segunda-feira, 31 de maio de 2010

Apenas mais uma...

Como mulher e torcedora de futebol, como uma pessoa que gosta de ir ao estádio, torcer pelo meu time, torcer contra o time dos outros... falar de futebol no bar, vestir a camisa... infelizmente (ou não), eu insisto em me indignar.

O futebol é terreno propício para propagação do machismo, do racismo, da homofobia, da intolerância. Não dá pra nós - pelo menos nós, que somos de esquerda - fingirmos que o estádio é um mundo à parte, onde tudo tem perdão. "Ah, no estádio vale, não vale?". Não, não vale. Eu não canto musiquinha machista e/ou homofóbica, e ainda me irrito com quem canta. Dá vontade de nem participar mais. Eu não acho "frescura" ou "exagero" as denúncias de racismo dentro de campo. E acho um absurdo quem ache que, simplesmente, "isso faz parte do jogo".

Futebol NÃO é coisa de homem. Ninguém nunca convenceu a grande Marta disso, por exemplo. Ou as tantas repórteres de campo, apresentadoras, comentaristas que têm surgido. Então, o mínimo que podemos fazer é exigir RESPEITO.

Eu mesma já escrevi muito aqui sobre o assunto. É só clicar em futebol, na barra aqui do lado direito. Porque, infelizmente, sempre tem assunto. Hoje, quem deu o assunto foi o volante da seleção, Felipe Melo. Na esteira das críticas à bola da Copa do Mundo, disse ele: "A outra bola é igual a mulher de malandro: você chuta e ela continua ali. Essa de agora é igual Patricinha, que não quer ser chutada de jeito nenhum".

Alguém precisa dizer pro Felipe Melo que mulher não é pra ser "chutada". Que mulher não é objeto, para poder ser bola. Que chutar no sentido literal é violência contra a mulher, e chutar no sentido figurado é de uma misogenia inacreditável. A primeira dá cadeia. A segunda devia dar também.

Espero que o ouvido das pessoas tenha doído ao ouvir isso. Ou que os olhos tenham ardido ao ler. E que as pessoas tenham se indignado, e que as mulheres tenham se sentido ofendidas. Chega de aceitar. Isso sim é intolerável.

Pena que tem gente que pode falar na TV e ser ouvido e aproveita esse tempo com uma asneira dessas. Tanta gente com tanto pra dizer e tem que permanecer calada. Que lástima.

Que merda, hein, Felipe Melo?

terça-feira, 25 de maio de 2010

Engodo

Já pedi pro meu amigo Rodolfo Vianna, duas vezes, me deixar colocar um conto dele neste humilde blog. Não obtive autorização, mas a razão disso até que era justa (não vou contar). Desta vez, consegui. Um poema dele que se parece muito com o que eu postei ontem, que era de minha própria autoria. Pura coincidência. Deliciem-se.

Engodo

(Rodolfo Vianna)

A pedra atirou
ao alto
e dela queria pássaro.

Tácito engano: na queda
viu que pedra era, e a pedra
que voar não podia.

Num dia a pedra lançada
perdeu-se e não tocou o
chão:
não viu se voou, se piou não ouviu
assumiu a rota da invernada
debandou em tremular de asas
não soube e coube a mágoa
- era pedra a filha da puta?

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O foguete e o passarinho

De repente, quando olhou pro céu
O foguete não era foguete
Era um passarinho
E estava bem longe dele...
Não podia carregar nada em si, exceto o que já tinha.

Pensou que se enchesse o passarinho com as coisas que queria pôr no foguete
O passarinho não ia voar.
O passarinho ia morrer.

Ora, por que deixaste de ser foguete?
- Seus olhos que se enganaram, senhor.
Meus olhos foram enganados por ti.

