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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

2016

Às vésperas de sair de férias, é como se meu réveillon fosse agora. Quando você vive um período de profunda intensidade, é só quando para e respira sem pressa que consegue assimilar o que ganhou.

Eu mal posso esperar por estar diante do mar para agradecer. Foi muita coisa boa. Presentes da vida. Sorte. Amor. Alegria. Encontrar. Reencontrar-se.

Tem gente que diz que os anos vão passando e as coisas vão perdendo a graça. Mas acontece que a graça nunca foi uma característica das coisas, a gente é que atribui ou percebe graça nelas. Nada de acomodar-se na desesperança, no cansaço, na mesmice. "Certeza é o chão de um imóvel, prefiro as pernas que me movimentam", canta Nando Reis.

Que o mar lave o que restou de ruim. Que venha, feliz e saltitante, 2016.



quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 8: final)

Carolina e Érico eram amigos havia algum tempo. Amor de amigo é despretensioso, não é um trocar de ajudas, ombros e ouvidos, não envolve sentimentos mesquinhos como o de posse. Amor de amigo não é obrigatório, você encontra os amigos pela vida sem que ela os imponha a você pelo sangue ou por convenções sociais. Ninguém te prende a um amigo, nenhum contrato, nenhuma promessa ao vento. Você fica porque você quer. De amor de amigo você não se protege, ninguém tem medo de tornar-se amigo de alguém.

Mas sentimentos são coisas confusas e altamente misturáveis – por que alguém haveria de determinar que é errado misturar sentimentos? -, que se somam, se dividem, se subtraem, se multiplicam entre si. Érico se viu apaixonado pela moça que tinha nele seu melhor amigo, e ela, empunhando esse discurso, preferiu afastar-se para isso “passar”. Entregou para o tempo resolver, só o tempo sabe passar. Consigo mesmo, ele desejava que fosse um distanciamento temporário, para pensar. Ele também tinha que pensar, era tudo muito confuso mesmo.

Agindo em coerência com a estratégia de Carolina, Érico começou a sair com uma garota. Nada muito empolgante, mas estava aberto para qualquer coisa alterar-lhe o rumo. Certa noite, sua vida tomou um rumo imprevisto: a namorada saiu cedo e Carol se aproximou. Estavam distantes havia algum tempo, e talvez isso o fez percebê-la diferente. Parecia insegura do que estava fazendo, mas decidida a fazê-lo. Talvez, o que a tinha provocado a distanciar-se foi apenas o velho medo... Medo de perder o amigo, medo de se perder. As pessoas são cheias de medos.

Érico teve medo. Quando ficaram juntos, pareceu a coisa certa. Mas há muitos poréns entre um ponto e outro da história. Era uma situação nova e inusitada – sempre que pensava racionalmente no que estava acontecendo, assustava-se. A paixão chegara a ser platônica, a vida real é mais difícil. Os dois teriam que lidar com ela. Romantismo é um estilo literário, não uma boa forma de planejar sua vida.

Passou-se uma semana de incertezas, devaneios, expectativas e medo; e lá estava a noite de revéillon. Carolina reuniria os amigos em casa. Ninguém sabia de nada, ela mal sabia de alguma coisa, Érico nem sabia se aquilo tudo era real. No meio de tudo isso, ao se dar conta de que a meia-noite se aproximava, Carolina foi procurar Érico para que fosse seu primeiro abraço do novo ano.

Procurou-o pela festa até encontrá-lo na pista de dança e o viu dançando com uma moça qualquer, uma entre os tantos desconhecidos que sua própria festa agregou. Não era uma dança ingênua e despretensiosa. Era um flerte, como os demais que aconteciam simultaneamente no mesmo lugar.

Carolina ficou parada olhando, quase duvidando. Num impulso, foi até ele e puxou-o para fora de lá.

- Eu não posso acreditar que você está fazendo isso!

- Eu não estou fazendo nada!

- Érico, eu não sou cega, nem burra!

- Carol, a gente sabia que não ia ficar junto aqui!

Ela arregalou os olhos ao ouvir aquilo. Não dava tempo de pensar, a raiva se somou à tristeza, e um intenso sentimento de decepção resultou daquele choque. Érico tentou consertar.

- Carol, não foi nada, esquece isso.

- Vou esquecer mesmo, mas não vou esquecer só isso não! Vou esquecer logo tudo! – e, baixando o volume da voz, completou – Eu pensava você seria incapaz de fazer qualquer coisa que me chateasse. Era por isso que eu tinha decidido dar uma chance a nós.

Carolina saiu depressa. Não olhou para trás, mas sabia que Érico não a seguia. Correu em direção aos fundos da casa. O ano estava quase mudando, as pessoas estavam concentradas nisso. Érico ficou lá, parado ao lado da pista de dança, imaginando que colocou tudo a perder, dando-se conta de que seria eternamente assombrado pelo motivo pelo qual ela decidira dar uma chance a ele.

De repente, alguns dos convidados correram na direção do quartinho dos fundos. Estranhando a movimentação, ele se espichou para enxergar: viu Carol no chão e correu. Viu-a zonza, estava machucada. Tinha caído de cima do telhado. O que ela teria ido fazer no telhado...? Fugir dele? Chorar isolada?

Érico conseguiu chegar perto de Carolina, surpreendido pela reação que causara na moça. Quando o viu, ela sorriu e o abraçou forte. Ele se sentiu aliviado: não tinha posto tudo a perder. Encorajou-se, para tudo há solução:

- Por favor, me perdoe, foi uma estupidez minha.

Carolina disse que não sabia do que ele estava falando, e assim, começou uma disputa infinita entre memória, motivos, lembranças, táticas, culpas, remorsos. E medo. A passagem dos dias não reverteu esse comportamento dela, antes, acentuou. Érico ficou surpreso por achar que aquela mulher pudesse agir com tamanha frieza, e uma mágoa tamanha tornou palpável a necessidade de esquecer aquela história.

O tempo sempre ajuda quem quer esquecer. Quem quer. Quem não quer, não adianta esperar que o tempo aja sozinho. O tempo só sabe passar, cumprindo um curso de rio que pode ser sinuoso, pode ser comprimido entre margens opressoras, em águas densas ou límpidas; mas também pode ser o correr tranquilo de águas que não têm pressa de desaguar – sabem que o deságue é um fim incontornável.

