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sábado, 20 de janeiro de 2018

Esverdeia














Esverdeia, meu pai
Esverdeia
Bota cor neste mundo sombrio
Ilumina o meu caminhar
Esverdeia
Bota o gosto doce da fruta
Na boca do povo
Bota o aroma fresco da mata
No coração a pulsar
Esverdeia, meu pai
Pulsa o verde-esperança
Que este mundo precisa de cor
Esverdeia
Alimenta de paz, amor e alegria
Traz inspiração
Na ponta de sua flecha

São essas nossas armas
De o mundo mudar

Ele vai mudar.

Okê arô, Oxóssi


segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Prosa do Avião - uma epifania

Com misto de assombramento e encanto, eu percebo, a cada vez que volto a São Paulo, que não a conheço mais. Desoriento-me nos caminhos, esqueço os nomes, falha-me a memória e a esperança de ali criar meus porvires. Caminho por calçadas que já foram tão surradas pelos meus pés, mas agora eles não encontram o fio da meada; olho para o alto da Consolação e não vejo a Paulista; não sei por onde anda o seu Antônio nem a vontade que eu tinha de um dia morar numa casa de vila. Os sons da cidade mais me impressionam do que comovem, e eu me vejo andando em círculo, cercada por flores de um buquê, não de um jardim.

Tudo que manteve seu sentido eu carreguei comigo, errante, mas leal. Meus olhos ainda guardam as manhãs que raiavam na janela do velho apartamento do Largo do Arouche, que hoje, na minha imaginação, é habitado somente pelas lembranças que lá deixei, e que, numa fotografia mental, aparecem-me em cores desbotadas.

Eu nunca mais voltei à USP, desabafava melancólica com a pessoa que mais me conhece na grande metrópole. Quando penso na ECA - Escola de Comunicações e Artes, onde estudei -, sinto o cheiro da grama molhada de chuva mais do que dos cachorros insistentes que dividiam o espaço conosco. Ouço a voz do Steven Tyler dizendo que "something's right with the world today/and everybody knows it's wrong", e os versos fazem mais sentido do que nunca.

Cada visita é uma nova ruptura e um novo começo. Eu encontro a cidade enquanto me perco na nostalgia de não me ver mais numa paisagem que sempre tinha me definido. Há tanta coisa que adormece na gente, que é difícil mensurar o tamanho do que se perdeu. Como se, do alto do Edifício Itália, eu não possuísse mais a cidade, mas sim, pudesse ver no horizonte os lugares onde ela não está e eu estou. Mais fácil, para mim, contemplar aliviada o que ganhei.

Naquela noite de domingo, quando ele abriu a porta e eu vi seu rosto, senti-me outra vez iluminada por aqueles raios que me despertavam nas manhãs da minha juventude, como se outra vez eu me enxergasse no meio do caos cinza, colorido de grafite e de sonhos de gente que vem de todo lugar. Ao emoldurá-lo, São Paulo me acalmou do susto e me devolveu para mim mesma.

E, tranquila, eu voltei para casa.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Sete Desejos

Eu ouvi essa música uma vez, era de uma novela. Não lembro bem. Era adolescente, eu acho. Ela me trazia uma paz gostosa, um conforto, uma sensação de que a vida vai longe, longe mais do que a vista alcança. Onde a vista não alcança, o sonho chega e conta história.

O sonho sempre me contou história nessa música.

Comecei, a certa altura, a dizer para as pessoas próximas que essa era a música da felicidade. O flamboyant vermelho, a mala azul, a réstia da luz amarela. A vida tem cores! Deitada na rede e, sob a fumaça de um cigarro deliciosamente saboreado, pensar que bom é recomeçar das cinzas. Recompor a paisagem. "Você sabe fazer" - me dizia minha professora de canto.

Essa linda música sempre esteve na minha mente. Às vezes ela se oculta. E volta.

Volta agora de novo. Com o lelelelelelele do Alceu. O destino, o trem que nos transporta. A música como um filme da vida, como uma produtora de imagens mentais, que remexe a alma, busca coisas, salta pra fora, e eu agradeço.

Ao Alceu pela música.

Ao universo, pela generosidade com que tem me tratado.