E depois da frustração de não poder exportar suas mágoas pro espaço
Teve vontade de ser um passarinho que nem aquele.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Estatuto do Nascituro: Mais uma aberração a ser combatida

Não bastassem todos os ataques cotidianos à dignidade das mulheres, neste 19 de maio, tivemos mais uma lamentável notícia. Os deputados da bancada fundamentalista conseguiram que passasse pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados uma aberração nomeada “Estatuto do Nascituro”, que visa, entre outras coisas, a revogar direitos conquistados pelas mulheres e aprofundar a realidade de dominação que as submete, inclusive, a risco de morte e de sequelas todos os anos.

O tal projeto de lei elimina os casos de aborto previstos atualmente em lei: quando há risco de morte para a mãe e quando a gestação é decorrente de estupro. Sem contar que o texto abre brecha para a proibição, inclusive, de algumas medidas contraceptivas.

Não há nenhuma novidade nisso. O fundamentalismo religioso que procura impor sua crença a todos, desrespeitando o princípio democrático e republicano de laicidade do Estado e mesmo o direito à liberdade religiosa, é o mesmo que conhecemos em uma série de oportunidades, sempre atentando contra a vida das mulheres, seus direitos e sua autonomia. Muitos ataques são desferidos contra a luta das mulheres pelo mesmo e conhecido grupo de parlamentares que visam a mantê-las subjugadas.

Propostas absurdas como a apelidada de “bolsa-estupro”, por exemplo, por oferecer dinheiro para que as mulheres vítimas de violência sexual não interrompam uma gravidez daí decorrente, sempre pipocam com o intuito de retroceder nos direitos das mulheres. Mas a cada vez, os fundamentalistas se superam e, com criatividade impensável, propõem mais mecanismos para impedir que as mulheres sejam seres humanos livres e autônomos. Aproveitam a proximidade do período eleitoral para rebaixar o nível dos debates, para nos condenar a tomar decisões sobre a vida das mulheres a partir de uma crença que é de alguns, mas eles querem impor a todos.

Sempre defendemos e defenderemos o direito à liberdade religiosa, liberdade de culto e de crença, mas não aceitaremos que Igreja nenhuma criminalize as mulheres para evitar que exerçam sua autonomia. O corpo e a vida das mulheres não é um objeto a ser controlado e vigiado, que possa ser objeto de tutela nem da Igreja, nem dos juízes, nem do Estado.

Portanto, retroceder a esse ponto, obrigar mulheres vítimas de violência sexual a levarem essa gestação a cabo, inviabilizar a interrupção de uma gravidez que traga risco de morte à mulher, é inadmissível e incabível. É uma crueldade que não tem tamanho. Não podemos tolerar a violência contra as mulheres. Criminosos são os agressores!

Como resposta, mais uma vez, vamos aprofundar nossa luta em defesa da legalização do aborto e contra a violência contra as mulheres. Sabemos que as chances de uma aberração como essa passar impunemente pela Comissão de Constituição e Justiça são mínimas. Também sabemos que muitos companheiros e companheiras da Igreja estão conosco na nossa luta, e que a opinião dos fundamentalistas está distante de ser unanimidade entre os religiosos. Neste momento, queremos contar com esses e com companheiros e companheiras parlamentares, solidários à luta das mulheres, que querem construir conosco um mundo de igualdade, liberdade, justiça, solidariedade e livre de qualquer tipo de opressão.

Alessandra Terribili, integrante da Secretaria Nacional de Mulheres do PT.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Hipocrisias politicamente corretas

"Prioridade se verifica por investimento, não por discurso".

Enquanto o senso comum alimenta a ideia de que as mulheres já conquistaram a igualdade, e que tudo o que se diz em contrário é histeria – a despeito dos tantos dados que há por aí -, muitos companheiros da esquerda (em qualquer partido a que estejam filiados) corroboram com essa perspectiva falsa e nociva ao desqualificar as reivindicações programáticas das mulheres organizadas ou ao tratar com jocosidade temas que são fundamentais para a construção de igualdade e justiça.

Alguns assumem a postura do: “tá, deixem-nas falar, eu aceno positivamente com a cabeça, e quando elas forem embora, tudo continua como antes”. Em seus discursos, sempre se lembram das companheiras e saúdam as históricas lutas das mulheres, chegando até a assumir compromisso com o combate à desigualdade. Mas palavras sozinhas não mudam o mundo.

