quarta-feira, 24 de abril de 2013

Do sadismo e da mesquinhez dos seres humanos


ou

Por que os gregos não criaram mais criaturas mitológicas?


A pessoa acorda para um dia comum. Trabalhar, almoçar, voltar ao trabalho, sair um pouco mais cedo para um compromisso. Fazer o quê, data e horário de compromisso é coisa que não se escolhe muito.

- Vamos adiantar a reunião, porque a Alessandra tem compromisso às 16h.

- Eu acho que o compromisso dela é 15h45min. - um colega ri.

É, não tem como esconder. Data e horário de jogo da Champions League é coisa que não se escolhe muito.

A pessoa passa a reunião olhando o relógio. Cada comentário desnecessário, cada mal-entendido que precisa ser desfeito, cada explicação mais aprofundada incomoda a pobre alma. "Não dá pra deixar as orientações por escrito?", pensa, já quase com taquicardia.

- Vai lá, Ale, corre pro teu compromisso.

A pessoa beija o rosto do amigo compreensivo e voa.

Paixão é coisa que não se escolhe muito. E por que a paixão da pessoa, que é consumida de modo individual, vivenciada com as dores e as delícias de ser quem se é, tão quietinha, precisa ser combatida por infinitas e impiedosas metralhadoras, que visam tão somente a dilacerar os sentimentos da pessoa, a intensificar a chaga aberta em seu pobre coração blaugrana?

O Barcelona tá lá do outro lado do oceano. Não disputa o Campeonato Brasileiro, a Copa do Brasil, nem a Libertadores. Ninguém tem um vizinho barcelonista que incomoda quando seu time perde. Mas os seres humanos são perversos. Pior que cruzamento de coiote, urubu e vilão da Disney. E sendo assim, lá vem uma mensagem de SMS. Vêm provocações via twitter. Alguém lembra de citar num comentário jocoso no facebook. Tem até quem telefone. Piores são aqueles que te encontram na rua com o rosto estampado por aquele típico riso zombeteiro, bem conhecido dos apaixonados e apaixonadas por futebol.

Tem quem condene a pessoa por sentir paixão por uma equipe do além-mar. Foda-se. Sempre fui internacionalista.

Tem quem tente converter a pessoa a ter um time só no mundo inteiro: a monogamia futebolística. E eu me pergunto o que a criatura tem a ver com a minha vida.

Tem quem vá com a pessoa assistir a N jogos do Barça, e na hora do aperto, aquela hora em que a pessoa mais precisa de um abraço, de carinho e compreensão, o ser humano mesquinho junta-se aos inimigos e faz a pergunta de todos os outros, ignorando anos de amizade leal: "mas que chocolate, hein?!".

Tem gente que nunca assistiu a uma partida de futebol, mas não perde a oportunidade de ironizar assim: "o que aconteceu com seu time?".

Talvez a mitologia grega desse conta de explicar esses seres híbridos, que são metade humanos metade urubus, ou metade coiotes.

E a mim, que me resta? Praguejar contra a humanidade? Virar ermitão? Desligar o telefone para sempre e viver esta vida offline? Virar a secadora oficial de todas as equipes deste mundo véio sem porteira?

Já sei. Empinar o nariz e, com muita serenidade, eliminar da minha vida - não necessariamente fisicamente - quem ousar me tirar deste momento de introspecção, reflexão filosófica sobre o sadismo e a mesquinhez humana, e meditação raribô rumo à paz de espírito. Preciso ser coerente com minha opinião política pelo desarmamento.

Em resumo, esta humilde crônica serve apenas para responder, de uma só vez, a todas as pessoas que, sarcasticamente, cobraram-me explicações, justificativas ou comentários sobre a derrota do Barça ontem.

Isso é porque eu sou muito elegante e altiva. Caso contrário, eu poderia ter, somente, escrito em caixa alta: VÃO PRO INFERNO.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Das memórias que faltam


Eu esqueço as minhas letras
Lindos poemas, perdi
Calaram-se anônimos
No escuro de um desktop

Mas, amor, quando eu me lembro
Sou memória pura do que virá
Deja vus que se sucedem
Me antecipam você lá
Em todos os poemas que ainda vou escrever
Mas ainda nem sabia.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Anoitecer


Em cada veia, a noite ardia
No negro vestido, as flores
Para inventar alegria
Para inventar bons motivos
De desfazer-se das dores
E os gestos de desconcerto
Ao peito um aperto trazia.
Por que eu sabia?

Em azul marinho o céu explodia
Estrelas saltavam do alto
Como se dessem notícias
E andando distraída
O tempo lhe deu breve hiato,
Contra o peito, um desacato:
Emoções despercebidas.
Por que eu sabia?