Que me permita produzir versos tão claros e projetar cada vez mais desejos em cada vez menos cigarros.


quarta-feira, 25 de outubro de 2017

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Ode à Pedra - 2

Por favor
Não criminalizes meus quereres
Eles são o melhor de mim

Não me venhas tu
Do alto do teu amor-perfeito
Amaldiçoar as pedras do meu caminho
Porque eu me afeiçoo a pedras
Tenho uma coleção
E posso atirar-lhe algumas

Não queiras dissuadir-me do amor
Gosto do que me provoca
Gosto do que fracassa
Gosto mais da partida
Que da chegada

Gosto das chagas abertas do que apenas é humano
Gosto da carne abaixo da pele

Não julgues meus desejos
Não me condenes à busca da perfeição
Não sou tua para que me salves
Não sou uma para que me caiba
Nem tu és imune ao vento que carrega balões
E movimenta o ar que respiras

Não te preocupes: eu não caio
Porque me atiro

Convido-te a caminhar de olhos vendados
Sentindo aromas misteriosos
Pisando em texturas esquisitas
Provando sabores fugazes
Amando amores vorazes
Só para sentires a graça que tem
A vida
Quando erra o alvo.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Uma outra eu

Algo em mim precisa morrer
Para que eu possa viver
Em paz
Dos escombros do velho castelo
Que nunca ergui
Sei que há de emergir

Uma outra eu
Nas linhas a mais
Que hei de escrever
Em dias libertos
De peito aberto
Sem pressa demais

Algo em mim precisa brotar
Para que eu possa optar
Sem dor
Por deixar-te no velho caminho
Em que me perdi
Sei que vou conseguir

Ser outra eu
Nos versos de amor
Que hei de escrever
Em dias inquietos
De peito desperto
Sem dó nem rancor

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O menino e a lua

Séculos atrás, um menino se apaixonou pela lua. Já tinha mais de 20 anos de idade, e sabia um pouco como a vida funcionava. Nunca esperou da lua o que a lua não lhe pudesse oferecer, mas a felicidade plena se realizava nele quando a lua cumpria seu esplendoroso potencial de despertá-lo. Conheciam-se bem, o menino sabia das fases, entendia quando a lua preferia encobrir-se sob nuvens. Os eclipses eram seu show para o mundo, a lua não havia de exibir-se só para ele. Entendia. Era assim a relação, de expectativas comedidas, compreensão e explosões de amor.

Quantas vezes se não lhe disseram que aquele amor não prosperaria, que era impossível manter-se enamorado pela lua? Mas o menino trazia um céu de serenidade nos olhos, e, se sentia saudades ao longo do dia, a chegada da noite o acalentava como abraço nenhum neste mundo. Conversavam, trocavam confidências, cuidavam-se, beijavam-se silenciosos, banhavam-se em leves águas prateadas, e ele se deixava levar, às vezes, mais do que devia. Claro que doía o trajeto de volta ao ponto de onde não é permitido ultrapassar. Mas sentir dor é coisa da vida. No plano dos sentimentos, não há experiência que não cause dor. E se houver, há de ser coisa infeliz, porque incapaz de sentir com o corpo e a alma inteiros de uma vez.

Quem se apaixonava por estrelas cadentes ou seres humanos, casava-se, gerava herdeiros, dividia contas, problemas e soluções, jamais conseguia entender aquele amor. É fadado ao fracasso, evidente!, acusavam.

E são diferentes as estrelas cadentes e os seres humanos?, perguntava ele, curioso. São perfeitamente harmoniosos esses encontros? Você consegue suportar as contradições imprevisíveis como eu posso suportar as previsíveis? E via pelo mundo traição, violência, mentira e desamor. Por que meu amor é menos real do que isso? Por que temem pelo meu sofrimento se ele é comum a todos nós?

Ora, já se apaixonaram pela lua antes, respondiam-lhe. Nunca vingou, é história pré-determinada: acaba triste.

E o menino assistiu, ao longo de décadas, romances de estrelas cadentes e seres humanos se acabarem tristes. Por traição, violência, mentira, desamor, ou mesmo pela morte. No renascer das almas, aqueles seres não se reconheciam mais. Enquanto isso, o fim jamais chegou para ele e a lua. O menino renasce em flor, coruja, pássaro, borboleta e ser humano, sempre no mesmo amor, e a lua continua iluminando-o risonha em prateado, como se fosse a primeira vez.

Leonid Tishkov, Private Moon

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O Samba e as Lutas do Povo

A vida do nosso povo é a alma do samba. Aquele que sai da batalha, entra no botequim, pede uma cerva gelada e agita na mesa uma batucada. O povo que canta em versos suas dores, seus amores, suas lutas, mesmo naquela época em que alguém poderia ser preso simplesmente por portar um violão ou um pandeiro. Era um Brasil de Delegados Chico Palha, sem alma nem coração, querendo banir o samba e a corimba de sua jurisdição. Mas o violão e pandeiro ganharam os corações e os salões irreversivelmente, sob olhares furiosos dos senhores, que os queriam mudos ou domesticados, que queriam o samba "com livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor". E tantos foram calados, e tantos foram banidos, e tantos foram esquecidos.