O tempo não é coisa que a gente possa mexer não. E nem precisa.

***
FIM


quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 7)

- Amanda, você é a única pessoa para quem eu falo tudo, por favor, me ajuda a entender se eu estou ficando louca ou carente demais.

- Lá vem.

- Estou sentindo um troço estranho aqui.

- Ai, Jesus, eu estou tendo um deja vu?!

- Você acha que não devo?

- Irmã, vou te levar urgentemente num psiquiatra. Ou numa mãe-de-santo. Ou num programador de sistemas. Já tive esta conversa contigo antes!

Chegou a sentir vertigem. As palavras de Amanda entravam atropeladas pelos seus ouvidos, Carol parecia ter perdido parte da capacidade cognitiva junto com a memória daquela fatídica noite que, agora, ela esquecia por opção.

- Ah, que bom que te achei, Carol, estou indo embora.

Beijou-o para testar a si mesma e a ele.

- Não quero que você vá encontrar a Liz amanhã.

- Ok. Não vou.

Ao redor deles, a maioria já estava embriagada o suficiente para não notá-los. Mas alguém, ao longe, prestava muita atenção, e ria-se sozinho observando aquele casal. Pensou em chegar mais perto para ouvir melhor, mas temeu a memória da moça que tinha perdido a memória. Saiu risonho, ainda observando, recordando. Vestido de azul.

A noite de ano novo é muito tumultuada. Certamente, a mais congestionada do ano. Todo mundo quer pedir, até quem diz não crer em nada. E a ânsia de pedir é tão grande que pedem pra qualquer coisa. Até para uma tigela de lentilhas, pedem. Alguns fazem pedidos genéricos, como saúde, paz, amor. Tem gente que especifica demais, quer o cargo X na empresa Y em determinada altura do ano. Mas aquele pedido foi diferente.

A mulher chorava contida, sentada sozinha no telhado do quartinho dos fundos de sua casa. Embaixo, ninguém notava: faziam já a contagem regressiva que traria o novo ano.

- Eu vou esquecer mesmo. Mas não vou esquecer só isso. Vou esquecer tudo, tudo! – e olhando para o céu, pediu miseravelmente em prantos – Por favor, me ajuda! Eu quero esquecer!

- Como assim?

A mulher se assustou quando me viu. Claro. Não esperava resposta. Já nesse momento, quase caiu do telhado, duvidando de seus próprios olhos. Segurei. Ela me mirou de cima abaixo, desconfiada, mas sem ter mais com quem contar.

- Quem é você?

- Que raio de pedido é esse?

- Não sei quem é você!

- Ou você me explica ou eu não vou poder te ajudar, moça.

- Você é um anjo?

- Eu não.

- Papai Noel?

- Tá louca?

- Peraí... Você estava na festa?

- Moça, diga logo o que quer e eu vou-me. Não tenho a noite toda pra ficar aqui em cima com você.

Ela respirou fundo e parou de chorar. Com a voz lacrimosa falando baixo e tremendo um pouco, como se aqueles quase trinta graus fossem somente dez, ela me olhou de novo e pediu.
Não tinha nada a perder.

- Eu queria voltar o tempo. Pra época que eu e o Érico éramos somente bons amigos.

- Moça, o tempo não é coisa que eu posso mexer não. Volta no que a senhora estava falando antes.

- Está bem – e respirou fundo, como diante de uma cesta de basquete onde arremessaria um tiro livre – Quero esquecer tudo o que houve entre a gente. Quero esquecer o que sinto por ele!

A gente não está aqui para avaliar caso a caso, nem para julgar as tristezas e necessidades das pessoas. As pessoas às vezes são meio esquisitas, mas temos que acreditar que quem sabe o que é melhor para elas são elas mesmas. Pensar que você sabe mais abre possibilidades perigosas de revogação do livre-arbítrio.

E assim sendo, foi do jeito que tinha que ser.

Foi um pouco pela minha ação em atendimento ao pedido, mas acho que foi principalmente um novo susto em meio ao estouro de fogos de artifício que fez a moça se desequilibrar e cair. Rolou telhado abaixo e foi ao chão. A queda foi feia, o lugar não era baixo. Podia ter se machucado, mas, por sorte, os danos foram os mínimos possíveis. Desci, quis saber se ela precisava de hospital, mas ela disse que não.

Como fui visto, fiquei um pouco mais por lá para não gerar suspeitas, depois fui cumprir o restante da jornada – que era longa. E vou lhes dizer: não chega a me surpreender ver a mulher, agora, depois de esquecer tudo, lembrar tudo ao refazer sem saber que já fez.

- Na noite de ano novo, você disse que duvidava de que eu fosse capaz de fazer alguma coisa para te chatear. Você se lembra disso? – ele perguntou.

- Sim.

- Lembra o contexto?

- Creio que foi ao me despedir de você... Quando você fez referência à tal briga que escapou da minha memória. Não foi isso?

- Foi exatamente isso.

***
Continua... Último capítulo amanhã!

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 6)

O ano, aliás, começou de verdade na segunda-feira, dia de trabalho. Tudo normal, exceto porque alguns pararam de fumar, outros começaram dietas, uma meia dúzia começou a correr diariamente. Tudo normal, exceto que duas pessoas que antes eram grandes amigas agora estavam afastadas, sem falar direito uma com a outra, e sem nem saber bem o porquê disso.

Aquela ausência entristecia Carolina mais que a grosseria do dia 1º de janeiro. A falta é um buraco que se abre na alma, insolúvel. Quando se sente a falta de alguém que está por perto, o sentimento é muito específico. A falta é ouvir a voz da pessoa quando ela não falou nada. A falta é morar em todos os lugares aonde a pessoa não vai.

Carolina olhava Érico de longe e não sentia o amor que ele lhe dedicou outrora. Abria-se-lhe no peito uma dor inexplicável. Nada daquilo era explicável, afinal.

Desejava poder voltar o tempo para quando aquela festa não tinha acontecido. Se pudesse refazer suas decisões, não teria organizado festa nenhuma, teria passado a noite de ano novo dormindo, nem que fosse à base de soníferos.