A madrugada reluzia
Em corpos que se fizeram lar
Da brisa e da ventania
A carícia da areia e do mar
E em meio à água e à terra
Transbordava a primavera
Da pergunta que ele fazia:
Por que eu sabia?

Minguante, a manhã invadia
Um recinto tomado de ar puro
Os raios secaram a apatia
Mas nunca romperam os muros
Na sombra de tão triste olhar
Que não se deixou levar
Pela luz do novo dia.
Por que eu sabia?

Mas chegou a tarde fria
E observou, como ausente
Ansiedade, medo, euforia
Chocarem-se violentamente
Como que desgovernados
Antes que o sol se escondesse
Sob vãs filosofias.
Por que eu sabia?

E, de novo, anoitecia.
O riso tornou-se refém
Do escuro da melancolia
Em chamas que se esvaíam
Em lágrimas que se consumiam
Sem reportar a ninguém
O feitiço que se desfazia.
Porque eu sabia.

A mágoa


A mágoa
A mágoa
A mágoa

Por que diabos não chove,
Não escorre que nem água?

Como quando nuvens escuras e brabas,
Depois da chuva,
Dão lugar ao céu azul...

A mágoa não chove
Não escoa
Não deságua

A mágoa não molha,
A mágoa só salga.

A mágoa não se esvai
Para não formar o rio
Que separa duas casas.

Mas ali, enquanto fica,
Faz terra seca
Onde nada cresce
E a água não chega.

E quando sai, é pelo ar
Como fumaça
Que ninguém viu como entrou,
Nem sabe como sumiu,
Mas sabe, sem querer,
Que nada fica em seu lugar.

domingo, 7 de abril de 2013

Em defesa das pessoas

As grandes palhaçadas disseminadas pelos meios de comunicação de massa são produto de uma lógica calculada, que tem como impulsionadora a ânsia pela venda, não a satisfação de uma demanda social.



Ninguém está imune à possibilidade de reproduzir o senso comum. Por mais que se julgue letrado e independente, nasceu e cresceu no mesmo mundo em que nasce e cresce o senso comum e as demais pessoas que habitam o planeta.

O senso comum faz parecerem imutáveis coisas que não deveriam ser naturalizadas. Existem centenas de milhares de exemplos. Os mais evidentes são os que relacionam senso comum e meios de comunicação de massa - sim, porque estes fortalecem e potencializam o senso comum, justamente contribuindo para sua naturalização.

Um que eu estou farta de ouvir de pessoas das mais diversas origens e contextos sociais é a ideia de que a mídia oferece qualidade de merda porque as pessoas querem isso. Tipo: o sensacionalismo e a exploração absurda tanto de tragédias coletivas quanto de vidas privadas existem porque "as pessoas" demandam. Vejamos.

Ponho-me em defesa desses seres anônimos, entes coletivos massificados, quase coisificados por quem se julga imune ao senso comum e porta-voz do olhar além do alcance.

Eu nunca soube que um SAC recebeu reclamações de telespectadores, ouvintes ou leitores famintos por manchetes sangrentas que não lhes foram oferecidas. Nunca vi manifestações de pessoas ávidas por informações da vida privada das celebridades que não lhes foram disponibilizadas. Nunca ouvi, numa mesa de boteco ou fila de padaria, alguém reclamar que não sabe o que aquela pessoa vítima daquele crime tão noticiado jantou três noites antes do fatídico dia.

Tsc tsc. A mídia cria e executa o tal do sensacionalismo e ela mesma justifica com: "é isso que as pessoas querem". Não podemos comprar esse discurso. Não podemos supor que todo o povo é idiota ou sádico.

Eu chego a compreender que haja certa curiosidade, por parte da média das pessoas, pela vida privada de quem se expõe através da mídia: se namora, se casou, o que fazia antes da fama, que música ouve. E isso não justifica a existência de papparazzis enfurecidos que perseguem celebridades pelas noites. Eu compreendo integralmente a comoção que se abate sobre toda uma nação quando de uma tragédia das proporções daquela recente em Santa Maria, por exemplo. As pessoas sabem se colocar no lugar dos outros. Imaginam-se pais, mães, irmãos, namorados, amigos. E isso não justifica a exploração da vida privada de famílias, do sofrimento de pessoas próximas, o choro diante das câmeras, a exposição desenfreada das próprias vítimas. Nada justifica, por exemplo, a tal fotografia do apartamento do Chorão, divulgada pouquíssimo tempo depois de sua morte, violando a privacidade de sua família e amigos, desrespeitando a memória dele (gostem do cara ou não) e passando de todos os limites do aceitável. Se a foto nunca tivesse sido divulgada, "as pessoas" não a pediriam ansiosamente.

