grupos empresariais, com grande alarde na mídia, que também convoca e promove com cobertura em tempo real. Milhares de pessoas atendem ao chamado vestindo camisetinhas amarelas, tendo um pato gigante como símbolo e privatizando (eles têm know-how) o hino nacional.

Diante de tal comoção, em meio à qual as pessoas que vestem vermelho correm risco de serem agredidas na rua, a presidenta é afastada numa sessão da Câmara que se torna antológica pelas dedicatórias dos votos dos deputados e deputadas às suas mães, filhos, às suas namoradas, ao cãozinho da família. Assim, Michel Temer, o golpista usurpador decorativo, assume interinamente a Presidência, e monta o governo provisório com aqueles que tinham sido derrotados nas eleições de dois anos antes, e também com personagens necessários para qualquer enredo dessa monta: os traidores.

A partir daí, começam a executar o programa que tinha sido derrotado nas urnas quatro vezes, num nível de agilidade que sequer Fernando Henrique Cardoso (que vencera duas eleições) tivera coragem de encaminhar. Abrem caminho para a entrega do pré-sal brasileiro às potências estrangeiras; congelam investimentos públicos em saúde e educação por vinte anos; extinguem órgãos de governo e programas centrais para o desenvolvimento de políticas de distribuição de renda e combate a desigualdades históricas; reformam o ensino médio sem dialogar com nenhum dos setores envolvidos, destituindo-lhe de qualquer mísera perspectiva transformadora; apresentam uma reforma da previdência e outra trabalhista para retirar direitos do povo, mantendo e ampliando direitos dos banqueiros e grandes empresários; legalizam a terceirização irrestrita; atuam para “estancar a sangria” (sic) provocada pela Operação Lava-Jato, para que não sejam atingidos; e disparam balas de borracha e gás lacrimogêneo contra índios, jovens, trabalhadores, e quem quer que ouse levantar-se contra o golpe em curso. Colocam em xeque o direito de greve e o direito à livre manifestação, com a bênção do Poder Judiciário, que, afinal, é peça fundamental do enredo.

O final do filme ainda não está escrito. Há algumas possibilidades: temendo nova derrota nas urnas, que jogaria por terra o processo encaminhado até agora, prendem o ex-presidente Lula e/ou cancelam as eleições nacionais de 2018 – qualquer das opções escancarará o que muitos já perceberam: que vivemos sob um regime de exceção. Outra hipótese: por falta de quadro melhor, elegem o pato gigante presidente da República, e ele governará como terceirizado sob ordens da Casa Branca.

Ou o cachorro assume que fez cocô no lugar errado e recupera sua habilidade de abanar o rabo.

terça-feira, 2 de maio de 2017

Belchior: Queremos tudo outra vez

Convivo com Belchior desde criança, quando me foi apresentado através de Apenas um Rapaz Latino-Americano. Obviamente, tendo menos de dez anos de idade, era impossível que compreendesse bem aquela amargura com que ele observava o tempo e o espaço ao seu redor; tampouco aquela missão, reconhecida nos versos que escancaravam que sons, palavras são navalhas; e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém. Mesmo sem entender nada disso naquela época, passei um bom tempo apresentando-me por aí como apenas uma menina latino-americana sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vinda da capital.

A mim, sempre chamou a atenção a poesia de versos cortantes, a abordagem marcadamente original dos temas cotidianos e da conjuntura. Em 2012, quando comecei a cantar o repertório de Belchior, os estudos me levaram a lugares ainda mais diversos e sonoridades que até então tinham passado despercebidas por mim.


Diversas influências musicais podem ser flagradas em constante diálogo com seus versos intensos, ácidos, e a certeira disposição de contrastar com o que observava. Sua obra é repleta de intertextualidade, o que já o colocou em conversa com Bob Dylan, John Lennon, Caetano Veloso, Stanley Kubrick. Belchior foi alguém que fez Dante Alighieri e Olavo Bilac conviverem na mesma canção – que ele concluía, mais uma vez, demarcando: enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto.

Aliás, até para falar de romance, Belchior conseguia ser original. A Divina Comédia Humana, uma das minhas prediletas, aborda com naturalidade e doçura o que quase todos veem como a triste fatalidade do amor, ao indicar que, sendo que nada é eterno, a certeza do fim não deveria amedrontar ninguém.

A falta que lhe fazia sua casa, o Ceará, foi retratada numa narrativa de saudade que percorreu muitas músicas belas, cada vez empunhando uma tonalidade diferente da mesma dor. A América Latina pulsava nele, a ponto de A Palo Seco tornar-se quase um hino da latinoamericanidade, num país que poucas vezes se lembra de que é esse o contexto no qual está inserido. E ali, outra vez, ele revela: eu quero é que este canto torto, feito faca, corte a carne de vocês.

Era atento observador do seu tempo, com quem sempre brigou. Exibindo as cicatrizes que marcam aqueles e aquelas que têm que deixar sua terra natal, ele deixava escapar sua melancolia de mãos dadas com sua ânsia de futuro. Sendo ele um crítico dos modismos e do entusiasmo exacerbado, quando esboçava um sorriso de esperança em meio ao marasmo que via, ninguém era capaz de fazer melhor, e com tão singela grandeza. A música que vinha concentrando minha atenção nos últimos dias era justamente Tudo Outra Vez, onde ele diz que viveria as coisas novas, que também são boas, o amor, o humor das praças cheias de pessoas. E agora nós é que queremos tudo, tudo outra vez.

O cara angustiado para superar o “velho”; avesso a reverências e obediências. Quem conhece a obra de Belchior tem a impressão de estar diante de uma inquietação sem limites, que talvez tenha encontrado na referida missão um alento na busca de paz e dias melhores. Sua ironia era de uma riqueza extraordinária, porque contida no universo sem fronteiras do filósofo-artista que, assim como Drummond, tinha o tempo como sua matéria.

Belchior não existiu. Foi uma Alucinação que a gente teve.