Outros são piores. Fazem tudo isso, e na saída, não é que desprezam. Caçoam, zombam, desqualificam. Por detrás da cortina. Recorrem a pérolas do machismo institucionalizado em frases prontas, ou em pensamentos pré-concebidos, como o desempenho das mulheres ao volante, à sua presença na História, aos atributos sexuais desta ou daquela.

Os dois tipos, na vida privada, não se sentem antirrevolucionários por reproduzir cada centímetro do machismo construído historicamente. Isso se expressa na divisão do trabalho doméstico, ou nos comentários “maldosos”, na conotação sexual dedicada a cada mulher que cruza seu caminho. Sem falar naqueles comportamentos mais “imperceptíveis”, como sair da reunião para fumar quando é uma mulher que está falando, ou não se dirigir às mulheres, mas sim, sempre encontrar um interlocutor homem para negociar política.

Mas tem aqueles, também, que explicitamente subordinam os temas feministas a outros “mais importantes”. Esses restringem o espaço político das mulheres, de suas pautas, de sua plataforma, não têm vergonha nenhuma de afirmar que “isso pode ficar pra outro dia”, e acabam servindo de bucha de canhão daqueles que também pensam assim, mas jamais teriam coragem de dizer, em nome “da esquerda e do socialismo”. Esses acabam sendo explicitamente combatidos, e ficam rotulados de “antifeministas” até pelos demais homens, que, em ocasiões “apropriadas”, riem muito da situação e dão dicas de como passar por aquilo fingindo interesse no assunto, para não ser taxado de inimigo das causas feministas e se queimar.

A direita não merece ser comentada, né, gente? Para a direita não existe desigualdade entre homens e mulheres, não existe opressão, não existe nada a ser transformado nesse sentido. No máximo, há que se garantir um parto tranquilo para elas.

É necessário compromisso real, não só de teatro, para enfrentar a desigualdade e a opressão das mulheres e construir uma nova e justa sociedade. Nós, que, inclusive como marxistas, sabemos que a libertação de um setor oprimido virá pelas mãos e pela luta desse mesmo setor, que nenhuma conquista do povo se deu, até hoje, por concessão do opressor, também sabemos que os companheiros da esquerda, dos movimentos sociais, são aliados nessa luta estratégia, na luta pelo outro mundo possível, e precisamos contar com essa solidariedade para atingir um objetivo que não é nosso, mas de todos e todas que tremem de indignação diante da injustiça.

Para percorrer esse caminho juntos, não devemos ocultar as contradições da luta. Quando defendemos que haja política para garantir mais presença de mulheres nos espaços de poder e decisão, criamos o mecanismo das cotas, que é um mecanismo artificial para combater uma desigualdade que não é mesmo natural. A aplicação delas, ainda que ninguém se sinta à vontade para ser contra, é sempre constrangedora. Busca-se todo tipo de brecha e artifício para não cumpri-las. Desde provocar a desqualificação política e pessoal da candidata ao posto em disputa até flexibilizações da regra de todos os tipos, naturezas e justificativas. E, muitas vezes, firma-se um pacto velado e silencioso pela não denúncia do não cumprimento da norma feminista.

É preciso que se entenda que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço, então, para uma mulher ter poder, um homem tem que perder. Mas não é fácil e é indesejável perder poder, então, está travada a batalha sobre essa contradição. É como já apontava Danielle Kergoat: os homens conhecem os mecanismos da dominação e se utilizam deles sim.

Por isso, quando afirmamos que, da mesma forma que não há feminismo sem socialismo, não há socialismo sem feminismo, não há uma sociedade livre, justa e igualitária se não acabarmos com a desigualdade entre homens e mulheres, entre brancos e negros, espera-se que a compreensão geral, na esquerda, é de que é preciso alterar, inclusive, os padrões de relação que sustentamos hoje, mesmo entre nós, companheiros/as de partido, de movimento, de sindicato. É preciso desafiar-se a olhar além do que se vê. É preciso questionar muita coisa que é “verdade” construída, é preciso romper com um cotidiano que, muitas vezes, nos é favorável.

