sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 2)

- Carol... Desculpe, sua irmã me pediu pra trazer isto.

O rapaz de azul trazia dois sacos plásticos cheios de gelo. Levou alguns segundos para ela entender a função que tais objetos deveriam cumprir naquele momento, mas quando se deu conta, as dores do corpo começaram a esmurrá-la de dentro pra fora.

Ainda um pouco atordoada e sem condições de assimilar informações complexas ou embaçadas, Carolina deixou Érico e saiu caminhando devagar, levando na mão os sacos com gelo. Sentou-se e não sabia se doíam mais os ferimentos ou o desespero de não saber o que houve.

Alguns cantos do corpo latejavam sem apresentar marca alguma. Outros, ela reparou melhor ao sentar, tinham arranhões feios, feridas abertas. Estas são visíveis, você as limpa e trata delas. Passa o tempo, elas cicatrizam, somem, e você observa aquela evolução, aquele processo todo até que a marca desapareça de vez. Até que não sobre nadica de nada pra contar a história do tombo.

As dores que você sente mas não enxerga são as piores. Como algumas das dores que resultaram daquela queda: doem horrores, limitam seus movimentos, geram comportamento autoprotetivo (porque as pessoas não veem marca nenhuma, e talvez, inadvertidamente, toquem no lugar errado). Mas não deixam ferimentos expostos, e fica difícil saber o que está acontecendo ali - lesões camufladas, que podem piorar por não terem sido adequadamente tratadas. Não saber dá medo. A gente se sente impotente e vulnerável diante de algo que a gente nem vê. As feridas que você não enxerga são as piores.

Carolina estava com a cabeça longe, mas interrompeu os devaneios quando notou que o rapaz continuava parado ao seu lado, observando-a.

- De novo você. Por que está me ajudando?

- Porque sua irmã pediu.

- Cadê ela?

- Está na cozinha, repondo a comida da ceia. Muita gente ainda não comeu.

- Ela não devia estar fazendo isso, a casa é minha.

- Mas você se machucou e ela pediu pra eu te trazer gelo, que ela cuida das coisas.

- Quem é você, afinal?

- Eu sou o Augusto. Não se preocupe, não vou contar a ninguém que te vi cair.

O rapaz quis ser irreverente, mas a brincadeira não foi bem-recebida. Carolina nem sorriu, somente desviou o olhar e passou a reparar na própria festa. A presença volumosa de desconhecidos em sua casa tinha sido fator de estresse desde antes de a festa começar – ela não esperava por boa parte deles. Olhava firme a pista de dança improvisada no quintal, via os movimentos e na alegria daquelas pessoas que ali dançavam. Como foi que todas aquelas pessoas estranhas foram parar lá?

Havia muito o que fazer. Era para ser festa pequena, mas tanta gente estava perdida na solidão daquele fim de ano no asfalto, que Carolina precisou ampliar a ideia de festa íntima para caberem as demais almas ansiosas por confraternizar-se com alguém na noite de ano novo. A quantidade de trabalho triplicou proporcionalmente suas preocupações e seu mau humor

- Mulher, se é pra você ficar desse jeito, esquece essa festa e a gente caça o que fazer – recomendava Amanda, sua irmã.

Agora não tinha como voltar atrás. Algumas pessoas já tinham até lhe deixado o dinheiro para contribuir com as compras de bebida e comida. Um amigo seria DJ. A pista de dança não contaria com caixas de som potentes, mas isso não inviabilizaria a diversão. Precisaria arrumar prato pra tudo aquilo de gente, não tem como comer ceia de ano novo no guardanapo.

Na grande noite, chegaram muitos amigos de amigos de alguém que ela conhecia, e ela temeu não haver comida e bebida suficientes. Talvez Augusto fosse um desses. Talvez tivesse notado o quanto ela estava irritada antes de cair do telhado.

Mas o que tinha ido fazer no telhado mesmo?!

- E eu sei lá o que você foi fazer no telhado, maluca – disse a irmã – Você estava meio doida mesmo, deve ter ido ficar longe da bagunça. Jura que não lembra?

- Juro.

- E sua lembrança termina onde?

***
Continua...

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