Hoje, nesta Brasília amordaçada, cidade-arte, cidade-artista, reprimida, silenciada, onde ninguém ouviu o soluçar da dor no canto do Brasil, as coisas não mudaram tanto assim. A cidade emudecida, que já foi alegria. A cidade que já foi palco de Cássia, Zélia e Ednardo, a cidade que foi um sonho do Oscar, a cidade-borboleta. A cidade que hoje abriga aqueles que querem calar nossos sonhos com um golpe baixo na boca do coração.

Mas aqueles e aquelas que nos abriram os caminhos também nos ensinaram a seguir. É para eles que oramos, e com eles contamos ao nos defrontar com gente infeliz, que diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba. Valei-nos Nara Leão, Clara Nunes, João Nogueira, Noel Rosa, Chico Buarque, Cartola, Elis Regina, João Bosco, Aldir Blanc! Socorram-nos Zé Kéti, Gonzaguinha, Alcione, Paulo César Pinheiro, Nelson Sargento!

Nossa carne é feita da carne de todos aqueles que desde o início do século passado usaram notas musicais como armas em combate, que encantaram multidões a preferir um verso de samba do que escutar som de tiro. Eles e elas, que jamais se intimidaram, jamais aceitaram a imposição do silêncio, a proibição de pensar. Nós nos levantamos e eles vêm junto, fazer do nosso canto um canto mais forte. No nosso sangue tem a luta do nosso povo, nossas lágrimas contêm nossa ânsia de futuro, nossos passos apontam nosso gosto pela vida. Nossos instrumentos produzem o som do nosso amor e da nossa luta. Enquanto houver quem tente abafar o voz do oprimido com a dor e o gemido, nós cantaremos. Ninguém vai nos acorrentar, enquanto pudermos cantar, enquanto pudermos sorrir. A gente samba para resistir. A gente canta para não permitir. A gente batuca para conseguir. Afinal, uma dor assim, pungente, não há de ser inutilmente.

Não adianta nos matar: somos herdeiros e herdeiras de um povo que não morre nunca.


Foto de Karla Gamba.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Não sambe

As palavras ruins se associam por afinidade. Tristeza, ódio, golpe, obscurantismo, autoritarismo. A imposição do silêncio; e nós sabemos que paz sem voz não é paz, é medo. O toque de recolher. Os assuntos proibidos, as desavenças gratuitas: preconceito, violência, cultura do ódio a todo vapor. O cara nem sabe por que odeia, pensa que ele mesmo formulou o ódio ao outro, sem notar que ele comprou um ódio prontinho de fábrica, de segunda mão, único dono. Mas meu senhor, por que tanto rancor? Por que me agride sem me conhecer?

A resposta é o silêncio que atravessa a madrugada. O escuro da noite é belo, mas querem tonar sombrio. A beleza dos nossos sonhos e das nossas lutas, nossos punhos cerrados, nossos braços erguidos, tudo isso virou ofensa. A democracia virou ofensa.

Não pode. Não vá. Não cante. Não pule. Não torça. Não vaie. Não fale de amor. Não erga sua bandeira. Não vista vermelho. Não expresse sua opinião. Há um grito parado no ar, eu não vejo, mas posso senti-lo.

Não sambe. Não sambe. Não sambe. Mas senhor, o samba não agride ninguém. No início do século passado, a gente era criminalizado, samba era vadiagem, João da Baiana foi preso somente por portar um pandeiro. Delegados sem alma e sem coração que não querem samba nem corimba na sua jurisdição. Tinha ficado no passado, mas não. Quando o ódio é maior que o amor, o samba não encontra seu lugar mesmo. Já fomos criminosos. Já fomos vagabundos. Já fomos baderneiros. Tudo bêbado. Mas por que, senhor? É que mesmo calado o peito, resta a cuca.

Somos de novo vagabundos. Artista é vagabundo. Outra vez, somos baderneiros. Vamos acabar com o samba, madame não gosta que ninguém sambe. Mas por que, senhor? Tanta alegria ofende. Juntar gente é perigoso.