Sem isso, não existe compromisso efetivo, estou certa disso. E se não houver compromisso efetivo com o feminismo, bem como com o fim do racismo, ninguém vai me convencer de que somos capazes de construir uma sociedade diferente desta.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Tragédia Grega

Traduzi do espanhol o artigo abaixo, para o site da DS, sobre a crise na Grécia. É bem interessante, especialmente porque é escrito por um militante do movimento social grego, Yannis Almpanis, que é da Rede por Direitos Políticos e Sociais e do Fórum Social Grego.

Sugiro enfaticamente a leitura. O que a Grécia vive hoje não é novidade pra ninguém. Não é, porque trata-se de uma crise anunciada há tempos. E não é, também porque nós latinoamericanos conhecemos muito bem a cartilha imposta pelos organismos internacionais do naipe do FMI aos países à beira do colapso. A classe trabalhadora grega é que vai pagar a conta, segundo eles.

Fiquei bem decepcionada com o dinheiro que será aportado pelo nosso Governo Federal ao FMI para a Grécia. Não dá pra legitimar esse órgão. Não dá pra aceitar o que ele e a União Europeia querem fazer com a Grécia. "Ajuda" coisa nenhuma. Não é "ajuda" à Grécia. É estrangulamento.


Boa leitura.



DESESPERO E RESISTÊNCIA NA GRÉCIA
(Yannis Almpanis)

Neste caso, a esquerda e os movimentos sociais predisseram o futuro. Enquanto a Grécia comemorava sua integração à zona do euro, advertimos que as enormes desigualdades existentes entre as economias desenvolvidas da Europa do norte, como a Alemanha, e as relativamente débeis da Europa do sul, como a Grécia, associado a um predomínio das forças políticas conservadoras nos governos nacionais do continente, conduziriam, inevitavelmente, a uma enorme pressão sobre os salários. A integração à zona do euro não permitia desvalorizar a moeda, e a zona do euro não dispunha de mecanismos para compensar as enormes diferenças econômicas entre as economias européias, o que faria com que todos os esforços nas políticas de ajuste econômico acabassem recaindo sobre a variável do custo da mão de obra direta e indireta. Dez anos mais tarde, essa previsão sinistra (que, naquele momento, foi acusada de “esquerdista” e “dogmática”) se confirmou.

Durante o sonho idílico dos Jogos Olímpicos de 2004, fomos poucos os que resistimos à “nova grande ideia” de nossa gloriosa e histórica nação. O resultado da “poderosa Grécia” foi uma catástrofe: foram desembolsados entre 20 e 30 milhões de euros (ninguém sabe o valor exato) em investimentos totalmente improdutivos. Agora, Atenas está repleta de enormes estádios fechados que ninguém usa.

No entanto, quando chegou o dia do Juízo Final, quase ninguém se lembrava dos discursos dos políticos neoliberais e dos meios de comunicação há alguns anos. E assim: uma parte apresenta a Grécia como um país indefeso (poderoso há alguns anos) vítima da especulação estrangeira. De outra parte, o novo governo “socialista” conseguiu encontrar os bodes expiatórios para as dificuldades financeiras. De outro lado, a crise seria resultado de problemas estruturais crônicos da economia grega: um setor público superdimensionado, com excessiva quantidade (e bem paga) de empregados e empregadas. A quebra, pois, é inevitável se o país não tem capacidade de encontrar 24 milhões de euros entre abril e maio para financiar seu déficit público ou se continua adquirindo empréstimos nos mercados internacionais com juros de 6,3%. Para evitar a quebra, o país se viu obrigado a recuperar a confiança da União Europeia e dos mercados internacionais a fim de encontrar dinheiro a baixo custo para financiar sua dívida pública. E o melhor meio de ganhar a confiança dos “mercados” consistiu em adotar dolorosas medidas contra seu próprio povo. Mediante chantagem: se os trabalhadores não aceitassem as medidas de austeridade, o país afundaria.

