quinta-feira, 24 de abril de 2014

Jô Soares e a naturalização pseudoengraçadinha do machismo: ô novidade...

Jô Soares pode já ter sido um cara razoável algum dia. Mas se foi, deixou de ser "há horas", como se diz no Rio Grande do Sul. Hoje eu até evito assistir suas entrevistas, que são cada vez mais imbecilizadas e sem graça, pra me poupar da vergonha alheia.

A última vez que eu tinha visto faz tanto tempo que eu nem lembro quando. A entrevistada era a cantora Thaís Gulin, a quem ele constrangedoramente queria induzir a falar de sua relação com Chico Buarque - sem sucesso.

Mas através de uma matéria da capa da UOL, cujo link está abaixo, soube da entrevista de Jô com uma bandeirinha chamada Maíra Americano Labes. Consta da matéria que a moça "foi alvo de grande polêmica no último sábado após ter sido chamada de 'gostosa' pelo técnico Celso Teixeira, do Juventus, em partida do Campeonato

Catarinense". Eu, militante feminista e pesquisadora, considero uma violência que uma mulher, no exercício da sua profissão, seja tratada dessa forma. Particularmente, causam-me repulsa aqueles homens que abordam dessa forma grosseira as mulheres em bares e boates. Não é porque eu estou lá que estou exposta a visitação. Imagine no caso dela, que estava trabalhando. É um modo clássico e recorrente de desqualificá-la. E pelo que soube da entrevista, a própria Maíra contextualizou o "elogio" como agressão.

Aí chega o não menos cretino do Jô Soares, com todas as línguas que ele fala e seus livros publicados, e diz que o técnico "não estava tão errado assim". OI?! Não sei se Jô, seus idiomas e seus livros já ouviram falar em MACHISMO. Vai ver ele acha suas "piadas" suficientemente engraçadas para livrar-lhe da compreensão de que a fala dele encoraja SIM esse comportamento repugnante, por naturalizá-lo. As mulheres que reclamam são mal-humoradas, mal-amadas, não têm senso de humor. E assim, muitas mulheres não denunciam as violências que sofrem e ninguém sabe por quê, né.

Mas calma, pode piorar. A matéria relata o seguinte diálogo:

Jô: “Mas e se o juiz pergunta pra você: 'ô, gostosa! Foi impedimento ali?'''
Maíra: “O juiz é autoridade máxima dentro do campo''.
Jô: “Juízes, aproveitem!''

Assédio sexual é crime. O artigo 216-A da lei 10.224/2001 diz: "Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício, emprego, cargo ou função". A pena prevista é de detenção de um a dois anos. Mas vai ver que isso está escrito numa das línguas que o Jô não entende.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Mulheres, música, amizade e força pra todas!

Outro dia vi Roberta Sá num programa de TV, divulgando o show que a Nívea está realizando em algumas capitais, em homenagem ao samba, estrelando: ela, Alcione, Martinho da Vila e Diogo Nogueira. Lá pelas tantas, ela demonstrou um misto de assombro com encantamento ao falar do amor que Alcione sente ainda hoje por Clara Nunes. "Ela sente saudades, fala com carinho", disse. Devia ter parado por aí, porque depois completou: "E olha que é difícil cantoras se gostarem". Riu.

Bastante imprudente o comentário, porque minutos depois ela foi convidada a falar de cantoras/compositoras da sua geração. Então ela não gosta das mulheres que mencionou?

Mais que imprudente, o comentário foi infeliz. Eu, particularmente, rejeito aquele senso comum de que as mulheres estão predispostas a não se gostarem, a disputarem espaço e olhares entre si. Creio que a sociedade capitalista-patriarcal em que vivemos busca nos jogar aí, e legitimar esse processo é o pior a se fazer.

                                                                      Clara e Alcione

Clara Nunes era muito amiga de Alcione (não é à toa que é a voz da Marrom na versão original de "Um Ser de Luz", samba assinado pelo então marido de Clara, Paulo Cézar Pinheiro, junto com dois grandes amigos dela, João Nogueira e Mauro Duarte). E Clara tinha uma relação carinhosa com muitas cantoras do seu tempo, como Elis, por exemplo - que costumava ficar em sua casa quando ia trabalhar no Rio.