Meu samba está sem casa. Mas ainda tem gente que canta, ainda tem gente que brinca. Não podem tolerar gente que canta, somos perigosos. Silêncio, silêncio. Já não há lugar, vamos fechar, vamos esvaziar, vamos interromper. Mandou parar a cuíca: é coisa dos hóme. A fome e a raiva é coisa dos hóme.

Meu samba está sem casa. Mas o samba não se aprisiona em casa nenhuma, não senhor. Quem suportar uma paixão, saberá que a casa do samba é o coração. E em nossos corações vocês não vão poder mandar. Quero ver quem haverá de calar a música que ecoa aqui dentro da minha cabeça.

Meu samba está sem casa, mas o samba é da rua, o samba é sem rumo, o samba é do povo, do amor e de todo lugar. Nós não vamos ficar na saudade: o samba é a nossa casa. E sempre haverá casa para quem tem amor.

"É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar

Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva"

(MORDAÇA - Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro)


segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Demora

*** Abaixo, a letra do meu novo samba, "Demora", que contou com arranjo de Vinicius Ferrão e um time maravilhoso de músicos de Porto Alegre. Clique AQUI para ver o clipe. ***


DEMORA
(Alessandra Terribili)

Por que você demorou?
Olha se isso são horas
Você só me chega agora
Eu já tinha desistido de esperar

Chega aqui toda contente
Pois que seja convincente
Pr'eu poder acreditar

O tempo não foi perdido
O caminho percorrido
Traz bem mais pra gente andar

Vai que a vida surpreende
Se for esperar pra sempre
O infinito é o meu lugar

Não sei se veio de barca
Fazendo escalas
Saiu atrasada
Ou se veio a pé

Se correu a vida afora
Não quis ir embora
Chegou com a aurora
Nem sabe onde é

Não sei se perdeu o caminho
Errou o sentido
Brigou com destino
Veio dando olé

Não sei se tava buscando
Em cada passo, o meu abraço
O tempo tava passando
Você nem sentiu cansaço

Ou se veio vacilando
Por uma estrada comprida
Por que você demorou tanto
Pra chegar na minha vida?



sexta-feira, 8 de julho de 2016

Amor & Bem

Tinha ficado pensativa a semana toda. A tal conversa não lhe saía da memória, mesmo que parte dela tivesse sido sugada para algum canto desconhecido da mente, levada que nem canoa desgovernada num extenso rio de águas calmas.

Falaram sobre demonstrações de amor. Ora, não precisam ser efusivas, nem frequentes. Ela sabia bem a chatice que é quando alguém insiste em dar um amor que o outro não quer receber. Tem também aquela história de assustar, e blá blá blá. Mas, no final das contas, ela nem percebia que demonstrava tanto, e amor é mesmo uma coisa que a pessoa faz sem notar. Coisa muito medida não tem como ser amor não.

Ao entrar na loja, Noel Rosa apareceu-lhe através de seus versos, que alguém, pelo rádio, pronunciava:

Agora vou mudar minha conduta
Eu vou à luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar.

"Vai ver é assim que a gente tem que ser", pensou. A letra do poeta da Vila a fez contente novamente, e quando reparou, o céu estava muito azul e o sol brilhava majestoso. Não havia motivo para cansaço nem incerteza. A vida andava para frente, os caminhos se abriam naturalmente, como se fosse a natureza abençoando-a.

Porém, no mesmo instante em que deixou a loja com o pequeno embrulho nas mãos, e antes que as palavras de Noel fizessem sentido de vez, a mente lhe trouxe a voz de Renato Russo, aquele poeta triste que, ironicamente, cantarolou-lhe palavras doces e risonhas:

Vem cá, meu bem,
Que é bom lhe ver
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você.

Olhou para o presente e sorriu para si mesma, pensando: "É, acho que eu não tenho jeito não".

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Grávida

Certo dia, eu acordei grávida. Não sei o que aconteceu, eu não estava assim ao dormir. E dormi sozinha, sem ninguém, sequer acredito no Espírito Santo (somente no santo espírito que tagarela embriagado comigo depois de algumas doses sem jeito).

De repente estava assim, grávida, e não sabia pra onde correr, nem pra quem contar. Tanta gente com quem posso contar e tão pouca gente pra quem eu posso contar. E contei pra mim mesma para ver se eu acreditava, mas acho que não.

Saí grávida, sentindo enjoos e medo. Cheguei à aula, a professora me estranhou. Viu-me triste e quis me abraçar, mas não deixei. Corri trabalhar, mas não queria trabalho, queria pranto, estava confusa e apavorada. Parei de fumar, e só fui almoçar porque eu já não era uma só. Passei no banco, no supermercado, na farmácia. Foram todos gentis, mas pensavam que estava tudo normal. Estava não. Eu estava grávida.

