terça-feira, 10 de março de 2009

Liberdade para Cesare Battisti!

As próximas semanas são decidivas para o desfecho do caso Cesare Battisti. Nos últimos dias, a imprensa brasileira tem buscado repercutir uma agenda negativa em relação a essa questão, amplificando ações isoladas para fazer delas a referência. Sabemos que não é assim. O italiano Battisti tem recebido o apoio da esquerda brasileira e de muitos movimentos sociais.

Abaixo, um artigo do diretor de movimentos sociais da UNE, Juliano Medeiros, que esteve com Battisti há cerca de 20 dias, em Brasília.



Liberdade para Cesare Battisti!

“Como explicar essa Itália que esqueceu sua recente pobreza, seus imigrantes tratados como cachorros, que morriam nas minas belgas, alemãs e francesas? Que esqueceu seu fascismo, nunca enterrado, suas tentativas de golpe de Estado, a máfia no poder, a estratégia de tensão, Gladio, as bombas do serviço secreto nas praças públicas, as torturas aos militantes comunistas, esses mesmos que, não obstante seus erros, rasgaram sua vida para fazer da Itália um país a altura da Europa e que hoje, trinta e cinco anos depois, são tratados como terroristas? (...) De toda maneira, a história não se julga nos tribunais; nossos juízes só poderão ser os que virão lutando por uma sociedade mais justa. Somente eles nos julgarão imparcialmente”

(Cesare Battisti)

Dias atrás, integrei um grupo composto por representantes dos movimentos sociais, partidos de esquerda e representações parlamentares que se reuniu com o escritor e ex-ativista político italiano Cesare Battisti, no Presídio da Papuda, em Brasília. Durante os quase trinta minutos de conversa, ao contrário da imagem difundida pela grande imprensa dentro e fora do Brasil (“terrorista” e “assassino” são termos comumente utilizados pela mídia em geral), Battisti mostrou-se um homem gentil e atencioso. Ele riu, vestiu a camiseta da UNE, agradeceu pela solidariedade dos movimentos sociais e compartilhou sua preocupação quanto ao desfecho do processo de extradição movido junto ao governo brasileiro.

Condenado à prisão perpétua na Itália sob a acusação de homicídio, Cesare foi preso no Brasil em março de 2008. Está, portanto, há quase um ano atrás de grades brasileiras. Diante do pedido de extradição feito pela justiça italiana, Cesare requisitou asilo político ao Brasil. O pedido foi negado pelo Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), órgão do Ministério da Justiça, mas acolhido pelo Ministro Tarso Genro. Desde então, o caso tem tomado proporções de incidente diplomático.

Mas afinal, o que há por trás do pedido de extradição do ex-ativista por parte do governo da Itália? Quais os fundamentos das acusações feitas a Battisti? Qual a situação de outros ativistas em outros países do mundo? Qual deve ser a posição do governo brasileiro? Diante de tantas perguntas, existem outras tantas respostas, diversas e contraditórias.

Cesare Battisti integrou, entre 1976 e 1978, o grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), pequeno coletivo que integrou a luta armada na Itália no final dos anos setenta, sendo um dos numerosos grupos oriundos de uma vertente do movimento autônomo denominada Autonomia Operária. Diferentemente das Brigadas Vermelhas, os PAC eram um grupo pouco estruturado, de organização horizontal, com vários núcleos independentes que podiam conduzir e reivindicar ações armadas livremente.

Em 1979, Cesare é preso e condenado por “crime de subversão” (e não homicídio), fugindo da prisão dois anos depois. Em 1986 é acusado pelo assassinato de dois comerciantes e dois policiais a partir da denúncia de Pietro Mutti, ex-dirigente dos PAC beneficiado pela “Lei dos Arrependidos”. Em 1990, refugiado no México e alegando inocência, Cesare é condenado à prisão perpétua pelo envolvimento nos quatro homicídios. De fato, os PAC reivindicaram os atentados, porém, mesmo o processo que o condenou em 1979 reconhece que Cesare Battisti nunca foi dirigente dos PAC nem “mentor” de operações desta importância. Aliás, na época dos assassinatos, quando das investigações, nunca se levantou a hipótese de Battisti ter feito parte das ações. Foi apenas a partir das acusações de Pietro Mutti que ele passou a integrar o leque de suspeitos.

Pietro Mutti foi peça-chave nas denúncias contra Battisti: só através de seu depoimento as investigações puderam ser retomadas. Segundo a “Lei dos Arrependidos”, militantes presos por participação na luta armada teriam suas penas abrandadas caso denunciassem seus companheiros, contribuindo com a prisão e com o conseqüente desmantelamento das organizações. Pietro Mutti assim o fez, denunciando Battisti, então foragido, como responsável pelos homicídios. Entretanto, com exceção das denúncias feitas por Mutti e do cruzamento de informações feito pela polícia, não há qualquer prova do envolvimento de Battisti nos assassinatos a ele imputados. Além disso, uma ex-militante dos PAC, denunciada por Mutti como cúmplice de Battisti nos assassinatos, foi libertada em 1994 por falta de provas.

Chama atenção ainda, a série de dúvidas que pairam sobre o processo que resultou na condenação de Battisti. Como afirma o escritor Valerio Evangelisti “o processo estava viciado de pelo menos três elementos: o recurso à tortura para estorcer confissão à época da investigação, o uso de testemunhas menores ou com distúrbios mentais, a multiplicação das imputações com base nas declarações de um arrependido de confiabilidade incerta”.

Quanto à prisão no Brasil, é inegável que o governo brasileiro e a Polícia Federal fizeram, num primeiro momento, o trabalho sujo dos seus colegas europeus. A prisão de Cesare Battisti foi divulgada com estardalhaço, como mais uma peça de marketing das forças policias brasileiras. Porém, a repercussão do caso fez com que, em seguida, o Ministério da Justiça passasse a tratá-lo com a devida importância. Com o parecer do CONARE, contrário à concessão do asilo político a Battisti, o Ministro tomou para si a responsabilidade e aceitou, ele próprio, o pedido. Como bem lembra o jornalista Rui Martins, “o Brasil anistiou todos quantos participaram dessa época, durante a ditadura militar. Uma anistia que beneficiou também os profissionais da tortura, que não eram movidos por nenhum ideal de mudar o mundo e justiça social. Fazer uma exceção a esse princípio seria um contrasenso e uma injustiça”. Assim, Tarso Genro, ex-militante de uma organização clandestina, soube fazer valer, em defesa dos que lutaram, a norma que, no Brasil, transforma torturados e torturadores em indivíduos iguais perante a lei.

Ainda assim, amplos setores – sobretudo na imprensa – seguem defendendo a extradição de Battisti. Entre outras, deve-se destacar a reportagem publicada na revista CartaCapital em sua edição de fevereiro. