quinta-feira, 30 de maio de 2019

O Sonho, a Vida, a Roda Viva

Assisti pela TV Brasil o show MPB-4 - O Sonho, a Vida, a Roda Viva - 50 Anos Ao Vivo. Sem medo de recorrer ao senso comum da expressão "eu faço parte disso", eu afirmo emocionadamente que é bem o contrário: o MPB-4 faz parte de muito do que sou e, especialmente, do que me tornei ao trazer a Música para o centro da minha vida.

Eu os escuto encantada desde pequena, quando O Pato me enchia de compaixão porque só se dava mal, mas mesmo depois de ir para a panela, continuava quaquarejando e resmungando coisas que eu não entendia, até a música terminar. Comoveram-me todas as parcerias com o Quarteto em Cy, que amo também, e acho que tudo que interpretaram juntos se tornaram versões definitivas - olha que foram algumas das mais belas obras da nossa Música Popular. Entre os primeiros CDs que comprei, estava lá um da coleção Millenium, Quarteto em Cy e MPB-4. Certamente um dos que eu mais ouvi na vida.

Acompanhando esse lindo show ao qual aqui me refiro, dei-me conta de que a influência deles sobre mim é ainda maior do que eu pensava. Aquele repertório comemorativo - aliás: eles sabem melhor do que ninguém escolher repertório -, traz músicas que falam comigo diretamente ao coração, saem pelo corpo carregando meu sangue e, sei lá como, chegam à garganta, e aí eu canto.

A participação especial de Kleiton e Kledir foi o que sacramentou tal percepção. Por que diabos eu cortei essa do set-list, pensei comigo, referindo-me a Vira Virou, que eu queria ter cantado no lançamento do meu Outras Manhãs, mas foi uma das que precisei riscar para que o show coubesse em uma hora e meia. No pot-pourri do bis, lá estão eles a expor a questão amarga de Sidney Miller, Pois É, Pra Quê?, canção afiada à qual destinei a mesma borracha.

Até o que eu não fiz está presente em mim através deles.

Então, sem ter como agradecer o MPB-4 por todas as aulas que já tive com eles nesta vida; eu precisei vir aqui dizer isso pra vocês que me leem: quem tiver a oportunidade de assistir MPB-4 - O Sonho, a Vida, a Roda Viva - 50 Anos Ao Vivo, agarre-a com um abraço afetuoso.


terça-feira, 14 de maio de 2019

Em defesa da Cultura Brasileira

Tem gente que se acha super patriota porque chora quando a seleção de futebol masculino perde.

Pra mim, isso tipo foda-se.

O orgulho que eu sinto é da nossa cultura popular, da arte produzida no Brasil, da Clarice Lispector, do Machado de Assis, do Guimarães Rosa, do Drummond, do Manuel Bandeira, da Cecília Meireles, Carolina de Jesus, do Portinari, da Tarsila, do Mário de Andrade, do Aleijadinho. E de Noel Rosa, Tom Jobim, Chiquinha Gonzaga, Carmen Miranda, Chico Buarque, Baden Powell, Caetano Veloso, Cartola, Candeia, Clementina, Clara Nunes, Elis. A Música é aquela deusa à qual todo mundo tem acesso.

A Música tem sua própria cadeia de produção, e muitos que vivem dela. Para fazer meu show no Clube do Choro no último dia 4, eu precisei de mais do que oito músicos. Alguém fez os arranjos, a direção musical. Alguém produziu o show, ou seja, assegurou materialmente que ele acontecesse. Alguém trabalhou para contatar e divulgar via imprensa, via redes sociais e outras formas de contato. Precisou de designer gráfico. Teve o técnico de som, o iluminador. Precisou de alguém na bilheteria, outro na portaria, precisou de uma equipe de limpeza e de garçons. Antes de tudo isso, alguém trabalha para organizar uma programação, alguém coordena esses processos todos, alguém capta recursos para viabilizar tudo isso, porque o Clube do Choro oferece aos artistas da cidade e ao público uma estrutura para que possamos compartilhar Música e Arte. E ainda tem os fornecedores. E ainda tem a Escola de Choro, professores, material didático, estrutura da escola, funcionários da escola.

O show era de lançamento de um disco, que demandou que alguém o gravasse, mixasse, masterizasse. Precisou de fotógrafo, ilustrador. Houve uma empresa de prensagem.

Olha quantos empregos envolvidos diretamente na cadeia de produção da Música! E estamos falando de um único show, de uma única casa, de um único disco.