Em casa não chorei mais, controlei meu medo e meu mistério para poder encarar as mulheres estéreis de quem descendo. Elas me sorriam - um pouco encantadas, um pouco com dó. Eu jamais consegui corresponder adequadamente o cuidado que elas têm por mim, e agora, que estava grávida, elas acreditavam mais do que nunca que sou especial.

Fui dormir quase conformada, lembro do suspiro profundo que precedeu minhas tentativas em vão de pregar os olhos. A barriga já se mexia, alguém ali já saltitava, eu não encontrava posição, sentia todo o peso dentro de mim. Quis chorar e senti culpa - ora, que criatura pode chorar para transbordar um filho? Tentava lembrar, mas minha memória fora engolida pela barriga. Aquela pessoa que eu era ficava distante, como vista bem pequena no afastar-se de uma estrada, e eu não tinha outra saída se não fazer com que se reconciliassem meu desejo e meu destino.

Dormi porque não consegui mais não dormir. E quando despertei, a cama estava repleta de cores estranhas, mas vibrantes. Alguma coisa havia saído do meu ventre, mas eu não encontrei.

Tropecei numa clave de sol, andei pela casa à procura do meu filho, e estava tão leve que tinha que me esforçar para fincar os pés no chão. Procurei por todo o canto e aquelas cores ainda caíam de dentro de mim, como fossem o que sobrou daquela gravidez não planejada.

Aos poucos, o chão era feito de puras cores. Tanto, que a casa parecia outra agora. Era uma casa mais bonita, e parecia fazer mais sentido que antes. A doutora que cuida da minha alma me recomendou um pouco de repouso, e quando abri a janela, lá estavam todos os sonhos que eu tinha esquecido. Havia um vasto horizonte, barulho de água corrente, raios de sol e uma paz que eu nunca tinha visto, só imaginado. O céu estava aberto, e havia música tentando entrar em casa.

Eram duas músicas, na verdade. Deixei que entrassem e elas me fizeram companhia, disseram que logo viria uma terceira canção e que, só então, poderiam agraciar meu bebê.

Acabei lhes contando que eu não sabia aonde o bebê foi parar. Elas riram de mim: mãe de primeira viagem. Dentro de mim, já não havia um filho, mas sim, alguma coisa forte e definitiva que pulsava alegremente, sem se preocupar em acertar o compasso.

Nunca encontrei o tal bebê. Mas as cores ficaram pelo chão, a janela permaneceu aberta e, quando chegou a terceira música, elas me tranquilizaram, assegurando que esse tipo de parto é assim mesmo.

Até hoje, eu não sei bem o que foi que aconteceu naquele dia. Mas eu nunca mais fui a mesma. Nem minha casa. Nem meu coração.

domingo, 19 de julho de 2015

O amor em tempos sem Gabo

Eu tinha andado por Cartagena antes, de mãos dadas com Gabriel García Márquez, acompanhando com os olhos e o palpitar do coração a história de Florentino e Fermina, mas então eram outros tempos. A cidade hoje está muito mudada.

O mar continua lá, mas as águas são outras. Jogar-se nelas permite uma navegação tão sem fim, que dá medo de não voltar. Não medo. Mais aquele frio na barriga. O receio sedutor do que é desconhecido e irremediável. O azul está aturdido pelo cinza dos dias nublados de inverno, mas acaba que me faz lembrar o verde escuro de Copacabana, ou, com esforço, até o verde-marrom dos mares da minha infância. Mas o infinito do mar é sempre o mesmo, e é assim pra mim como foi pra Florentino também. E há de ser para muito mais gente que vai vir navegar em outras águas do mesmo mar.

Embriagada de poesia e amor pelo ar que um dia Gabo respirou, é como se não fosse permitido sair sem escrever. Escrever é sentir tanto que precisa transbordar pelas pontas dos dedos num teclado, para não explodir. E o que eu sinto é tão igual, mas as águas são outras. Passou muito tempo. Mas nem tudo muda tanto assim. "A sabedoria nos chega quando já não serve para nada". Mas ela fica aí, servindo para quem vem depois e a apanha no ar.


"Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia. Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada". 