Carmen Miranda ajudou a alavancar a carreira de sua irmã, Aurora, que chegou a atingir alto nível de "notabilidade" (foi ela que lançou uma das marchinhas mais conhecidas e mais eternas, "Cidade Maravilhosa"). As duas se apresentaram juntas e sempre foram grandes amigas. Carmen tinha outras grandes amigas no meio, como Elisinha Coelho.

                                                                    Aurora e Carmen

Não é difícil cantoras se gostarem, coisa nenhuma. Especialmente porque este país é repleto de cantoras que, além de belas vozes, têm energia, personalidade e estilos próprios. Adoro ouvir Teresa Cristina e Mariene de Castro e saber que faço parte de uma geração que produziu essas (entre várias outras!) preciosidades. Gosto também de ouvir as vozes de Roberta Moura e Venise Borges (cantoras da banda Mariposas, de Porto Alegre) se combinando e se completando; de ver Pâmela Amaro e Thá Gonzalez (vocalistas do bloco Turucutá, também de Porto Alegre) comandando a festa de milhares de pessoas; de ouvir em Fortaleza minha cantora predileta, Marina Cavalcante, com sua voz que parece uma flauta; do jeito da Ana Reis de cantar sorrindo (que, quando eu cheguei em Brasília, foi uma das pessoas que mais me deu dicas de como encontrar o caminho das pedras)... É muita mulher talentosa neste mundo da música!

Roberta Sá que me desculpe, mas amizade e solidariedade são fundamentais. Para todas as cantoras deste país que se gostam, eu ofereço a alegria comovente de Sá Marina, na força da voz de Elis.


quarta-feira, 2 de abril de 2014

Trinta e um anos sem CLARA NUNES

Eu não sabia que era hoje, Clara. Não lembrava, sei lá. Prefiro guardar a data do seu nascimento, em 12 de agosto de 1942.

Eu não sei quem eu sou sem você, mesmo nunca a tendo visto em vida. Mesmo sabendo que me apareceste como um fantasma do bem, me mostrando o samba, me dando um jeito feminino de cantar forte. E como disse o nosso amigo João, tirando a preta do cerrado, pondo rei Congo no Congado...

Lembro como ontem ouvir "O Mar Serenou", uma década atrás, e pensar... Tem espaço pra ser mulher nessa história de samba. Lembro que, minutos após te ouvir, fui à beira do mar testar se eu poderia ser sereia. E graças a você, eu soube que eu sou sim, sereia.

E cada vez que o vento vem, eu peço que me traga um pouco de você... Se não sua voz, então, que me traga o que você faria, porque nada foi fácil pra você, como não é pro povo brasileiro. Mas você é guerreira, como as mulheres brasileiras são. Você sempre foi.

E, Clara, você foi Clara. Clara ficou espalhada como se tivesse sido cinzas que teu vento levou pra onde quis. Há você em cada canto deste país, onde se canta samba, onde se celebra nossa história... Tua voz ecoa que nem grito que lançaste pra demarcar justamente isso: a nossa história, que cavaste suave pra fazer brotar onde tinha que ser. Eu fui. Eu sou.



Clara, querias tanto ter filhos... Isso nunca lhe aconteceu pela biologia. Mas Clara, minha Clara, linda do meu coração: tiveste muitos filhos e filhas por este Brasil. Estamos aqui, sem seu sobrenome, pra reproduzir teu legado. Porque, para nós, é uma honra continuar.

Não tem um dia em que eu não pense... Como seria tudo isto se você estivesse aqui? Mas tu não és tristeza, nem frustração... Tu és a força da nossa bravura, tu és a beleza da nossa cultura, tu és a voz que vive pulsante em cada mulher, em cada sambista, em cada musicista... Para a gente fazer nossa cultura ser eterna, ser reinante sobre tudo... Como és tu, filha da rainha dos ventos, que, nos meus sonhos, está sempre em cada sopro de ar que vem na minha direção.

Obrigada por ter me levado ao lugar de onde eu vou contribuir mais pro mundo ser melhor. E se o mundo me diz não, meu sim vem de ti. Porque você vive sempre com a gente. E a gente fica a lembrar, vendo o céu clarear, na esperança de vê-la...