O tempo, por sua vez, não volta atrás, mas sabe correr. O tempo correu para um lugar onde o sofrimento de não saber se dissipou em uma variedade de sentimentos entre a conformidade e a melancolia. Carolina mastigava sua nostalgia em pleno ano novo, como aquele que pressiona eternamente entre os dentes uma folha de bálsamo, por exemplo.

Foi então que os dois ex-amigos foram desafiados a se encarar. Isso se deu quando já eram capazes de fazer isso, de forma natural. Sabiam que esse momento chegaria. Era noite de sexta-feira, aniversário de um colega do escritório. Todos saíram do trabalho direto para o bar, onde se armou uma mesa comprida em que pessoas gritavam para se ouvirem, riam escandalosas e se aliviavam das pressões cotidianas da vida entre goles de cerveja.

Os dois se sentaram lado a lado, e não esconderam o constrangimento. Eram, antes, tão íntimos. Agora, trocavam monossílabos esquisitos e gaguejantes, de quem não tem nada para dizer.

Carolina não se conformava com aquele triste fim de uma bela amizade, e resolveu agir para reverter o constrangimento. Fez perguntas sobre a família dele, sobre o trabalho, e, lá pelas tantas, já estava confessando a falta que ele lhe fazia.

- Eu também sinto sua falta, Carol.

Ela respirou aliviada, como se até ali o ar que a penetrava não tivesse encontrado o caminho dos pulmões, só agora. Sabia que não podia controlar o tempo para remediar coisas passadas, mas entendeu que tinha controle sobre o presente: não falou sobre a festa, a queda, a briga, a grosseria. O passar dos minutos trouxe a Carolina e Érico os assuntos que sempre tiveram antes: era a vida correndo solta, como se a interrupção fosse derivada de um salto sobre um amontoado de rochas. O salto pode até ter provocado um tombo, mas bastou levantar-se para voltar a correr outra vez.

Da mesma forma que costumava fazer antes, Carolina perguntou a Érico como estava a moça com quem ele saía vez ou outra no ano passado. Foi quando ele tornou a apresentar o olhar entre desconcertado e desconfiado, que ela reconheceu de pronto.

- Ué, Carol, desde o fim do ano passado eu não a vi mais.

Deduzindo que isso pudesse ter alguma relação com a parte de sua memória que a amnésia apagou, ela tentou mudar de assunto rapidamente. Porém, antes que ela fosse bem-sucedida, Érico prosseguiu:

- Amanhã vou sair com a Liz.

Liz fora colega de ambos, mas tinha deixado o escritório havia poucos meses. Carol sempre alertara o amigo de que a jovem tinha pretensões com ele, mas ele preferia fingir-se de desentendido: sabia que Carolina não ia com a cara da garota.

Ao ouvir a revelação, ela engoliu seco e ficou sem saber para onde olhar.

- Ah, então, finalmente decidiu dar uma chance à moçoila?

- Se você disser para eu não ir, eu não vou.

Trezentos tipos diferentes de calafrios percorreram o corpo de Carolina naquele momento. Ela engasgou, tossiu, foi um fiasco. Érico riu. Sentir aquele riso carinhoso era o gengibre de que ela precisava. Riu também, e continuaram no mesmo lugar de onde nunca deveriam ter saído.

Não demorou e foram interpelados pelos colegas, sedentos de interação e de mais cerveja. Àquela altura, a embriaguez de todos já os fazia avulsos a conversas particulares que cada qual pudesse nutrir, e sociáveis o bastante para não permitir que ninguém saísse daquele contexto coletivo quase simbiótico.

A noite passava, e ficou inevitável para Carolina empreender nova tentativa de recuperar a noite de réveillon. Tomava força em seus pensamentos a revelação feita pela irmã poucas horas após perder a memória. Telefonou para Amanda, então.

***
Continua...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 5)

A memória que lhe fora roubada não era de um período tão recente assim. Segundo Amanda, isso acontecera havia coisa de uma semana.

Ficar com Érico não lhe fazia sentido algum! Como seria possível que não lembrasse, ou pior, que sequer pudesse se imaginar nessa situação?! Não poderia ter ficado com Érico porque não correspondia a atração à qual o amigo sucumbiu certa vez, e detestava a ideia de se arriscar a machucá-lo. Será que falara para a irmã sobre outro Érico? Mas não se lembrava de outro Érico também!

A situação era desesperadora. Quando Tito se aproximou de Carolina de novo, puxando-a pela cintura intimamente como fazem os casais, estranhou sua expressão repleta de dúvidas. Já não havia contexto para aqueles abraços.

A cabeça doía. Um galo de briga lhe crescia no lado direito para além da testa, acima da orelha. Provavelmente, aquele seria o líder dos galos que tecem manhãs e não lhe permitiria dormir. E quem dorme com um barulho desses? Sem contar que a quantidade de arranhões e feridas tornava difícil a mera tentativa de encontrar uma posição confortável para descansar. Alguma lesão muscular certamente ocorrera.

Acordou de supetão, seis horas depois. Teve pesadelos com supostas consequências da queda, sentiu-se prisioneira em seu corpo. Doía muito, o galo cacarejava estridentemente e sem parar. Queria ir para o hospital. “Será que quebrei a porra duma costela?!”, pensava, temendo a resposta. “E se der hemorragia?” – a cabeça, quando quer produzir motivos de se incomodar, funciona como uma máquina desenfreada.

Tudo por causa de uma queda que ninguém sabia como ocorreu. Talvez tivesse subido ao telhado para rezar, pedir, agradecer, procurar estrela cadente. São bons motivos para levar alguém ao telhado numa noite de revéillon.

- Mulher, eu estou começando a ficar preocupada contigo.

Pelo telefone, a irmã não deu maiores esclarecimentos. Somente reafirmou o que já havia dito na noite anterior. Carolina estava impressionada com a amnésia, e não havia remédios ou testemunhas para resolver a situação.

Precisava falar com Érico. Era a ele que recorreria, claro. Mas, como se sua amnésia fosse do tipo alcoólica naquela manhã de 1º de janeiro, lembrou-se de repente de que brigara com Érico – na verdade, lembrou que lhe disseram isso, mas ainda não se lembrava de briga nenhuma. Lembrou que a irmã lhe revelou que tinha ficado com o amigo, mas não se lembrava de alguma vez ter sentido atração dessa natureza por ele.