(Gabriel García Márquez - O amor nos tempos do cólera)

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Reativa

Eu lembro quando eu era adolescente e morava na Vila Formosa, atrás de um clube. O quarto da minha mãe tinha uma sacada e dava para esse clube, e a melhor parte disso era que não havia prédios ou outro empecilho que me impedisse de olhar o mais longe que minha vista pudesse alcançar. Se prestasse bem atenção, dava pra ver as antenas de TV piscando lá bem longe, na Avenida Paulista.

Gostava de fazer isso porque, como já lhes confessei, me agrada a sensação de ser pequena. Eu me atirava no azul profundo do céu, e era melhor ainda quando era o azul escuro da noite. Era um mergulho, eu nem sei aonde eu ia parar, mas a sensação era boa. A vida toda pela frente. O horizonte todo pra ser mergulhado. O céu todinho pra se atirar.

Ontem, eu sentei diante do mar num dia chuvoso. O céu, entre o branco e o cinza. O mar verde verde, aquele verde escuro que me fez lembrar o escuro do céu visto da sacada do quarto da minha mãe, tantos anos atrás, uma outra eu. Você olha até o fim e não vê fim. Lá no fundo, caía um lindo temporal, que não ofuscava a beleza de tudo e não metia medo. A sensação era plena de paz. Aquela imensidão ali, olhando pra mim calmamente. Não lembro quando tinha sido a última vez que eu mergulhei.

Ainda estou embriagada por aquela imensidão. A mim, ela diz: calma. Quem tem uma certeza bonita como a eternidade, não se prende ao instante. A gente não tem, mas também devia fazer isso. Pra ser mais feliz. Pra ser mais forte.

A vida ainda é longa, o horizonte ainda convida para o mergulho, o céu continua profundo. A vontade de se atirar reaparece - ou é reativada. O coração transborda tão infinito quanto tudo isso. Só pode ser de amor.

Os tempos são turbulentos. Mas eu não. E se eu puder oferecer minha paz para vencer a guerra, meus braços já estão abertos.



segunda-feira, 13 de abril de 2015

Quando você entrou em mim como o sol num quintal

Ora, e quem há de me condenar?

É o amor quem me redime diariamente,
Tão irremediável quanto a morte,
Tão incorrigível quanto a passagem do tempo.

Quem haveria de me impor limites?

Se o pensamento é livre e voa
Ainda que o corpo esteja encarcerado em normas,
E que os movimentos estejam controlados
Pela moral dos que fazem a moral
Alheia à vida real
(que é tão amoral!)
Somente para criminalizar
A nossa própria humanidade
E meter-nos a culpa para nos imobilizar.

Quem atirará a primeira pedra?

Aquela que fere o corpo
Mas fortalece o desejo da alma
De subverter a lógica estúpida e mesquinha
Das gentes que teimam em não amar
Mas em obrigar-se ao fardo
Ignorando a beleza do saltitar espontâneo do coração
Cobrindo a vida de correntes
Para sacar-lhe o que tem de mais belo:
O movimento.

Mas eu vos direi, no entanto:

A vida não cabe nos seus códigos
O amor não descansa mesmo amordaçado
É ele quem me dá pão e água
Que, envoltos em olhos, bocas e braços,
Fazem-se peixe e vinho,
E assim, me alimento da presença
Para sobreviver à ausência que depois vem.

O senso que me orienta
Anuncia-se no ardor irrequieto da minha pele:
É o pulsar incessante e contente do meu peito em festa.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A divina comédia humana

Minhas amigas partiram há dez dias. O Antônio chegou há 35. O Francisco chegou hoje. Daqui a 27 semanas, chegará um gurizinho ou uma guriazinha da barriga da Manu, que há tanto tempo está vocacionada para recebê-lo(a). A falta não é peenchida nunca. Mas o coração segue abrindo novos espaços para florescer.

O coração gosta de florescer, e se abre em primavera para a vida sempre que pode. Procura o pólen, inventa dias de sol, e se precisar da chuva, o coração sabe chover. A gente inventa os motivos. A gente sabe fazer.

E se não houver música para ouvir, a gente canta. E se cantar for difícil, a gente escolhe uma música mais fácil. Quando chove, a gente chove junto. Eu chamo Belchior para chover em mim. Quando não há plantação plantada, a gente planta agora, dane-se  atraso. Eu rego com vinho e lágrimas, eu peço as desculpas que for preciso, e o coração pulsa tanto que só pode ser sinal de um tempo bom.

Sentir a pulsação do coração é tão bom que a gente nem pensa para onde esse maluco está indo. Ele se joga porque ele renasce, ele não consegue morrer, e cada vez que você assina a certidão de óbito, ele se faz de morto para reviver na primeira esquina em que você passar desavisada. E pulsa, então, na direção que quiser, sem que você tenha conseguido controlar ou antever. Agora, não reclama da falta de convencionalidade.