O pacto de estabilidade e desenvolvimento do programa elaborado pelo governo grego e pela União Europeia (EU) é, realmente, uma barbaridade: cerca de 10% de redução dos salários no setor público, aumento de 2% do IVA (Imposto sobre Valor Agregado), 10% de redução do gasto público, ampliação em 2 anos da idade de aposentadoria, 100 milhões de euros de redução do orçamento da educação. O objetivo do governo é economizar 4 milhões de euros e enviar à UE e aos mercados internacionais a mensagem de que está fiel ao dogma do fundamentalismo neoliberal.

Porém, apesar de seu caráter antipopular, o plano não parece convencer os mercados internacionais, e as taxas de juros na Grécia continuam muito altas (6%). Como consequência, o plano de resgate está à espera. Ainda que, no momento, não se conheça a forma concreta do dito plano, estamos bastante convencidos de que a “ajuda” europeia, somada às políticas do nosso governo, conduzirá a uma quebra social inevitável. As previsões do Deutsche Bank são terríveis: recessão de -7,5% do PIB de agora até 2012 e 20% de desemprego (cerca de 1 milhão de pessoas). O único que vai salvar o plano de estabilidade e desenvolvimento dos programas são os benefícios dos especuladores internacionais e o patronato grego. Na realidade, esse programa não é outro senão aquele reivindicado pela Federação Patronal há 20 anos.

Está claro que havia alternativas e que outra política econômica é possível. Embora a dívida pública da Grécia (113% do PIB) seja a mais elevada das dívidas públicas da zona do euro, e se soma-se a ela a dívida privada, o total alcança 173% do PIB. O Japão, por exemplo, tem dívida além de 200%. Antes da era euro, em 1993, a Grécia utilizava 14% do seu PIB para financiar sua dívida. Agora o custo é de 6%. Assim pois, a dívida grega não é tão grande. O verdadeiro problema é que a zona do euro repousa sobre regras neoliberais extremamente rígidas que exageram a importância da dívida pública e tornam difícil seu financiamento (por exemplo, não se pode conceder empréstimos orientados para o mercado interno).

Além disso, o governo grego tinha outros meios de resolver-se com os fundos necessários. Por exemplo, atuando frente aos produtores de navios comerciais (a Grécia é a maior produtora mundial, com cerca de 4 mil navios sob bandeira grega, recuperando o IVA dos produtos que compram nos portos gregos, que representa cerca de 6 milhões de euros que o Estado perde por ano, quando as economias previstas no plano de estabilidade são estimadas em 5 milhões. No ano passado, os armadores gregos juntos pagaram menos imposto do que pagaram os e as imigrantes para obtenção da “carta verde”. Além disso, a maioria do patronato grego transferiu seus ativos para sociedades cipriotas (taxa de juros de 10%); a igreja ortodoxa não paga impostos, quando nossos guias espirituais são os campeões nacionais do setor imobiliário por conta de suas propriedades florestais, de terras, lagos e milhares de imóveis. A cada ano, o patronato frauda mais de 8 bilhões do Sistema de Seguridade Social; 800 mil pequenas e médias empresas pagam a mesma quantidade de impostos que seus trabalhadores, cujo salário é de 2 mil euros. Os bancos gregos receberam 28 bilhões de euros dos fundos públicos no início da crise e agora especulam com a dívida pública (na realidade, a maioria dos especuladores “internacionais” são gregos, alemães e franceses), e a cada ano se dedica 4% do PIB para gastos militares (10 bilhões transferidos aos EUA e à EU para a produção de armas).

Todos esses dados mostram que o governo poderia tomar o dinheiro dos ricos, mas prefere saquear o povo pobre. Trata-se, pois, de uma opção de classe em nome da urgência internacional.

Enfim, esse é o nível europeu. A catástrofe social que sofre, hoje em dia, o povo grego é produto da estrutura neoliberal da união financeira e monetária da Europa. Uma moeda comum sem orçamento comum, um mercado unificado sem nenhum mecanismo de transferência de recursos da gente rica para a gente pobre, um pacto de estabilidade baseado no mais puro dogma neoliberal, cujo único objetivo é o benefício privado, sem preocupação com o povo. A crise mostra que é impossível viver sob as regras de Maastricht.