Carolina, então, pôs-se a chorar. Nem isso sabia bem: por que estava chorando. Secretamente, tinha pensado que, ao dormir, toda aquela confusão se desfaria no ar, mas isso não aconteceu. Quando acordou, tudo estava exatamente no mesmo lugar. Olhar os escombros da festa não ajudava a lembrar, mas desesperar-se a afastava da compreensão de qualquer coisa. Precisava se acalmar, sabia disso. Só não sabia como fazer. Ou talvez soubesse sim.

Telefonou para Érico com a voz ainda um pouco chorosa.

- Eu não sei o que está acontecendo, acho que bati com a cabeça e esqueci uma parte da festa! – disse, o medo transbordando de suas palavras trêmulas – Preciso ir pro hospital, Érico...

- Você só se esqueceu de mim, né Carol? Aliás, acho aproveitou e também esqueceu que tinha terminado com Tito.

Érico acusava a amiga de nutrir uma amnésia seletiva. Mais do que isso, demonstrava não levar a sério os males que a estavam atormentando. Como podia não se importar com os riscos que ela ainda corria por ter caído do telhado sem nem saber como? Como podia ser insensível a tal ponto?

Triste, Carolina cortou o assunto, desligou o telefone e resolveu deixar aquilo como estava mesmo. De agora em diante, assumiria para si que nunca teve mesmo nada com ele, e que a história contada por Amanda provavelmente era um engano tremendo. O ano era novo e a vida seguia para frente. Que a queda do telhado, a briga na pista de dança, a costela, o galo, que ficassem todos para trás. Que Tito ficasse para trás também, o ano era novo. Que viessem erros novos.

Foi para o hospital sozinha, relatou o pouco que sabia sobre a queda, fez os exames que julgaram necessários. Nenhum mal físico lhe havia acometido. A médica explicou que uma pancada forte na cabeça pode resultar em amnésia, e recomendou que Carolina ficasse sob observação para saber se novos sintomas se revelariam. Aparentemente, nada lhe danificara o cérebro, mas ela deveria ficar atenta caso sentisse excesso de sono e enjoo.

Voltou para casa um pouco mais tranquila. Estava tudo bem. Um dia, perguntaria a Érico que história era aquela de briga na pista de dança. Um dia, depois que passasse a chateação causada pela atitude dele naquele primeiro dia do ano.

***
Continua...

domingo, 20 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 4)

Tito fez cara de espanto. Carolina tinha cada vez mais medo desse lapso de memória. Agora era certo: foi apenas aquele trecho da noite que se apagou de sua lembrança. Fora à pista de dança, queria fazer alguma coisa lá antes que chegasse o dia 1º de janeiro. Talvez, somente dançar. Talvez quisesse começar o ano novo dançando.

- Carol, não se preocupe mais. Vai ver os olhos não estavam lacrimejantes e foi tudo impressão minha – considerou Graça.

- Mas por que eu subi no telhado?

- Não sei, não importa. Fique tranquila, não deve ter nada nesse espaço de tempo que você precise saber. Tudo parece normal, nos trilhos, igual ao que estava antes de você cair. Está tudo bem.

Era verdade mesmo, estava tudo bem. A festa corria sem problemas, as pessoas se divertiam, até os desconhecidos. Devagar, ela passou a seguir o conselho de Graça. Dane-se o telhado e os eventuais motivos. Nada disso havia mais, nada disso tinha sentido, não existia. Danem-se as dores. Eram os primeiros momentos do ano novo.

Não podia dançar porque os machucados incomodavam, então, pôs-se a beber. Foi quando Tito voltou para perto dela. Primeiro, insistiu para levá-la ao hospital, mas ela titubeava. Consensualizaram que ela visitaria um posto de saúde tão logo despertasse no dia seguinte.

Mudaram de assunto, e mudaram de assunto outras tantas vezes, até começarem a falar de coisas íntimas e do coração. Ora, que tinha de mais? Todo mundo gosta de estar com alguém na virada do ano. Tito lhe representava um território familiar, e, como Carol se sentia solitária diante daquela confusão, baixou a guarda e permitiu que o momento a levasse a qualquer lugar. Normal.

Érico foi um dos que notaram esse movimento quando foi se despedir:

- Estou indo.

- Mas já?

- Queria me certificar de que está tudo bem... Você não lembra mesmo de ter brigado comigo? Acha que teve uma pancada na cabeça que lhe alterou a memória?

- Não lembro mesmo e não faço ideia de que motivo eu poderia ter para brigar contigo, Érico! Você é uma das pessoas que eu mais amo nesta vida, duvido que seria incapaz de me chatear em plena noite de ano novo! – e, após curta pausa, enquanto ele a olhava embasbacado, ela concluiu – E... Quer saber? Se alguma coisa aconteceu, eu esqueci. Então, esqueça também.

No rosto dele, havia um misto de espanto com melancolia.

- Carol, você esqueceu só que brigou comigo ou esqueceu mais coisas?

- Eu não sei por que fui ao telhado e não sei como caí – ela murmurou em seu ouvido, para que ninguém ouvisse.

- Acho tudo isso muito estranho. Podemos conversar outro dia?

- Claro!

Ele abraçou-a reticente, mas saiu em passos decididos.

Érico e Carolina conheceram-se no trabalho e imediatamente se identificaram um com o outro. Em pouco tempo, a amizade se estendeu para fora do escritório, e eles se encontravam após o expediente e nos finais de semana. Trocavam confidências, faziam planos e dividiam desejos, riam muito, falavam de qualquer coisa ou apenas não falavam nada. Eram “unha e carne”, como se diz.

Quando Carol e Tito terminaram seu namoro, Érico passou a se aproximar dela de um modo diferente. Brincava com a possibilidade de ficarem juntos, e Carol se assustou. Estava tudo tão certo, não havia por que mudar nada.

- Querido, nós somos amigos e só.

- Não sei por que você quer colocar essa limitação, é muito melhor se apaixonar por uma pessoa amiga! Com inimigos fica difícil!