Brasília forma e exporta grande músicos, artistas maravilhosos que levam nossa arte para o mundo, como Hamilton de Holanda e Zélia Duncan. Pedro Martins tem estado - agora - nos nossos jornais, reconhecido internacionalmente por sua guitarra tão única e inspirada. E é muito mais gente, muito mais. Gente de fora vem conhecer a Música e os músicos de Brasília. Sabe por quê? Porque Brasília tem a Escola de Choro, o Clube do Choro, a Escola de Música. Porque Brasília tem o FAC, tem espaços públicos onde se pode compartilhar a arte que se produz.

Se você acha muito bom ver o nome de uma empresa pública estampada na camisa de um time de futebol e acha muito ruim que haja políticas públicas de cultura que envolvam leis de incentivo, apoio e financiamento público de projetos culturais de interesse social, então, você realmente não merece morar na cidade que Niemeyer desenhou.

Quando um edital do FAC, que foi encaminhado adequadamente segundo as leis do DF, é cancelado, o fora-da-lei não é o artista não. Os fora-da-lei são o governador e o secretário de cultura, que, ainda mais do que exterminar a cultura da cidade, contribuem para tirar emprego de toda essa turma que citamos parágrafos acima.

Todos queremos a reforma do Teatro Nacional. O Governo tem a responsabilidade e o dever de promover a reforma, de devolver o Teatro à comunidade artística e ao povo do Distrito Federal. E ele tem que fazer isso sem desviar dinheiro da comunidade artística e da população. A deputada Érika Kokay, por exemplo, se ofereceu para buscar esses recursos via emenda da bancada federal do DF ao orçamento federal (*). Seus esforços foram rejeitados pelo governador.

Quando um espaço de convivência como o bar A Vizinha sofre uma multa de mais de R$10 mil por proporcionar música aos seus frequentadores durante 4 horas nas tardes de domingo, então estão sendo sacados os empregos dos músicos, dos atendentes, dos cozinheiros. São cancelados contratos com fornecedores de todo tipo, desde a bebida até a tenda. Estão sendo anulados espaços de convivência, de lazer, de arte. Estão nos aplicando um calaboca mesmo.

Um músico, geralmente, é um trabalhador precarizado, que não tem seus direitos trabalhistas assegurados e nenhum tipo de proteção social. Músico, assim como tantos trabalhadores informais ou "free-lancers", quando não trabalha, não recebe. E é a Música do músico que movimenta bares, teatros, centros culturais, que oferece matéria-prima pro rádio, pra festa, pra trilha sonora da sua vida, pro tema do seu romance, pra sua nostalgia. Se você acha isso pouco, então parece que esta sociedade horrível neste momento horrível que vivemos causou danos irreparáveis em você.

Aos que desejam o pleno e absoluto silêncio, recomendo a vida de ermitão. Ficaremos felizes de poder contar com sua ausência. Aos que sabem muito bem o que estão fazendo, recomendo prestarem atenção nas riquíssimas festas que tomam lugar em clubes e estádios, cujo som atravessa a cidade, e contra as quais nunca se move nem uma palha.

Os cachês dos músicos estão congelados há mais de dez anos, quando não retrocederam, em alguns casos. O sujeito paga mais de R$100 pra ir ver seu time no Mané Garrincha, e pede pra tirar da conta o couvert de R$15 da música que ele curtiu a noite toda. O bar não negocia o aluguel de jogos de mesas, a compra de toalhas, as contas de água e de luz, ou com os fornecedores de bebidas e alimentos, mas chora pro músico reduzir seu cachê.

É assim mesmo, desse jeitinho aí.

Cancelar editais do FAC, bem como recusar-se a rever a absurda e antiquada Lei do Silêncio, é censura, é calaboca, é emudecer a cultura e gerar desemprego. Tudo isso orna muito bem com os tempos que vivemos, de subserviência, vira-latice e ignorância relinchante.

Mas sabe outra coisa que orna também? Gritar. Porque calado (a), como nos querem, a gente não fica não.

(*) Nota da deputada Érika Kokay:
"Entrei em contato com o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), na última sexta-feira (10/5) para sugerir que ele mantivesse os recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), com o compromisso desta parlamentar de construir junto à bancada federal do Distrito Federal uma emenda de bancada, para 2020, com o objetivo de reformar o Teatro Nacional. A proposta foi um dos encaminhamentos de audiência pública, realizada na Câmara Federal, no último dia 2 de maio, que discutiu o FAC e a Lei Orgânica da Cultura (LOC).


De forma rude e grosseira, o governador respondeu que as emendas seriam bem-vindas, mas iria, sim, retirar os recursos do FAC para a reforma do Teatro, impedindo o prosseguimento de qualquer diálogo sobre o assunto."