A Grécia sempre foi um país de enormes desigualdades sociais. Assim, embora o poder de compra na Grécia seja 92% da média da zona do euro, os salários não passam de 70%. Agora, é claro, a situação social criada pelas novas medidas não pode se manter de pé. Não só porque o povo não aceita reduções salariais, nem porque o mercado interno se estancará por anos, mas sim, sobretudo, porque não há nenhuma confiança em que possamos sair desta miséria. Um sentimento de desespero agravado pela amargura de se sentir abandonada pela União Europeia. O que se conhece por “ajuda” europeia é, na verdade, uma ajuda ao estilo do FMI, que vai conduzir a uma crise social terceiro-mundista. Desde o fim da guerra civil dos anos 40, não se havia conhecido, na sociedade grega, uma falta de esperança como a atual.

É certo que o desespero não conduz automaticamente à resistência. Muita gente pensa que não se pode fazer nada , que se já é difícil derrubar os planos do governo, é praticamente impossível de fazê-lo, ao mesmo tempo, contra a UE e o FMI, Alemanha, França, os misteriosos “mercados” internacionais... contra o mundo inteiro que se uniu contra a classe trabalhadora grega.

De outro lado, há cada vez mais gente que dá as costas para o governo e as mobilizações são cada vez maiores. Vivemos duas exitosas greves gerais, enormes mobilizações em todas as cidades, ações de todo tipo, formação de coordenações de base dos sindicatos e de comitês locais, e uma resistência tenaz às políticas provocativas.

Os trabalhadores e trabalhadoras se mobilizam inclusive contra a vontade dos dirigentes da Confederação Geral. E, neste momento, o que parece é que, às medida que as pessoas vão padecendo por efeito das novas medidas, maior será a resposta dos trabalhadores.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

De presente para as mães, um futuro de liberdade e igualdade

Eu já não gosto daqueles exageros tradicionais que se associam ao ser mãe. Em muitas entrelinhas, lê-se que mãe é aquela sujeita que, irracionalmente, como os animais (frequentemente são comparadas a leoas), provêm, garantem e defendem os filhos e filhas do resto do mundo.

Não gosto da ideia de que "mãe é tudo igual, só muda de endereço". Também não gosto da mística que há em torno da maternidade - é uma bênção, é uma dádiva, é a razão de viver. E não gosto da fábula da mãe coruja, por fim. Ou até gosto, pela denúncia, não pelo culto à "corujice"...

Mas isso sou eu. Tem coisa que não sou eu, que é o mundo.

A maternidade é sim, muitas vezes, um dos caminhos para se ter controle sobre as mulheres e seus corpos. "Uma mulher só é completa se for mãe", proclama-se. O fato de poderem ser mães acaba fazendo delas eternamente reféns do trabalho de cuidados, como se fosse isso uma aptidão natural intrínseca à capacidade de gerar filhos. Então, sempre caberá à mulher, que é por desejo divino um ser cuidador, terno, sensível, cuidar de crianças, de idosos, de pessoas doentes no âmbito doméstico. E se encaminharem naturalmente, no mercado de trabalho, a profissões como Enfermagem, Magistério, Serviço Social e outras. Todas profissões essenciais à vida humana e absolutamente dignas, mas desvalorizadas no mercado em relação a outras, com predominância masculina. É sabido e atestado por inúmeras pesquisas que a feminização de uma carreira incorre numa queda de salários na mesma.

A recusa da maternidade é condenada pela sociedade - orquestrada por suas instituições, como a Igreja, por exemplo - como se as mulheres que não desejam ser mães fossem as bruxas da inquisição. Entre as razões para se manter o aborto criminalizado, está esse pensamento retrógrado de não admitir que uma mulher não queira ser mãe. Como se fosse um destino natural irrefutável.