Em certo tempo, ele interrompeu as brincadeiras com medo de perder a presença da amiga. Talvez ele mesmo não tivesse certeza do que estava fazendo, essas coisas não são simples de se calcular. Talvez fosse melhor manter tudo como estava.

Carolina voltou-se para Tito com um enorme ponto de interrogação na face. Na falta de alguém mais certeiro, dirigiu-se ao ex-namorado mesmo:

- Você me viu brigar com o Érico?

- Vi sim.

- Ai que bom, Tito, então me salva desta ignorância!

- Ué, eu vi vocês discutindo na pista de dança! Você não lembra?

- Não! Acho que bati a cabeça e perdi alguma coisa da memória recente...

- Esquecer motivos de brigar é ótimo, Carol, deixe assim.

Tito lembrou-a de que bater a cabeça é motivo importante de ir ao hospital na manhã seguinte. Então, abraçaram-se naturalmente e assim permaneceram. Normal. Exceto para Amanda, que, quando teve oportunidade, puxou a irmã caçula para longe de lá.

- O que você está fazendo?

- Nada, ué. Curtindo a minha festa.

- Com o Tito???

- Mais ou menos, né...

- O que houve com o Érico?

- Foi embora há um tempinho já...

- Vocês brigaram?

- Parece que sim, mas não lembro.

- Não lembra???

- Não – e, diante da expressão surpresa da irmã, Carolina fechou o tempo e endureceu a voz – Amanda, você quer me explicar o que está acontecendo?

- Eu não estou entendendo nada, Carol. Pensei que você tinha superado o Tito, pensei que você quisesse ficar com o Érico.

- Com o Érico?! Por que você pensaria isso?

- Porque você me falou!

Tudo mudava a cada dez minutos. O ano novo já nasceu agitado.

Carolina olhou Tito conversando com amigos a poucos metros dela. Encerraram sua relação sem gritos ou maldizeres, simplesmente o amor que eles se tinham era pouco e se acabou. Ninguém sofreu demais por isso. Sendo assim, não era estranho se aproximarem outra vez. A intensidade do sentimento, muitas vezes, é inimiga do relacionamento. Não havia nada demais em quererem ficar juntos.

- Eu te disse que queria ficar com o Érico?

- Sim, Carol, logo depois que ficaram juntos.

- Eu fiquei com o Érico??!

***
Continua...

sábado, 19 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 3)

Cansada dos preparativos, Carolina mal conseguia aproveitar a festa. Havia pequenas providências a tomar ainda, como repor a comida na mesa da ceia, receber os convidados e convidadas, recolher pratos e copos largados pela casa como se a casa fosse autolimpante. “Mas depois de meia-noite, eu não vou fazer mais nada, cada um que se vire”, preparava-se.

Ainda estava preocupada em indicar o banheiro para alguns e a geladeira para outros, quando se deu conta de que já era quase meia-noite. Foi à pista de dança, precisava fazer alguma coisa lá. Viu as pessoas dançando alegremente, algumas já embriagadas, o amigo DJ feliz por agradar. Alguns estavam com os olhos presos nos relógios.

- Daí, de repente, eu caio no chão.

- Eu hein, que história esquisita.

- Amanda... – e fez uma pausa pensativa, escolhendo palavras e recolhendo cacos de lembrança – Eu briguei com o Érico?

- Brigou?!

- Não sei, estou te perguntando!

- Ué, sei lá! Eu não vi não!

E apareceu Augusto a poucos metros dali, gritando por Amanda. Tinha acabado o papel higiênico do banheiro, e ele não sabia onde estavam os rolos.

- Irmã, a festa é minha, era para você se divertir, não trabalhar.

- Relaxa, Carol, cuida desses machucados aí, que jajá eu deixo você trabalhar sozinha de novo.

Amanda sorriu, e foi a única que ganhou um sorriso de volta de Carolina. Já se afastava em direção a Augusto quando a irmã chamou-a de volta:

- Você conhece esse moço, Augusto?

- Não conhecia, mas estou adorando conhecer! – ela respondeu, sorrindo maliciosa.

E saiu com o rapaz para abastecer o banheiro de papéis higiênicos. Que romântico.

Outra vez, Carol olhou para todos os cantos da festa em busca de explicações. Todos dançavam, bebiam, falavam, riam. Olhou para si mesma e viu cortes e hematomas. Sentia as dores da queda mais do que nunca. Foi quando seu ex-namorado se aproximou:

- Você está bem, Carol?

- Acho que sim – ela já não confiava nele o bastante para dizer que não se lembrava do que tinha acontecido.

- Você deveria ir ao hospital – ele aconselhou – Foi uma queda feia, poderiam ter acontecido coisas muito mais graves! Precisa ver se está tudo bem por dentro, se não quebrou nada, essas coisas. Posso te levar, se quiser...

O pânico de não lembrar o que tinha acontecido tinha sido desproporcional à necessidade de verificar em exames se estava tudo bem! Carolina estava prestes a cogitar ir ao hospital com Tito, quando Graça, do alto de seus oito meses de gravidez, veio se despedir.

- Você está bem, amiga?

- Estou, mas está doendo um pouquinho...

- Fiquei preocupada quando caiu, o que houve?

- Mulher, eu não sei. Quando me dei conta, estava no chão.

- Mas por que você subiu ao telhado?

- Então, eu... Eu acho que queria rezar. Não sei bem.

- Você passou por mim como uma flecha, acho que estava indo para lá. Era um pouquinho antes de meia-noite.

- Onde você me viu passando como uma flecha?

- Perto da pista de dança.

Havia umas vinte pessoas dançando, quase todas de copo na mão. A barriga pesava, e Graça afastou-se da pista para olhar de fora. Respirava de plenos pulmões e sorria pela alegria que aquela reunião de pessoas proporcionava: a festa estava mesmo ótima.

 Foi quando Carolina passou por ela, a passos firmes, rápidos e ríspidos, na direção do quartinho dos fundos. Talvez corresse apenas para ir a um banheiro. Teria certeza disso não fossem os olhos lacrimejantes da anfitriã.

- Eu estava chorando?

- Não, mas os olhos estavam úmidos.

***
Continua...

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 2)

- Carol... Desculpe, sua irmã me pediu pra trazer isto.