E se você pensar que não pertence mais a aqui, aqui ressuscita em outra carne, e se levanta em caras e tempos de outras pessoas e motivações. Levanta a bandeira, que essa é sua sina, ela nunca vai te largar. Não adianta desdizer nem maldizer a mãe que te inventou. Levanta a bandeira, e quando você a levanta, precisa da força da pulsação do coração que, satisfeito, te ajuda. Meu coração não é meu, ele corre para onde quer. Eu que sou dele.

Você pensa que morreu. Mas este ano, eu não morro.

A gente se apaixona no descuido. E o descuido é perigoso, mas a gente está aqui pra sobreviver a ele.

A falta nunca será preenchida. O vazio faz é aumentar. Mas aumenta, também, o espaço para caberem novos amores e personagens. A vida renasce, a vida floresce. E eu só consigo sentir gratidão. Por ter tido as minhas amigas na minha vida, por elas terem me transformado. Por ganhar novos amigos agora. Porque meu coração pulsa, porque eu sinto frio na barriga, porque eu sinto tanta inquietação que eu não consigo seguir o dia se eu não escrever.

E tudo que eu pensei que não havia, renasce. Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não, eu canto. Eu sempre vou cantar.


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

The songs of freedom

Bob foi voz e mente de uma bandeira que eu pretendo carregar para sempre através do samba e da luta política. Bob significou e deu significados à música que se faz nas regiões mais oprimidas do mundo. A música também é internacionalista, a arte é um instrumento de libertação.

Hoje ele completaria 70 anos, e eu o homenageio com uma das músicas mais bonitas que conheço, esta abaixo, dele mesmo. Bob Marley, eternamente presente. Não, eles não vão matar nossos profetas.

"Emancipate yourself from mental slavery,
None but ourselves can free our minds.
Have no fear for atomic energy,
'Cause none of them can stop the time.
How long shall they kill our prophets,
While we stand aside and look?
Some say it's just a part of it,
We've got to fulfill the book"

Won't you help to sing these songs of freedom?




quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O que o amor envolve

O amor envolve tanta coisa, que dá preguiça só de pensar. Como um bolo de roupas pressionadas uma contra a outra, envoltas por um elástico (ou coisa do tipo) pra caber numa mala de viagem.

O amor envolve o teu medo de se relacionar e a minha pressa de me aprumar. Envolve os traumas e as manias que acumulamos solitariamente no caminho que um percorreu até o outro. Amor envolve um certo orgulho, envolve vergonha também, paciência, e um sem-fim de dúvidas e de vontades.

O amor envolve meu medo de me relacionar e a tua vontade de viver só. Tua sede de noite e minha necessidade de dia. O amor envolve meus fantasmas, teu tédio, os romances que leste e as minhas lembranças de família, derramadas dum baú.

O amor desenvolve as minhas teorias sobre o tempo e as tuas hipóteses sobre o nada. Desenvolve conversas perdidas na história e desejos mal-resolvidos; desenvolve porque, como coisa viva, não pára de ir pra algum lugar enquanto não morre. O amor desenvolve o medo da morte e a paz da vida.

O amor desembrulha pequenas coragens, temores ocultos, o amor desembrulha os corpos e os mergulha um no outro só pra mostrar que o que é real se toca. O amor desembrulha presentes e passados, anseia o futuro perigosamente e embrulha estômagos com ansiedade e poréns.

O amor envolve a nossa música, as manhãs de sábado, as tensões na nuca. O amor envolve uma disposição assustadora para a eternidade, e tenta a todo momento escapar da juventude pra dizer que não se aprisiona em lugar nenhum.

O amor envolve o que meus amigos pensam de você, e o que sua mãe te predestinou desde sempre. O amor envolve os times opostos, o vinho e a tequila, o samba e o rock, a praia e a chapada. O amor é birrento porque, de tanto medo de que o matem, prefere dominar a própria morte suicidando-se.

O amor envolve a pele áspera do teu braço, os dedos curtos do meu pé, os olhos fundos, os dentes tortos. O amor envolve nossa diferença de altura, de idade, de origem, de endereço.

O amor envolve as concepções que há sobre ele e devolve os formatos que inventaram para senti-lo. O amor balança, dança, bamboleia e se esquiva docemente das fórmulas que o sufocam, o amor sobrevive. O amor floresce nos jardins, nas árvores e no mato também, o amor acontece, o amor cresce; o amor não tem dono nem relator.