As vilãs nas novelas não são mães, ou se são, o principal atestado da maldade é o péssimo modo de desempenhar a maternidade. Nas novelas, a maternidade pode representar a redenção de uma vilã em recuperação. Quer algo mais revelador do pensamento dominante do que um enredo de telenovela?

E assim, a indústria, o comércio e mídia se apropriam dessa opressão toda para ganhar o seu. Todo dia das mães é a mesma coisa. Milhares de propagandas na TV, no rádio, nos jornais, revistas, internet anunciam produtos que vão deixar sua mãe bonita, de acordo com os padrões do mercado - cosméticos de todo tipo, roupas, acessórios -, ou, principalmente, eletrodomésticos e utensílios domésticos incríveis que vão permitir a sua mãe ser uma serviçal ainda melhor pra você, pro seu pai, pros seus avós, seus irmãos e quem mais morar na sua casa (ou apenas frequentá-la).

Como ser mulher é muito determinado pela capacidade de dar à luz, fica claro, em todo dia das mães, que o mercado quer as mulheres domesticadas. Quer que continuem cumprindo dupla ou tripla jornada - mas com mais classe, elegância, com mais agilidade graças aos produtos que vendem.

Mas se a sociedade realmente respeitasse as mães, não é assim que elas seriam tratadas.

Assim como se fala do mundo que se quer deixar para os filhos, o que eu queria é que minha mãe tivesse um mundo que não reserva um destino irrefutável pra ela, mas que todas as mulheres pudessem, autonomamente, compor sua própria história. Que possam ser quem quiserem ser, que não dependam financeira nem emocionalmente de ninguém. Que sejam livres, que não seja naturalizado o tanto de trabalho gratuito que realizam em nome "do amor". Que o Estado e os homens garantam a socialização desse trabalho. Eu queria que a mãe de ninguém fosse vítima de violência doméstica, de violência sexual, ou da violência simbólica praticada todos os dias pela mídia e pelo mercado que a organiza, que define que a mulher sofre, que a mulher aceita, que a mulher se subordina. Eu queria que nenhuma mãe fosse submetida ao mar de mercantilização que nossa sociedade se tornou, tratando os corpos delas, de suas filhas, de suas amigas como se fossem produtos a serem consumidos. Ou então, como se fossem corpos doentes, imperfeitos, que precisam ser consertados, medicados, que precisam sofrer intervenção.

E também queria que nenhuma mulher fosse obrigada a ser mãe se não quiser ou não puder. Que todos os filhos e filhas façam mãe mulheres que optaram por isso, planejaram, querem e têm condições de exercer a maternidade da melhor forma possível.

Era isso que eu queria pra minha mãe e pra mãe de todo mundo. E quando eu for mãe, é isso que eu quero de presente no dia das mães. É pedir muito?

***
Este vai dedicado à minha mãe, né. Porque eu tenho certeza que ela vai ler e quase certeza de que vai gostar. rsrs...

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Tortura, por que não?

Fazia tempo que não postava artigos aqui que não os meus próprios. Vale muito a pena retomar esse hábito. Ainda mais quando posso ter a honra de fazer das palavras de Maria Rita Kehl, as minhas. Boa leitura e vamos à luta. Ainda há tempo.

Tortura, por que não?

Maria Rita Kehl
em O Estado de São Paulo de 1º de maio


O motoboy Eduardo Pinheiro dos Santos nasceu um ano depois da promulgação da lei da Anistia no Brasil, de 1979. Aos 30 anos, talvez sem conhecer o fato de que aqui, a redemocratizaçã o custou à sociedade o preço do perdão aos agentes do Estado que torturaram, assassinaram e fizeram desaparecer os corpos de opositores da ditadura, Pinheiro foi espancado seguidas vezes, até a morte, por um grupo de 12 policiais militares com os quais teve o azar de se desentender a respeito do singelo furto de uma bicicleta. Treze dias depois do crime, a mãe do rapaz recebeu um pedido de desculpas assinado pelo comandante-geral da PM. Disse então aos jornais que perdoa os assassinos de seu filho. Perdoa antes do julgamento. Perdoa porque tem bom coração. O assassinato de Pinheiro é mais uma prova trágica de que os crimes silenciados ao longo da história de um país tendem a se repetir. Em infeliz conluio com a passividade, perdão, bondade, geral.