O rapaz de azul trazia dois sacos plásticos cheios de gelo. Levou alguns segundos para ela entender a função que tais objetos deveriam cumprir naquele momento, mas quando se deu conta, as dores do corpo começaram a esmurrá-la de dentro pra fora.

Ainda um pouco atordoada e sem condições de assimilar informações complexas ou embaçadas, Carolina deixou Érico e saiu caminhando devagar, levando na mão os sacos com gelo. Sentou-se e não sabia se doíam mais os ferimentos ou o desespero de não saber o que houve.

Alguns cantos do corpo latejavam sem apresentar marca alguma. Outros, ela reparou melhor ao sentar, tinham arranhões feios, feridas abertas. Estas são visíveis, você as limpa e trata delas. Passa o tempo, elas cicatrizam, somem, e você observa aquela evolução, aquele processo todo até que a marca desapareça de vez. Até que não sobre nadica de nada pra contar a história do tombo.

As dores que você sente mas não enxerga são as piores. Como algumas das dores que resultaram daquela queda: doem horrores, limitam seus movimentos, geram comportamento autoprotetivo (porque as pessoas não veem marca nenhuma, e talvez, inadvertidamente, toquem no lugar errado). Mas não deixam ferimentos expostos, e fica difícil saber o que está acontecendo ali - lesões camufladas, que podem piorar por não terem sido adequadamente tratadas. Não saber dá medo. A gente se sente impotente e vulnerável diante de algo que a gente nem vê. As feridas que você não enxerga são as piores.

Carolina estava com a cabeça longe, mas interrompeu os devaneios quando notou que o rapaz continuava parado ao seu lado, observando-a.

- De novo você. Por que está me ajudando?

- Porque sua irmã pediu.

- Cadê ela?

- Está na cozinha, repondo a comida da ceia. Muita gente ainda não comeu.

- Ela não devia estar fazendo isso, a casa é minha.

- Mas você se machucou e ela pediu pra eu te trazer gelo, que ela cuida das coisas.

- Quem é você, afinal?

- Eu sou o Augusto. Não se preocupe, não vou contar a ninguém que te vi cair.

O rapaz quis ser irreverente, mas a brincadeira não foi bem-recebida. Carolina nem sorriu, somente desviou o olhar e passou a reparar na própria festa. A presença volumosa de desconhecidos em sua casa tinha sido fator de estresse desde antes de a festa começar – ela não esperava por boa parte deles. Olhava firme a pista de dança improvisada no quintal, via os movimentos e na alegria daquelas pessoas que ali dançavam. Como foi que todas aquelas pessoas estranhas foram parar lá?

Havia muito o que fazer. Era para ser festa pequena, mas tanta gente estava perdida na solidão daquele fim de ano no asfalto, que Carolina precisou ampliar a ideia de festa íntima para caberem as demais almas ansiosas por confraternizar-se com alguém na noite de ano novo. A quantidade de trabalho triplicou proporcionalmente suas preocupações e seu mau humor

- Mulher, se é pra você ficar desse jeito, esquece essa festa e a gente caça o que fazer – recomendava Amanda, sua irmã.

Agora não tinha como voltar atrás. Algumas pessoas já tinham até lhe deixado o dinheiro para contribuir com as compras de bebida e comida. Um amigo seria DJ. A pista de dança não contaria com caixas de som potentes, mas isso não inviabilizaria a diversão. Precisaria arrumar prato pra tudo aquilo de gente, não tem como comer ceia de ano novo no guardanapo.

Na grande noite, chegaram muitos amigos de amigos de alguém que ela conhecia, e ela temeu não haver comida e bebida suficientes. Talvez Augusto fosse um desses. Talvez tivesse notado o quanto ela estava irritada antes de cair do telhado.

Mas o que tinha ido fazer no telhado mesmo?!

- E eu sei lá o que você foi fazer no telhado, maluca – disse a irmã – Você estava meio doida mesmo, deve ter ido ficar longe da bagunça. Jura que não lembra?

- Juro.

- E sua lembrança termina onde?

***
Continua...

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 1)




Cabrum! Puf, puf, tum!

A mulher caiu de cima do telhado, logo após a virada do ano. Nem todos os convidados perceberam, havia o som dos fogos de artifício, que causavam ruídos bem mais potentes, e também havia gritos comemorativos, garrafas de espumante sendo estouradas, votos de felicidades feitos aos berros. Abraços eram distribuídos indiscriminadamente, e ela estava ali no chão, atordoada, os olhos um pouco zonzos, sem sentir as feridas que a queda provavelmente lhe causara. Como que anestesiada, como que procurando entender o que tinha acontecido.

Quem primeiro se aproximou foi um estranho, vestido de azul. Pareceu preocupado com o que viu:

- Você está bem? Quer ajuda, precisa ir pra um hospital?

- Quem é você?

- Eu tô aqui na festa também. Você quer ajuda?

- Tem muita gente nesta festa que eu não conheço. Ano que vem vou convidar só os meus amigos.

Tentou levantar-se sozinha, estava um pouco embaraçada pela situação. O rapaz não se intimidou pela grosseria e tentou ajudá-la. Ela aceitou o braço, apoiou-se para subir, e então, percebeu que mais pessoas começaram a se aproximar, algumas corriam até ela. Eram amigos.

- O que aconteceu?

- Ela caiu.

- Você está bem?

- O que houve?

- Onde você estava?

- Caiu de onde?

- O que você estava fazendo no telhado?

- Feliz ano novo, Carol!

Aquele ajuntamento de gente a fez sentir ainda mais atordoada. Olhava ao redor, via pessoas de caras misturadas, não conseguia um foco: todo mundo estava um pouco confundido nos seus olhos. Dava pra ver que havia conhecidos naquela pequena multidão, mas havia também uma porção de curiosos que ela nunca tinha visto.

- Eu estou bem gente, tá, chega.

Foi obrigada a abraçar todo mundo de feliz ano novo. Não sabia que cargas d’água fazia no telhado. Não lembrava como foi parar lá, não lembrava a queda, só percebeu quando já tinha se chocado violentamente contra o chão. Agora, temia ter quebrado alguma coisa. Uma costela, um deslocamento de qualquer coisa. As dores começavam a se mostrar.

- Feliz ano novo, linda.

Reconheceu o rosto sorridente do amigo. Como se tivesse encontrado uma referência de quem era ela mesma, abraçou-o forte.

- Por favor, me perdoe! – ele pediu, docemente.

- Foi você que me jogou do telhado?

- Ahn? Não!

- Por que está me pedindo perdão?

- Porque você tem toda razão, eu fui ridículo. Foi uma tentativa de autoboicote, sei lá...

- O que você fez, criatura?

Érico afastou-se um passo para trás e olhou Carolina desconfiado. Não encontrou nada em sua expressão que lhe desse pistas de para onde aquela conversa iria.

- Carolina, você está brincando comigo?

Ela não sabia de que ele estava falando. Teria feito alguma coisa má que ela nem notara? Ou será que a queda a fez bater com a cabeça e então perdera a memória?

Ele também não entendia nada.

- Você está querendo dizer que está tudo passado e esquecido?

- Eu estou dizendo que não estou braba com você!

- Então me perdoou?

- De quê, criatura?

Nada fazia sentido.

***
Continua...

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Três Apitos

Eu tenho a sorte de não ser de um lugar só.

Sinto-me do mundo, e do Brasil, como um mundo em si. Olho e meus olhos se enchem de cores, às vezes, elas caem dos olhos em forma de água salgada. Mas é porque nasceram no peito mesmo, e meu peito é de água do mar.

Nasci na maior cidade da América do Sul, uma linda e louca que me ensinou justamente isso: a gostar do mundo. Me deu os olhos que veem e o peito que sente e fabrica palavras e emoções com a mesma força.



Renasci na minha Porto Alegre, de quem tenho saudades todos os dias. Não sei quem eu sou sem essa eu que nasceu lá.


E a minha Brasília amarela, que tem céu infinito e tanta vida e flores no meio do poder e do concreto, que chega a ofuscá-los. Ela fica bem no meio, não imagino lugar melhor pra ressignificar e reordenar caminhos.


De cada uma eu levo uma porção de coisas. Eu tenho três casas. Tenho a sorte de não ser de um lugar só.

"A tua raça quer partir,
guerrear, sofrer, vencer, voltar.
A minha, não quer ir nem vir.
A minha raça quer passar".
(Cecília Meireles)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

De coração de Natal

Ano passado, mais ou menos a esta altura do ano, chovia em São Paulo também. Eu saía de uma reunião – a mesma a que compareci no fim de semana último – e levava companheiros ao aeroporto de Congonhas. Lembro que alguma coisa acontecia na sede da UNE, pois os e as jovens que participavam da mesma reunião que eu dirigiram-se para lá antes mesmo do nosso compromisso terminar.

Voltando do aeroporto, pela Avenida 23 de Maio, chuva fina no pára-brisa, imaginava calada e distraída que seria ótimo ir para casa descansar de dois dias de reunião. Ou ainda, que poderia ligar para algum dos bons amigos para uma boa cerveja, e assim, também descansar dos dois dias de reunião...

Eu não sei bem por que, mas no fim das contas, peguei a Tutoia e segui na direção da UNE. Nem sei se cheguei a tomar a decisão de ir para lá ou se o carro me levou porque quis. Não fui para casa, não fui tomar cerveja. Fui oferecer minha ajuda a companheiros(as) que credenciavam entidades ao tal fórum da UNE. Registre-se: havia uns anos que eu não acompanhava absolutamente nada, atividade nenhuma, nenhuma discussão, do movimento estudantil. Fiz parte da direção da entidade, na pasta de mulheres, de 2003 a 2005. Depois disso, passados poucos meses de acompanhamento da nova gestão, virei adulta e as costas para o movimento que me formou.

Estranho. Mas aquele dia, acabei indo pra UNE. Espírito natalino? Oferecer ajuda? Não sei. Fui para a UNE. Minha irmã estava lá. Fui pra UNE. Sei lá fazer o quê.

Sei que a Avenida Paulista estava inacreditavelmente congestionada. Eu não peguei aquele trajeto, mas muitos chegavam bufando na sede da entidade por conta disso. Lembro que retardei meu retorno daquela imprevista visita exatamente por causa daquele tão anunciado trânsito da Paulista. Eu não entendia o que levava tanta gente à mais famosa avenida de São Paulo num domingo às 22 horas. Mas vai saber. Podia ser um acidente, recapeamento, montagem de palco para a festa de réveillon, semáforo embandeirado. Muita coisa é capaz de causar um baita trânsito em São Paulo. Comum.

Em algum momento, alguém chegou e alertou:

- Ei, fujam dos arredores da Paulista, tá tudo parado lá.

Sim, mas onde estávamos era arredor da Paulista. “Inevitável dirigir-se ao centro fugindo dos arredores da Paulista, criatura esperta”, pensei. E também, àquela altura, essa notícia já não era novidade pra ninguém. Alguém foi mais curioso que eu:

- Mas por que trânsito a esta hora? É domingo e passam das 23h!

- Ah, são as luzinhas de Natal.

Estranhei. Mas um belo rosto surgiu para fazer a seguinte consideração:

- Aqui nesta cidade as pessoas causam trânsito para ver Papai Noel???

Todos riram. De fato, até para mim, paulistana, soava estranho. Não é um fenômeno tradicional, mas acho que era uma tradição se formando... todos os prédios da Paulista se enfeitam, se iluminam, se enchem de bonecos e decorações para marcar a chegada do Natal. E as pessoas vão lá ver... ficam lá, tiram fotos... passam devagar com seus carros para não perder nada... veem Papai Noel sim. Que coisa.

Natal é isso, parece uma histeria coletiva. Odeio os shopping centers entupidos, o trânsito da Paulista iluminada, os especiais de Natal da TV...

Enfim. Lembrei de tudo isso porque hoje encontrei a seguinte matéria no portal UOL: “Turista enfrenta chuva e trânsito para visitar decoração de Natal em São Paulo”. Falava da Avenida Paulista... A primeira coisa que lembrei foi a ironia sutil na voz do belo rosto que estranhou a mobilização pró-Papai Noel na maior cidade brasileira. Alegrou-me o dia lembrar aquela situação, em seu conjunto, porque desde aquele dia esse rosto passou a fazer parte da minha vida.

