quarta-feira, 17 de julho de 2013

Sem Clima

Samba de minha própria autoria... 
***

Sei lá, sei não!
Quando será que ele sente alguma emoção?
É chuva de areia no ar
Deserto pra tudo secar
É a frente que esfria a estação
É uma fria, esse cidadão

Se eu chego perto sorrindo
Ele dá meia volta, e 'inda fecha a cara
Se eu faço qualquer favor
Ele aceita bem sério e nem diz obrigada
Se eu convidar pra sair,
É capaz de ele rir
Pra fazer exceção
Até o sangue dele também
Tem que entrar no trem
Pra ir pro coração.

Sei lá, sei não!
Quando será que ele sente alguma emoção?
É chuva de areia no ar
Deserto pra tudo secar
É a frente que esfria a estação
É uma fria, esse cidadão

Não tem hidratante potente
Não tem umidade em cidade nenhuma
Pra amolecer esse moço
Nem reza de crente, nem nossa macumba
Acho que se um belo dia
Alguém com malícia
O cativa em vão
Pode apostar que na certa
Essa lágrima seca
E nem chega no chão

Sei lá, sei não!
Quando será que ele sente alguma emoção?
É chuva de areia no ar
Deserto pra tudo secar
É a frente que esfria a estação
É uma fria, esse cidadão!



***
Aqui o vídeo... O áudio não é bom e o esquema é todo meio improvisado. Mas esta é minha música, acompanhada de Leonel Costa (violão), Diogo Bamboocha e Renatinho Lara (percussão).



terça-feira, 16 de julho de 2013

O médico

Não quis ser médico desde pequeno. Primeiro, quis ser astronauta, depois, piloto de avião. As experiências da vida real, acumuladas no desenvolver dos anos, levaram-no a se aproximar da biologia. Queria conhecer o corpo humano e aprender a intervir nele para curar doenças. Não decidiu ser médico para ser herói. Quis ser médico porque não se imaginava fazendo outra coisa para viver.

- Mas Téo, é um vestibular muito difícil!

- Então, eu vou ter que estudar mais que os outros.

- E a faculdade é difícil também...

- Então, vou ter que estudar ainda mais depois que passar no vestibular.

- Se for particular, é cara pra caramba...

- Então, terei que me endividar.

Era coisa de vocação mesmo.

Dona Cotinha era costureira e seu Jair era mecânico, dos melhores da cidade. Viviam tranquilos, mas sem fartura. Téo era filho único, adotado pelos pais aos cinco anos de idade já, mas isso nunca foi motivo para mágoas ou síndrome de rejeição. Era muito grato pelo carinho e o apoio que sempre encontrou em casa, e não tinha curiosidade para buscar quem o abandonou.

Demorou, mas ele entrou na faculdade de medicina. Era paga, era cara. O pai pegou um empréstimo no banco, Téo conseguiu crédito educativo – era o que havia naquela época. Sabia que sairia da faculdade empregado e ganhando bem. O trabalho pagaria os anos de estudo.

Formou-se em seis anos, batalhou para especializar-se na área que escolheu ao longo desse tempo. Enquanto não conseguia ser admitido na residência em oncologia, atendia num posto de saúde na periferia de São Paulo. Chegou a trabalhar num consultório privado, com exames admissionais e demissionais, mas não gostava.

No posto de saúde, sentia que os colegas não gostavam muito dele. Não era o mais jovem, mas era o médico com menos tempo de formatura. Parecia-lhe que não era querido porque gastava muito tempo com cada paciente... Os outros médicos tinham agilidade nas consultas. Téo sabia bem quando a criatura só queria um atestado para faltar ao trabalho, mas, mesmo nessas situações, procurava avaliar se o paciente encontrava-se em estado emocional abalado, cansado, deprimido... Quando era assim, entregava o tal atestado, e pedia que a pessoa descansasse, procurasse ajuda para enfrentar o estresse. Se não, enfiava uma injeção no espertinho, ou oferecia balas coloridas, e o mandava para a labuta em seguida.

Certa vez, adentrou seu consultório uma senhora. Ela aparentava mais de 80 anos, mas, segundo o prontuário, tinha menos de 70. A pele estava muito enrugada e seus movimentos eram limitados. Queixava-se de dor. Ao doutor, pareceu lesão por esforço repetitivo.

- O que a senhora faz, dona Cleuza? – perguntou.

- Ô moço, eu já fiz muita coisa... Agora não consigo fazer nada... – a voz da mulher era de melancolia, mas ela sorria.

- Mas qual era a sua profissão?

- Eu já fui tecelã numa fábrica. Muito tempo. Depois, a fábrica mandou tudo nós para a rua. E aí eu fazia o que aparecia. Já vendi pipoca na frente do teatro, já fui babá... Mas o que eu fiz mais na vida foi faxina, viu.

