terça-feira, 11 de outubro de 2016

Fraudes, mentiras e falácias: fundamentos da Lei da Mordaça

Ruth Brochado e Alessandra Terribili*

Que os PLs autodenominados “Escola Sem Partido” baseiam suas premissas em falácias, todos já sabemos. A principal delas reside no próprio nome, afinal, o projeto não se refere à disputa partidária no interior das escolas. O que ele pretende, de fato, é assegurar o predomínio de suas próprias convicções conservadoras, forjando um pensamento único caracterizado pela intolerância e pela ignorância.

No DF, os porta-vozes das trevas adotaram a tática de fatiamento do projeto, ou seja: fragmentaram-no e apresentaram-no em partes, inclusive apelando a fundamentos inconstitucionais. Seus idealizadores propõem a perseguição de professores (as) e a censura de conteúdos sob o pretexto de defender o “direito dos pais a que seus filhos menores recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Ora, e como cumprir tal promessa em meio a uma diversidade de convicções, expectativas, referências morais e visões de mundo que há numa sala de aula? E mais: é desejável que, num espaço público, os diferentes não entrem em contato?

Portanto, a Lei da Mordaça não é apenas uma falácia, é também hipócrita e autoritária. Ao anunciar sua cruzada contra uma suposta “doutrinação” praticada por professores e professoras, os defensores (as) da Mordaça pretendem, na realidade, manter sua doutrinação particular. Para isso, precisam expulsar o senso crítico das escolas, como quis fazer a ditadura militar de diversas formas – inclusive, prendendo, exilando, torturando e matando professores (as).

Gênero

Para argumentar suas frágeis teses, os autores dos Projetos de Lei da Mordaça apelam a conceitos vazios, como a tal “ideologia de gênero”.

Na literatura feminista, o conceito de gênero aparece pela primeira vez em 1975, na definição de Gayle Rubin. Basicamente, trata-se de afirmar que a desigualdade entre homens e mulheres, geradora de toda sorte de violência, conflitos e exclusão, não é natural, mas sim, construída socialmente. Isso quer dizer que a opressão das mulheres é sustentada há séculos por valores morais e práticas sociais e econômicas que condenam a mulher à submissão. De acordo com os idealizadores da Lei da Mordaça, são esses os valores morais que devem circular livremente nas escolas, sem questionamento ou confronto de ideias.

Não há teórica ou liderança feminista que utilize o termo “ideologia de gênero” para se referir a qualquer coisa. “Gênero” não é uma “ideologia”, mas sim, um conceito, uma categoria de análise. Portanto, podemos afirmar que aquela é uma expressão fabricada por eles para causar pânico nas suas bases e, assim, gerar a comoção necessária para implementar seu projeto reacionário e autoritário para a Educação.

Na Câmara Legislativa do DF, há PLs em tramitação como o 1138/2016, de autoria de Sandra Faraj (SDD), que não só proíbe a “aplicação da ideologia de gênero” como visa a impedir que qualquer proposição que relacione o termo gênero à construção de políticas pedagógicas seja sequer discutida pela Câmara. Na justificativa do projeto, encontramos um festival de estupidezes de todos os formatos. Referenciando-se em nota política emitida por uma pequena associação de pediatras conservadores estadunidenses, a parlamentar diz que “ideologia de gênero” é uma “corrente” que contraria “até a teoria da evolução, a biologia e tudo mais que já se ouviu falar” (sic). Ironicamente, Faraj afirma que conceitos como identidade de gênero e orientação sexual foram suprimidos dos textos do PNE e do PDE por “falta de base científica”.

Assim sendo, os (as) parlamentares que se utilizam da expressão “ideologia de gênero” em seus projetos deveriam ser convocados a revelar as devidas referências teóricas e políticas associadas ao termo. Não podemos aceitar que a Câmara Legislativa, que deveria reunir representantes do povo para estudar, discutir e propor de forma séria e consequente, se dê o luxo de basear seus debates em expressões fraudulentas sem nenhuma fundamentação teórica ou política.

Educar para a igualdade

Enquanto isso, no mundo real, as mulheres continuam sofrendo todos os tipos de violência sexista, sendo as negras as mais vulneráveis. Os dados atestam:

3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em relacionamentos. (Instituto Avon/Data Popular – 2014)

56% dos homens admitem já ter praticado algum tipo de violência. (Instituto Avon/Data Popular – 2013)

Em 2015, um relato a cada 7 minutos. 85.85% dos casos estão no ambiente doméstico; quase 70% dos agressores são parceiros ou ex-parceiros. Mais da metade dos assassinatos de mulheres se dão em contexto de violência doméstica. Maioria das vítimas são negras. (Levantamento do Ligue 180)

De acordo com a publicação Estatísticas de Gênero – Uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010, do IBGE, pode-se inferir que as mulheres ainda são maioria entre os desempregados, entre os trabalhadores informais ou precarizados. Quanto aos rendimentos, as mulheres recebem, em média, 67,7% do rendimento dos homens que realizam mesma função. Essa realidade é mais cruel com as mulheres negras e as rurais.

Menos de 10% da Câmara dos Deputados são mulheres, o que prejudica decisivamente a capacidade do Poder Legislativo de produzir e aprovar políticas de combate a essa triste realidade.

O conceito de gênero nos ensina que nenhum desses dados é natural ou inevitável, mas sim, que podemos formar seres humanos capazes de romper com as desigualdades e construir um mundo melhor para todos e todas. O que não é natural pode ser mudado. A Educação precisa estar a serviço do combate à cultura do estupro, da discriminação e às diversas formas de violência e de opressão, contribuindo para formar cidadãos e cidadãs a partir de valores como respeito, igualdade e solidariedade.

Conforme fica nítido no discurso dos defensores e defensoras da Lei da Mordaça, a real intenção dessa iniciativa é manter as relações de poder tal qual estão: opressão das mulheres, exclusão dos negros e negras, invisibilização da população LGBT. Todas as pessoas que desejam construir um mundo melhor precisam se opor firmemente à Lei da Mordaça.

* Ruth Brochado, professora e militante feminista, é diretora da Secretaria de Mulheres do Sinpro-DF; Alessandra Terribili, mestra em ciência política e militante feminista, é assessora política do Sinpro-DF.

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