Encararemos os fatos: a sociedade brasileira não está nem aí para a tortura cometida no País, tanto faz se no passado ou no presente. Pouca gente se manifestou a favor da iniciativa das famílias Teles e Merlino, que tentam condenar o coronel Ustra, reconhecido torturador de seus familiares e de outros opositores do regime militar. Em 2008, quando o ministro da Justiça Tarso Genro e o secretário de Direitos Humanos Paulo Vannuchi propuseram que se reabrisse no Brasil o debate a respeito da (não) punição aos agentes da repressão que torturaram prisioneiros durante a ditadura, as cartas de leitores nos principais jornais do País foram, na maioria, assustadoras: os que queriam apurar os crimes foram acusados de ressentidos, vingativos, passadistas. A culpa pela ferocidade da repressão recaiu sobre as vítimas. A retórica autoritária ressurgiu com a força do retorno do recalcado: quem não deve não teme; quem tomou, mereceu, etc. A depender de alguns compatriotas, estaria instaurada a punição preventiva no País. Julgamento sumário e pena de morte para quem, no futuro, faria do Brasil um país comunista. Faltou completar a apologia dos crimes de Estado dizendo que os torturadores eram bravos agentes da Lei em defesa da - democracia. Replico os argumentos de civis, leitores de jornais. A reação militar, é claro, foi ainda pior. "Que medo vocês (eles) têm de nós."

No dia em que escrevo, o ministro Eros Graus votou contra a proposta da OAB, de revisão da Lei da Anistia no que toca à impunidade dos torturadores. Para o relator do STF, a lei não deve ser revista. Os torturadores não serão julgados. O argumento de que a nossa anistia foi "bilateral" omite a grotesca desproporção entre as forças que lutavam contra a ditadura (inclusive os que escolheram a via da luta armada) e o aparato repressivo dos governos militares. Os prisioneiros torturados não foram mortos em combate. O ministro, assim como a Advocacia Geral da União e os principais candidatos à Presidência da República sabem que a tortura é crime contra a humanidade, não anistiável pela nossa lei de 1979. Mas somos um povo tão bom. Não levamos as coisas a ferro e fogo como nossos vizinhos argentinos, chilenos, uruguaios. Fomos o único país, entre as ferozes ditaduras latino-americanas dos anos 60 e 70, que não julgou seus generais nem seus torturadores. Aqui morrem todos de pijamas em apartamentos de frente para o mar, com a consciência do dever cumprido. A pesquisadora norte-americana Kathrin Sikking revelou que no Brasil, à diferença de outros países da América latina, a polícia mata mais hoje, em plena democracia, do que no período militar. Mata porque pode matar. Mata porque nós continuamos a dizer tudo bem.

Pouca gente se dá conta de que a tortura consentida, por baixo do pano, durante a ditadura militar é a mesma a que assistimos hoje, passivos e horrorizados. Doença grave, doença crônica contra a qual a democracia só conseguiu imunizar os filhos da classe média e alta, nunca os filhos dos pobres. Um traço muito persistente de nossa cultura, dizem os conformados. Preço a pagar pelas vantagens da cordialidade brasileira. "Sabe, no fundo eu sou um sentimental (...). Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha os olhos e sinceramente, chora." (Chico Buarque e Ruy Guerra).

Pouca gente parece perceber que a violência policial prosseguiu e cresceu no País porque nós consentimos - desde que só vitime os sem-cidadania, digo: os pobres. O Brasil é passadista, sim. Não por culpa dos poucos que ainda lutam para terminar de vez com as mazelas herdadas de 21 anos de ditadura militar. É passadista porque teme romper com seu passado. A complacência e o descaso com a política nos impedem de seguir frente. Em frente. Livres das irregularidades, dos abusos e da conivência silenciosa com a parcela ilegal e criminosa que ainda toleramos, dentro do nosso Estado frouxamente democratizado.