- Trabalhava como faxineira? Em muitas casas?

- Doutor, teve uma época que estava mais difícil. As patroas dispensavam a gente. Mas depois tinha faxina pra fazer todo dia da semana, de segunda até domingo!

- Sem descanso?

- Mas se descansar, não ganha, né, doutor.

Téo ficou em silêncio por segundos que não passaram despercebidos. O olhar vagou para longe, e a senhora notou.

- Sua mãe também é faxineira, é?

- Não, não, ela era costureira. Hoje se aposentou.

- Eu não sei me aposentar, doutor.

Foi como sentir um nó de lençol na garganta. Nem um oceano de saliva fazia aquilo descer. O doutor achou melhor resgatar a conversa.

- As dores aparecem com algum movimento específico? Ou elas duram o tempo todo?

- Doutor, eu não consigo fazer nada mais... – o sorriso desapareceu – Eu não consigo mais trabalhar, eu não consigo nem estender minha roupa, doutor! Se nem cuidar da minha casa eu posso mais, pra que eu sirvo?

Dona Cleuza começou a chorar. Um pouco, e envergonhada, tentando segurar. O médico ficou sem reação por alguns instantes, depois se ajoelhou ao lado dela, secou suas lágrimas com um lenço e perguntou:

- Quantos anos a senhora tem?

- Eu tenho 68, mas minha mãe dizia que fui registrada na data errada. Não sei se tenho 68 ou 67, o senhor precisa saber disso com certeza?

- Não preciso não – ele lhe sorriu – Deite-se aqui, vamos examinar essas dores.

Dizendo isso, Téo deitou dona Cleuza na maca, ainda consternado pela situação anterior. As palavras se misturavam na cabeça dele, queria dizer algo doce, confortável, mas não sabia bem. Enquanto isso, dona Cleuza ajeitava-se sobre a maca, secando as últimas lágrimas que insistiam em transbordar.

- Dona Cleuza, é normal que a senhora tenha mais dificuldades para realizar certas tarefas – ele começou – A senhora já fez muito por este mundo, é hora de este mundo fazer algo pela senhora...

- Não dá pra contar com isso não, doutor, é o meu serviço, a minha casa, eu não posso não conseguir, é estranho, eu tenho medo, o que vai ser de mim se eu nem posso estender uma roupa?! – a voz ficou chorosa de novo.

Ele se calou. Achou melhor não insistir no assunto naquele momento, para evitar que ela se aborrecesse muito. Antes mesmo de lhe tirar a pressão ou medir os batimentos cardíacos, pensou em apalpar as regiões que ela disse que doíam. Ia fazer isso quando a mulher afastou-se e arregalou um pouco os olhos, mirando o doutor com uma certa feição de preocupação:

- Doutor! O senhor não vai vestir as luvas pra encostar em mim?!

Enquanto dava sequência ao seu procedimento, sem olhar nos olhos de dona Cleuza, ele respondia calmamente que não era necessário, afinal... Foi quando ele caiu em si. Entendeu a pergunta. Entendeu a dúvida.

Parou o que fazia. Sentiu muita tristeza, aquele nó na garganta voltou maior, depois virou água e subiu até os olhos. Doutor Téo quis chorar de vergonha, mas controlou-se firme. Que tipo de gente faz isso? Tem nojo de uma senhora pobre?! Inofensiva, ingênua, coitada! Pensa que ela não vai perceber isso? Gente que se anuncia como salvador de vidas e se recusa a tocar numa senhora saudável?

Que crueldade fazê-la pensar que é natural que sintam nojo de sua pele cansada, enrugada. A pobreza não é bonita. Os anos se passam e levam a vivacidade dos movimentos, a destreza dos pensamentos, levam a leveza, a pele lisa. Aos idosos e às idosas, resta lembrar que conseguiam fazer as coisas, quando eram vistos. Quando não precisavam contar com a paciência de quem quer tudo com a pressa de anteontem. Os tempos mudam.

Que tipo de gente, meu Deus?! Que tipo de gente se recusa a encostar numa velha ex-faxineira que sente as dores de ser pobre, mulher, idosa? De viver na periferia e não ter direito aos sonhos e aos encantos do consumo que ela vê pela TV, quando tenta se distrair de sua própria vida. De viver na periferia e acostumar-se a não ter direitos, a mais nem saber o que são direitos. Aqueles que deveriam curar suas dores? Aqueles que deviam trabalhar para que ela se sentisse bem, são esses que têm nojo dela? E ela pensa que isso é normal?!

Acostumou-se a ser um fardo. Os dois ônibus lotados que pegava para chegar à casa da patroa, não podia reclamar deles, porque ninguém ouviria. Já era suficientemente bom que eles existissem e permitissem que ela cumprisse seu trajeto. Era normal, também, cuidar sozinha de seis filhos. Trabalhar, cuidar da casa. Lavar, passar, cozinhar para a sua e para outras famílias. Nunca teve tempo livre, como tivera seu marido – que Deus o tenha –, que gostava de beber e de jogar bola. Ela se divertia sabendo das histórias da vizinhança. Era normal. Assim como era normal que os médicos usassem luvas para tocar nela, mesmo que ela não apresentasse nenhuma enfermidade contagiosa.

Téo foi para casa pensando em dona Cleuza. Jantando, chegou a passar-lhe pela cabeça abandonar a medicina. Se não conseguia suportar a dor de uma senhora como aquela, como poderia tratar o câncer de alguém? Talvez, quando fosse oncologista, não atenderia mais pessoas como dona Cleuza. Não assinaria atestados para trabalhadores tristes e frustrados. Não daria balas coloridas fantasiadas de remédio para aqueles que só queriam uma tarde livre. Mas lhe permitiriam passar muito tempo com um único paciente.

Téo não abandonou a medicina. Voltou ao posto dali a dois dias, na sua escala. Algumas semanas depois, ele estava ali, atarefado e preocupado com a prova de residência que se aproximava. Atendia uma pessoa. Em plena consulta, a recepcionista o chamou pelo telefone:

- Doutor Téo, tem uma senhora aqui que só aceita ser atendida pelo senhor.

- Eu estou com paciente, não sabe?

- Sim, senhor, mas ela insiste...

- É alguém de retorno? Quem é?

- Não é retorno não... O nome dela é Cleuza... Ela só quer ser atendida pelo senhor.

- Tudo bem, faça-a entrar quando este aqui sair.

Não se lembrou de quem se tratava.

Quando dona Cleuza entrou, porém, ele reconheceu imediatamente. Levantou-se e foi até ela.

- E a senhora, como está?

- Vim lhe trazer isso!

Sorridente, estendeu ao doutor uma barra de chocolate. Essa mulher era doutora em roubar-lhe as palavras.

- Eu ainda não fui no massagista como o senhor mandou...

- Fisioterapeuta! – ele interrompeu, corrigindo-a.

- Mas é que o remédio me ajudou, eu vim agradecer.

- A senhora tem que ir ao fisioterapeuta mesmo assim, dona Cleuza...

Quando ela saiu, ele foi conferir seu prontuário. O que mesmo eu a mandei tomar? O prontuário dizia: medicada com “H.B. Well”. E lembrou-se do desfecho daquela consulta.

Ele lhe dera as balinhas coloridas, que, para outros, serviam como falsos medicamentos. Para ela, era para comer uma a cada vez que pedisse ajuda a alguém para realizar as tarefas domésticas. “A senhora só vai melhorar se parar, por um tempo, de repetir esses esforços”, lembrou que disse.

Ao deixar o posto, à tarde, ouviu a piada de colegas: “conseguiu atender mais que cinco pessoas hoje, doutor Téo?”. “Vocês conseguiram atender alguém desde que se formaram?”, devolveu. Ultrapassou a porta e sorriu satisfeito. Que bom que dona Cleuza já não sentia dores.

terça-feira, 9 de julho de 2013

A volta


Eu quis ficar
Porque você me dá vontade
De ficar.
De amanhecer e anoitecer em ti
E florescer, quando assim for;
Me recolher, ser sol e me pôr.

Eu quis ficar
Porque te conheço
E me conheces ainda mais,
Porque me abraças quando preciso
Porque sorris quando é tempo de paz
Porque dizes muito e sempre
E, iluminada, ilumina meu canto
    Qualquer um que eu cante.
    Qualquer um que eu vá.

Eu quis ficar
Porque me pedes
Em preces e batuques
Porque me chamas
Me ardes
Me invocas nas tardes
Vermelhas.

Eu quis ficar
Porque choraste
Ao ver-me partir.
Porque és arte
A utilizar-se de si
Para desnudar-me,
A abrir-me caminhos,
E me levar.

Eu vou ficar
Para nunca mais
Sentir tua falta
Ou sentir-me faltar
Em mim.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Conto de Areia...

Clara Nunes gravou "Conto de Areia", de Romildo Bastos e Toninho Nascimento, em 1974. Foi a partir dessa música que ela definitivamente tornou-se uma estrela do samba e da música popular brasileira. O álbum Alvorecer, que "Conto de Areia" integra, vendeu mais de 300 mil cópias - recorde absoluto e feito inédito para uma mulher.

