Tinha um menino que morava naquela rua florida que todo mundo gostava. Era uma rua sorridente, iluminada, parecia que só gente feliz podia morar lá. Mas quem estava fora não sabia que manter uma rua florida dá trabalho. As pessoas da rua não se importavam com esse trabalho, porque era o resultado dele que as fazia felizes.
O menino era feliz que nem a rua. Empinava pipas – sempre longe da fiação elétrica, claro. Também jogava bola, brincava de ciranda, corria, saltava. Cuidava da rua junto com os vizinhos e vizinhas. Sorria com o rosto inteiro, despreocupado.
Um dia, na rua florida, ele foi picado por uma cobra. Fora da rua, algumas pessoas diziam: “tá vendo, eu sabia que essa rua não era perfeita”. As pessoas da rua se assustaram, mas a picada até que nem doía. Só que não tinha cura. Precisava cuidar daquilo pro resto da vida. Lavar, medicar, proteger do sol. Não tinha jeito. Mas doer mesmo, até que nem doía. Depois de um tempo, os cuidados que a picada requeria passaram a ser tomados automaticamente, e a picada da cobra já era parte dele mesmo.
A rotina mudou um pouco, mas ele não se importava. Agora, ele tratava da picada, brincava e pulava, e cuidava da rua junto com os vizinhos e vizinhas. E todo mundo sabia que aquele era um menino especial.
Depois, deram a ele uma tartaruga. Pra ele ter um bichinho. A tartaruga não dava muito trabalho. Mas ele tinha que alimentar, limpar se ela fizesse cocô no quintal, prestar atenção pra ela não fugir (sim, tartarugas podem fugir, exatamente porque a gente nunca acha que elas poderiam fazer isso).
Tinha horas que ele se irritava com a tartaruga. Porque queria ir brincar, mas só podia ir jajá, porque tinha que alimentar a tartaruga. Quando voltava da rua cansado, queria ir dormir, mas tinha que limpar o cocô da tartaruga. Mas a irritação não durava, porque ele olhava a tartaruga andando pelo quintal com aquela calma honesta e ingênua, e sentia amor. Gostava de ver a tartaruga dormindo toda encolhida dentro daquele casco. Pensava que todo mundo devia ter um casco duro daqueles, pra usar se precisasse ou quisesse.
Ele ganhou um vaso de planta também. Tinha que ficar regando e deixar no sol, sem esquecer. A vida da plantinha dependia dessa responsabilidade boba de água e de sol, e então, o quarto ficava verde. O oxigênio que ela liberava não era só dele. Mas só ele enxaguava a planta e punha no sol.
Quando ficou crescidinho, comprou um carro. Era um carro barato, era o que ele podia. Bem velho. Mas era amarelo. E assim ele podia ficar mais tempo fora de casa, e ir pra mais longe. O carro pedia gasolina, pedia pra trocar de óleo, pra trocar de marcha, pedia pra alinhar os pneus, pra trocar de pneus, pra licenciar, pra lavar... Pedia coisas demais pra um serzinho inanimado.
Num dia chuvoso e sem cor, o carro enguiçou no meio da rua, em outro bairro. O menino já tinha criado certa dependência em relação ao carro, não sabia bem o que fazer para voltar para a rua florida. Mesmo consumindo tantos cuidados, o carro o deixou na mão! E logo agora, que chovia muito!
O menino não foi mais o mesmo depois desse dia. Tornou-se desconfiado, duvidando do cuidado que ele dispensava às coisas de que gostava, e começou a acumular motivos pra se enfezar. Passou a sair de casa menos, e pouco via as flores da rua. Não participava mais daquele processo coletivo e solidário de cuidar da beleza dela junto com os vizinhos e vizinhas.
Se alguém sentisse sua falta, ele respondia que a tartaruga, a planta e o carro dependiam dele pra viver, e ele já não tinha tempo. Em vez de sorrir, gastou os dias sentindo o peso.
E daí ele começou a se incomodar até com a picada da cobra, que ele cuidava automaticamente desde sempre. Via que os outros não tinham picada pra cuidar. Às vezes tinham carro ou planta ou tartaruga. Picada, não. Foi guardando muita raiva da picada. E já não viu mais que bonito ele aprendeu a ser por ter vivido toda a sua vida daquela forma tão particular.
Um dia, a tartaruga fugiu. Quando a gente não espera, o improvável sempre acontece. O menino ficou triste e se culpou. A culpa faz os outros pesos pesarem ainda mais... Foi pra rua florida e tentou procurar a bichinha, mas, nada.
Foi dormir incomodado. A ausência da tartaruga espetava. E além de enfezado e obrigado, ele ficou triste e culpado.
No sábado, ele amanheceu e voltou a buscar. Procurou em todas as partes da rua florida, e percebeu que não reconhecia a própria rua. Foi conhecendo-a de novo que ele encontrou a tartaruga. Estava do lado de uma cobra velha. Ele lembrou da picada, mas não teve medo. Quem já foi picado uma vez, não tem por que temer. Quando olhou bem, viu que, na verdade, a cobra velha estava lhe devolvendo a tartaruga.
Conheceu o alívio e a gratidão. Gostou mais disso do que de ser enfezado, obrigado, triste e culpado. Passou a regar a sua plantinha como quem rega os dois sentimentos de que gostou. Mas o que ele tinha percebido também, depois que reconheceu a rua florida e que viu uma cobra velha lhe devolver sua tartaruga, é que a leveza que a gente cultiva na alma se mostra como espelho pelos olhos, afrouxa a retina, e então, a gente enxerga melhor.
Estando bem cuidado, voltou, alegre e leve, a juntar-se ao grupo de vizinhos e vizinhas que mantinham florida a rua. E todo mundo sabia que aquele era mesmo um menino especial.
3 comentários:
O acordo é não sentir mais dor. Por mais que pese. E pesa.
Que lindo, Alê. Até eu fiquei com flores nos olhos depois de ler. Beijos. Mari
Acho que já estive nessa rua. Ela, além de florida, tem um lindo pôr do sol e, à noite, um céu cheio de estrelas. Ainda há cobras, normalmente vinda de uma outra rua, cheia de prédios e carros, de onde as pobrezinhas fogem. Mas ainda há esperança e flores, que colorem a vida e perfumam o amanhã.
Postar um comentário