A foto do apartamento de Chorão não é notícia. Não é essencial para ilustrar o acontecimento. Não exibe fatos novos, não é a prova conclusiva de nada - e ainda se fosse, sua reprodução em massa continua absolutamente questionável. É sensacionalismo puro. É desrespeito, é ânsia por vender seu peixe custe o que custar. Da mesma forma que cutucar uma pessoa que acaba de sofrer uma perda irreparável, fazê-la perder as estribeiras diante de milhões de desconhecidos, provocar seu pranto, sua emoção, isso não é notícia, isso não é essencial para compreender o evento, é desnecessário para dar a dimensão da tragédia. É sensacionalismo puro, é desrespeito, é o nível mais baixo aonde um profissional da notícia pode chegar. Não importa em que ele se formou, nem se fez aulas de ética e legislação.

Esse tipo de situação não é promovida pelo nada. Não se espalha pelo ar. São pessoas, outras, que encaminham essas ações. Essa é a questão. Eu me sinto ofendida como consumidora da mídia. E me sinto envergonhada como jornalista.

Não é justo responsabilizar "as pessoas". A responsabilidade é de quem produz e expõe esse conteúdo. "Ah, mas tem audiência". Não importa. Aposto que também tem a audiência de muitos que se indignam com a situação. Eu poderia replicar com: muita coisa de qualidade tem audiência. "As pessoas" gostam do que tem qualidade. Lembro-me, por exemplo, da época em que a TV Cultura tornou-se referência de programação infantil. Não foi porque meia dúzia de mestres e doutores lhe deram esse título. Foi porque "as pessoas" lhe davam a tal da audiência.

Não é um ou outro canal de TV. Não são os jornais impressos chamados "populares". Não é um raro portal de internet. É um comportamento generalizado - infelizmente -, verificável em veículos de comunicação dirigido a todos os extratos sociais, produzidos em todas as regiões do país, detentores de largo ou curto poder de alcance. Ou seja: as maiores emissoras de TV, os jornais de maior tiragem, etc etc etc, não só não escapam a essa lógica, como, muitas vezes, são os principais "alimentadores" desse comportamento-urubu, cuja principal razão de ser é a seríssima intenção de conquistar anunciantes.

Mais um motivo para se tratar como urgente a regulamentação da mídia e, principalmente, entender que nada é por acaso ou por culpa "das pessoas": empresas de comunicação são empresas; e desejam "liberdade" indiscriminada para fazerem o que bem querem, sem que a "liberdade" delas termine onde começa a sua. Isso NÃO é natural e pode SIM ser discutido. Censura é nos proibir de questionar.

"As pessoas", ainda que consumam essa merda toda, não podem ser responsabilizadas por alguma coisa cuja produção e veiculação em nada depende de sua ação.

sábado, 6 de abril de 2013

Categoria


Era tudo uma questão de classificação. A oração tinha que ser coordenada ou subordinada. Tinha os adjuntos, que podiam ser adnominais. Os pronomes, então, podiam ser um monte de coisa. Meu Deus, pra que tanta nomenclatura?!

Sei lá, nomenclaturas ajudam a classificar. Pra quê? Pra você poder organizar em categorias... Pra quê? Pra melhor poder estudar, encontrar pontos de convergência, as diferenciações. Sei lá. Porque sim.

Só que seres humanos dispensam esse tipo de nomenclatura. Não é razoável buscar uma característica comum e agrupar em torno dela todos os seres humanos que a possuam. É menos razoável ainda presumir que as pessoas precisam ou gostam dessas classificações. Nossa, imagina, eu jamais colocaria rótulo em alguém? Ah é?

Lembre-se de que nem sempre a gente percebe que está rotulando alguém. Que nem sempre se faz isso com má intenção. Mas eu imagino que os seres humanos nem sempre - ou não o tempo todo - gostam de serem olhados pelo prisma do que têm de comum, mas sim, pelo que os(as) diferencia em relação aos demais.

A pena da classificação de pessoas é correr o risco de torná-las enlatados previsíveis e desinteressantes. Essa postura rouba-nos o encanto de sermos surpreendidos(as). Rouba a graça do mundo. Vamos, sem medo, ver o que é que há atrás de cada máscara de Carnaval, de cada escudo de autoproteção, de cada desejo reprimido e em olhos que torcem para serem lidos com atenção, interpretados como gostariam. A ânsia de nomear tudo antecipa e estraga muita coisa...