Eu sempre fui apaixonada pela música, muito antes de saber dessa história, muito depois de ela ter sido composta. A chamada do cavaco no começo, a presença forte do mar, a história da moça de olhos morenos que ficou a olhar os veleiros, esperando o amor que não mais iria voltar... A energia inconfundível, incomparável. Sempre me perguntei por que as rodas de samba não costumavam tocá-la. E foi, basicamente, assim que eu comecei a cantar.

- Toca "Conto de Areia"?

- Não sabemos a letra.

- Eu sei, deixa comigo.

- Qual o tom?

- Sei lá, faz igual à gravação.

O público sempre respondeu de imediato. Há os trechos que todo mundo canta junto. A música fabrica sorrisos. As pessoas gostam. E eu peguei gosto pela coisa.

Desde que comecei a cantar, "Conto de Areia" nunca deixou de estar numa set-list. E a alegria de cantá-la é a mesma da primeira vez, é a mesma de quando eu pedia pra cantar em rodas de samba onde não conhecia ninguém, é a mesma de sempre. Digo que é minha música.

É minha música, mas é música de Toninho e Romildo - cuja parceria se desfez há muitos anos já. Ontem, na roda de samba do Espaço Cultural Coqueiro, no bar Grão, em Brasília - que adoro -, eu pedi pra cantar essa. Vi que uma cantora que tinha me antecedido - que maravilhosamente tinha cantado "Corra e olha o céu" (Cartola), e "Nasci pra cantar e sonhar" (D. Ivone Lara) - estendeu o braço com um telefone ligado, como que mostrando a música para a pessoa do outro lado da linha.

Depois, ela veio até mim e disse: "botei o Toninho Nascimento, compositor da música, para te ouvir cantar". Eu gaguejei tanto que não consegui falar nada. No máximo, deu pra proferir um "o quê?!!!". E ela ainda ligou de novo. Estendeu-me seu telefone dizendo: "Fala com ele".

Ora, o que eu teria a dizer? Gaguejei ainda mais, não disse nada com nada, fiz exclamações perdidas e joguei algumas reticências, acho. Desliguei o telefone sem lembrar de uma palavra que eu disse ou que ouvi, de tão nervosa. "Eu devia ter dito apenas obrigada", pensei. Mas como você pode resumir tanto? Quão sucinta você deve ser para dizer o que você nunca esperou que tivesse chance de dizer? Dizer o quê, afinal?!

Eu, que não posso dizer que componho porque as coisas só existem de verdade quando extrapolam você, tenho profunda admiração por quem articula palavras em notas musicais. Tenho o hábito de dizer, no palco, quem são os compositores de cada canção que interpreto - pois, em geral, os/as intérpretes é que ficam conhecidos/as por ela. E já que não consegui dizer nada para o compositor da minha música predileta na vida, eu só posso é continuar cantando a honra de participar da imortalidade de "Conto de Areia" - ano que vem, ela completa 40 anos, e, com certeza, muitas e muitas gerações de brasileiros(as) embalarão sua alegria ao som dela.


terça-feira, 2 de julho de 2013

O futebol, e a (ausência de) paixão. Política é outra coisa.

Eu não deixo de torcer pro Brasil porque acho que futebol é o ópio do povo - seria incoerente, todo mundo sabe o quanto eu gosto e acompanho o Campeonato Brasileiro, a Champions League, e outros.

Eu não deixo de torcer pro Brasil porque a CBF é uma corja de filhos da puta - e é! -, até porque o pouco que conheço das confederações estrangeiras, a começar pela Fifa, nenhuma vale nada também.

Eu não gosto desse discursinho "ai, contra a Espanha, que dizimou os povos indígenas da América Latina"; "ai, contra Portugal, nosso colonizador"; "ai, contra a Alemanha de Ângela Merkel"... Vale enquanto piada, mas esperaria que as pessoas não fizessem essa confusão mental seriamente. Mas muito menos eu gosto do discursinho de rivalidade de boutique contra a Argentina e os argentinos, essa xenofobia tosca alimentada também pela mídia, essa mercantilização da rivalidade.

Eu não gosto da seleção brasileira porque ela não comove meu coração, não seduz minhas paixões futebolísticas... E gosto de torcer pra Holanda ganhar seu primeiro mundial, pro Messi vencer uma Copa do Mundo, pro Uruguai, pro Paraguai, pra quem eu quiser. Pra quem eu gostar mais na hora.

É futebol, gente, só isso. Não é vingança dos povos, não é prova de bom caráter. Não venham me catequizar. E nem venham justificar sua paixão com motivação política, vai.

Político foi o que aconteceu fora do Maracanã no último domingo. Essa é a disputa na qual a gente tem que ter lado.

#prontofalei