quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 8: final)

Carolina e Érico eram amigos havia algum tempo. Amor de amigo é despretensioso, não é um trocar de ajudas, ombros e ouvidos, não envolve sentimentos mesquinhos como o de posse. Amor de amigo não é obrigatório, você encontra os amigos pela vida sem que ela os imponha a você pelo sangue ou por convenções sociais. Ninguém te prende a um amigo, nenhum contrato, nenhuma promessa ao vento. Você fica porque você quer. De amor de amigo você não se protege, ninguém tem medo de tornar-se amigo de alguém.

Mas sentimentos são coisas confusas e altamente misturáveis – por que alguém haveria de determinar que é errado misturar sentimentos? -, que se somam, se dividem, se subtraem, se multiplicam entre si. Érico se viu apaixonado pela moça que tinha nele seu melhor amigo, e ela, empunhando esse discurso, preferiu afastar-se para isso “passar”. Entregou para o tempo resolver, só o tempo sabe passar. Consigo mesmo, ele desejava que fosse um distanciamento temporário, para pensar. Ele também tinha que pensar, era tudo muito confuso mesmo.

Agindo em coerência com a estratégia de Carolina, Érico começou a sair com uma garota. Nada muito empolgante, mas estava aberto para qualquer coisa alterar-lhe o rumo. Certa noite, sua vida tomou um rumo imprevisto: a namorada saiu cedo e Carol se aproximou. Estavam distantes havia algum tempo, e talvez isso o fez percebê-la diferente. Parecia insegura do que estava fazendo, mas decidida a fazê-lo. Talvez, o que a tinha provocado a distanciar-se foi apenas o velho medo... Medo de perder o amigo, medo de se perder. As pessoas são cheias de medos.

Érico teve medo. Quando ficaram juntos, pareceu a coisa certa. Mas há muitos poréns entre um ponto e outro da história. Era uma situação nova e inusitada – sempre que pensava racionalmente no que estava acontecendo, assustava-se. A paixão chegara a ser platônica, a vida real é mais difícil. Os dois teriam que lidar com ela. Romantismo é um estilo literário, não uma boa forma de planejar sua vida.

Passou-se uma semana de incertezas, devaneios, expectativas e medo; e lá estava a noite de revéillon. Carolina reuniria os amigos em casa. Ninguém sabia de nada, ela mal sabia de alguma coisa, Érico nem sabia se aquilo tudo era real. No meio de tudo isso, ao se dar conta de que a meia-noite se aproximava, Carolina foi procurar Érico para que fosse seu primeiro abraço do novo ano.

Procurou-o pela festa até encontrá-lo na pista de dança e o viu dançando com uma moça qualquer, uma entre os tantos desconhecidos que sua própria festa agregou. Não era uma dança ingênua e despretensiosa. Era um flerte, como os demais que aconteciam simultaneamente no mesmo lugar.

Carolina ficou parada olhando, quase duvidando. Num impulso, foi até ele e puxou-o para fora de lá.

- Eu não posso acreditar que você está fazendo isso!

- Eu não estou fazendo nada!

- Érico, eu não sou cega, nem burra!

- Carol, a gente sabia que não ia ficar junto aqui!

Ela arregalou os olhos ao ouvir aquilo. Não dava tempo de pensar, a raiva se somou à tristeza, e um intenso sentimento de decepção resultou daquele choque. Érico tentou consertar.

- Carol, não foi nada, esquece isso.

- Vou esquecer mesmo, mas não vou esquecer só isso não! Vou esquecer logo tudo! – e, baixando o volume da voz, completou – Eu pensava você seria incapaz de fazer qualquer coisa que me chateasse. Era por isso que eu tinha decidido dar uma chance a nós.

Carolina saiu depressa. Não olhou para trás, mas sabia que Érico não a seguia. Correu em direção aos fundos da casa. O ano estava quase mudando, as pessoas estavam concentradas nisso. Érico ficou lá, parado ao lado da pista de dança, imaginando que colocou tudo a perder, dando-se conta de que seria eternamente assombrado pelo motivo pelo qual ela decidira dar uma chance a ele.

De repente, alguns dos convidados correram na direção do quartinho dos fundos. Estranhando a movimentação, ele se espichou para enxergar: viu Carol no chão e correu. Viu-a zonza, estava machucada. Tinha caído de cima do telhado. O que ela teria ido fazer no telhado...? Fugir dele? Chorar isolada?

Érico conseguiu chegar perto de Carolina, surpreendido pela reação que causara na moça. Quando o viu, ela sorriu e o abraçou forte. Ele se sentiu aliviado: não tinha posto tudo a perder. Encorajou-se, para tudo há solução:

- Por favor, me perdoe, foi uma estupidez minha.

Carolina disse que não sabia do que ele estava falando, e assim, começou uma disputa infinita entre memória, motivos, lembranças, táticas, culpas, remorsos. E medo. A passagem dos dias não reverteu esse comportamento dela, antes, acentuou. Érico ficou surpreso por achar que aquela mulher pudesse agir com tamanha frieza, e uma mágoa tamanha tornou palpável a necessidade de esquecer aquela história.

O tempo sempre ajuda quem quer esquecer. Quem quer. Quem não quer, não adianta esperar que o tempo aja sozinho. O tempo só sabe passar, cumprindo um curso de rio que pode ser sinuoso, pode ser comprimido entre margens opressoras, em águas densas ou límpidas; mas também pode ser o correr tranquilo de águas que não têm pressa de desaguar – sabem que o deságue é um fim incontornável.

O tempo não é coisa que a gente possa mexer não. E nem precisa.

***
FIM


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