Em seguida, pensei: “Pôxa, que coisa chata, as coisas se repetem iguaiszinhas todo ano”! Chuva, congestionamento na Paulista, decorações de Natal, Papai Noel, credenciamentos de atividades da UNE... a mesmice é incômoda. É inimiga da espontaneidade.

Mas... no fundo, é assim: os olhos precisam estar atentos, porque, em meio à mesmice, sempre existe uma novidade especial que enche os olhos de quem não se acostumou a olhar sem ver.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Um feliz ano, uma feliz festa

Vou ficar uns 10 dias sem postar... um pouco de férias, não?
Abaixo, meus sinceros votos de que construam um "ano novo" que mereça esse nome, como nos recomendou o bom e velho Drummond.

"Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

(...)
Desejo que você descubra ,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta."

(Victor Hugo)

***
Da Inquieta Esperança

Bem sabes Tu, Senhor, que o bem melhor é aquele
Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.
Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele
Na inquietação feliz do Purgatório.

(Mário Quintana)

***
"E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases lacrimogênios (...)
De tudo se faz canção,
E o coração na curva de um rio"

(Lô Borges e Milton Nascimento)

De novo

- Que horas são???? – levantou e saiu, apressada, cara de quem dormiu demais a ponto de nem lembrar o que perdeu de fazer.

- Um beijo de tchau? – alguém pediu. Sem sucesso. Ela desapareceu e nem um rastro de perfume ficou.

Correu, correu, correu pelas ruas do centro. Era muito cedo. Para ela, muito tarde. Correu, correu, correu. As poucas pessoas que havia na rua olhavam estranhando. Onde diabos aquela moça poderia ir com aquela pressa. Um ou outro velhinho; bêbados recém-saídos de comemorações festivas efusivas; aqueles que precisam mesmo trabalhar – sempre há. Um monte desses nem liga, é um dia comum. Porque é mesmo. A gente é que atribui significados. Se quiser.

Quando ela chegou ao seu destino, mergulhou num banho quase infinito, não fosse pela rapidez. Tava querendo limpar a alma, parecia. Esfregou o que pôde. Mas a alma fica dentro, dizem. Então, ela também bebeu água.

Se jogou na cama, inteira. O corpo ficou todo entregue à cama tão familiar. Sabe quando nenhum ponto do corpo se apóia mais que outro? Assim. Ela tentou não dormir. Respirava fundo, parecia ofegar. Mas era só pela correria de minutos antes. Os olhos ficavam fixos em um ponto qualquer do quarto. Vidrados. Daí, acabou adormecendo.

A questão é que ela não queria ver a manhã chegar, nem clarear. Queria anular essa parte do dia, como se fosse possível pular uma parte da vida. De algum modo, conseguiu. Estava fugindo loucamente de lembranças estranhas, difusas e ruins. Ela não tinha certeza, mas pareciam ruins. Um passarinho que saiu voando atrás dela desde o apartamento do rapaz com quem dormiu – já nem lembrava o nome – perseguia anunciando alguma coisa. Eram as lembranças. Mais um ano que acabou. Outro começou. Ela não viu quando aconteceu.

Lembranças ruins de saudades. De medo de começar tudo outra vez. Ou de nem precisar começar. Tem vezes que a pessoa percebe que a vida ta indo sozinha, sem ninguém conduzir. É quando não dá mais vontade de comemorar o ano novo.

Ela preferia comemorar o ano velho mesmo... nem aquele que se acabava, outro, um que passou há mais tempo. Alguma coisa ficou perdida lá. Não sabia como se livrar dessa sensação. Então, era melhor não ver o dia raiar. Ela nunca tinha fugido assim antes. Queria a noite, porque no escuro ninguém enxerga.

Às vezes é bom isso de não enxergar. Adormecida ali, ela não enxergava, mas no sonho sim. Apareciam imagens confusas na cabeça, como numa retrospectiva das coisas que ela nem sabia que viveu. Umas cenas desconexas. Vontade de sentir de novo gelo no coração, arrepio na pele, tremelique na barriga. Vontade de sentir gosto de brigadeiro na boca. De só saber as horas pela posição do sol no céu. Vontade de apertar um cachorro bem peludo e manso. Vontade de dormir e nem lembrar de acordar, e quando acordar, nem lembrar que dormiu.

Ela acordou.

- Feliz ano novo, guria – o passarinho que a perseguiu a saudou também, e estava sorrindo.

Ela levantou e tomou outro banho. Os olhos pareciam procurar alguma coisa. A boca acabou sorrindo. Tava leve ela. Dessa vez sim, o ano ia começar.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Papai Noel às avessas

Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender,
teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente da república de celulóide.

Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um gato comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

(Carlos Drummond de Andrade)

***
Feliz Natal pra quem é de Natal, feliz festa pra quem é de festa.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Ano acabando

De repente o ano já tá acabando. E você só percebeu agora. "Caramba, os presentes!", lembra-se, malfadada. "Odeio shopping center", é pensamento que se sucede. São Paulo tá quente, mas tá escura, ninguém sabe por quê. Os meteorologistas sabem, mas a explicação deles não queremos.

Essa percepção tardia do fim do ano traz sempre a nostalgia também tardia. Porque as luzinhas de Natal já estão piscando há algum tempo. Mas eu só percebia quando enfrentava um trânsito do cacete na Avenida Paulista por causa das pessoas que param pra ver (!). E já acabou o curso de espanhol, tem bares e lojas que já não abrem, a Câmara tá em recesso (embora eu siga aqui). E eu só percebi o fim do ano agora.

Domingo, o elevador do prédio quebrou de novo. Maldito ano que não acaba. Sabe quando você vê, mas não sente? Eu não tenho espírito natalino... mas agora é que tá desabando o fim do ano na minha cabeça. Ele sempre traz nostalgias. Este ano traz um alívio especial junto - "vai logo". E dá uma peninha, no fundo, de não ter sentido esta sensação de fim de ano por mais tempo.

Olha, eu, assim como Drummond, não deveria lhes dizer. Mas esta lua e este conhaque botam a gente comovida como o diabo...