segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Prosa do Avião - uma epifania

Com misto de assombramento e encanto, eu percebo, a cada vez que volto a São Paulo, que não a conheço mais. Desoriento-me nos caminhos, esqueço os nomes, falha-me a memória e a esperança de ali criar meus porvires. Caminho por calçadas que já foram tão surradas pelos meus pés, mas agora eles não encontram o fio da meada; olho para o alto da Consolação e não vejo a Paulista; não sei por onde anda o seu Antônio nem a vontade que eu tinha de um dia morar numa casa de vila. Os sons da cidade mais me impressionam do que comovem, e eu me vejo andando em círculo, cercada por flores de um buquê, não de um jardim.

Tudo que manteve seu sentido eu carreguei comigo, errante, mas leal. Meus olhos ainda guardam as manhãs que raiavam na janela do velho apartamento do Largo do Arouche, que hoje, na minha imaginação, é habitado somente pelas lembranças que lá deixei, e que, numa fotografia mental, aparecem-me em cores desbotadas.

Eu nunca mais voltei à USP, desabafava melancólica com a pessoa que mais me conhece na grande metrópole. Quando penso na ECA - Escola de Comunicações e Artes, onde estudei -, sinto o cheiro da grama molhada de chuva mais do que dos cachorros insistentes que dividiam o espaço conosco. Ouço a voz do Steven Tyler dizendo que "something's right with the world today/and everybody knows it's wrong", e os versos fazem mais sentido do que nunca.

Cada visita é uma nova ruptura e um novo começo. Eu encontro a cidade enquanto me perco na nostalgia de não me ver mais numa paisagem que sempre tinha me definido. Há tanta coisa que adormece na gente, que é difícil mensurar o tamanho do que se perdeu. Como se, do alto do Edifício Itália, eu não possuísse mais a cidade, mas sim, pudesse ver no horizonte os lugares onde ela não está e eu estou. Mais fácil, para mim, contemplar aliviada o que ganhei.

Naquela noite de domingo, quando ele abriu a porta e eu vi seu rosto, senti-me outra vez iluminada por aqueles raios que me despertavam nas manhãs da minha juventude, como se outra vez eu me enxergasse no meio do caos cinza, colorido de grafite e de sonhos de gente que vem de todo lugar. Ao emoldurá-lo, São Paulo me acalmou do susto e me devolveu para mim mesma.

E, tranquila, eu voltei para casa.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Sete Desejos

Eu ouvi essa música uma vez, era de uma novela. Não lembro bem. Era adolescente, eu acho. Ela me trazia uma paz gostosa, um conforto, uma sensação de que a vida vai longe, longe mais do que a vista alcança. Onde a vista não alcança, o sonho chega e conta história.

O sonho sempre me contou história nessa música.

Comecei, a certa altura, a dizer para as pessoas próximas que essa era a música da felicidade. O flamboyant vermelho, a mala azul, a réstia da luz amarela. A vida tem cores! Deitada na rede e, sob a fumaça de um cigarro deliciosamente saboreado, pensar que bom é recomeçar das cinzas. Recompor a paisagem. "Você sabe fazer" - me dizia minha professora de canto.

Essa linda música sempre esteve na minha mente. Às vezes ela se oculta. E volta.

Volta agora de novo. Com o lelelelelelele do Alceu. O destino, o trem que nos transporta. A música como um filme da vida, como uma produtora de imagens mentais, que remexe a alma, busca coisas, salta pra fora, e eu agradeço.

Ao Alceu pela música.

Ao universo, pela generosidade com que tem me tratado.

Que me permita produzir versos tão claros e projetar cada vez mais desejos em cada vez menos cigarros.