O amor desenvolve o conflito de expectativas e o receio de se subordinar. O amor desenvolve a inércia mal-explicada pela física, o curso do rio; o caminhar cansado e desconfiado pra um lugar desconhecido, o amor cassa às vezes. O amor desembrulha aquilo que está e fecha os olhos pra ser feliz. Mas o amor também rasga a fantasia para se atirar numa realidade irremediável de amor.

O amor me envolve como um abraço caloroso num dia de inverno. O amor envolve o que eu esperava e você que veio, o que eu sempre sonhei e você que sonha. O amor envolve um sem-nome de tipos de esquivar-se, justificativas, racionalidades, exclamações e coisas pequenas. O amor desenvolve as coisas pequenas e as deixa grandes.

O amor desvia, e na mesma via, sem querer, desavisado, por um momento, afrouxa o elástico, e as roupas vão ao chão, espalham-se.

O amor, agora, envolve eu e você. Mais nada.


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Aos amigos e amigas, desejo um 2015 cheio de amor!

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Que me perdoem aqueles que sentem ódio, raiva, medo. Eu sinto amor.

Que me perdoem aqueles que sentem ódio, raiva, medo. Eu sinto amor.

Eu sinto amor pelos sonhos que tenho, porque nenhum deles é individual e mesquinho. Sinto amor ao imaginar um mundo onde um ser humano não seja subjugado por outro. Sinto ainda mais amor ao perceber quantas pessoas imaginam a mesma coisa, e se movimentam para isso.

Seu ódio não me faz sentido, eu não vou falar com ele. Se você gritar, xingar, ofender, exibir num estandarte seus preconceitos ou esbravejar sua vontade de esmagar os outros pra chegar aonde quer, eu nem vou ouvir. Vou rir.

O amor explode em meu peito quando me dou conta de que agora, finalmente, estão acontecendo coisas pelas quais muita gente lutou. E minha insatisfação não tira de mim meu amor, porque eu olho ao redor e vejo gente lutando. Eu me instrumentalizo de amor para enfrentar o que não aceito.

Sinto o amor me varrendo a alma quando vejo tanta gente que estava afastada, que tinha desistido, que estava frustrada... Tanta gente voltando a empunhar bandeira. Tanta gente expondo nas roupas, nos rostos, no seu tempo a sua opinião, a vontade de disponibilizar a si mesmo para que o país avance num caminho de distribuição de renda, de causas humanitárias e justiça social. Amo a coalizão construída nesses marcos, e amo ainda mais a responsabilidade que essas presenças valiosas trazem.

Eu amo quando seu ódio empurra mais e mais pessoas para o nosso abraço.

Acho graça quando quem odeia não explica o próprio ódio. Rio das besteiras que tremulam sem poder justificar, sem assumir que não é ele mesmo o elaborador daquele ódio todo. Eu rio e sigo amando. Quem sabe esse amor forme um tapete por onde passarão pessoas que, fatigadas pelo ódio, se deixarão contagiar pelo amor à igualdade e ao respeito.

Quanto mais o Brasil se afastar do elitismo, dos preconceitos, da exploração como forma convencionada de relação social, mais eu vou sentir amor.

Se seu ódio é o melhor que tens, o meu amor é só um caminho para atingir sonhos ainda maiores.


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É por isso que, neste domingo, vou de #Dilma13.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

O amor

Sentir amor é ótimo. Mas mais ótimo ainda é saber não aprisionar o amor num só lugar.

O amor não está guardado numa pessoa, aprisionado a um time de futebol, fechado dentro de uma banda, grudado numa carreira. O amor pode estar em tudo isso, e espalhado, ainda, por muitos outros espaços menores. Pode-se sentir amor por estar numa cidade, por seu sonho, por um hábito feliz - como o de praticar seu esporte predileto, escrever no seu diário, observar o pôr-do-sol num bom lugar.

Amor pela sua fé, amor pelas coisas racionais em que você acredita. Sentir amor é extrair prazer do objeto amado. Amor não pode ser perturbador, amor é para libertar você da mesmice, da tristeza, da falta de esperança. Sem amor, não se fazem grandes coisas.

O amor amplia seu mundo, para que você possa colocar amor no que faz, ver o amor se desdobrar pelas várias dimensões da sua vida. Somente com amor, é possível perceber que o pai é, no mínimo, o universo. E que a mãe é, no mínimo, a Terra.

(com amor para Maiakóvski, Caetano Veloso e Renato Braz)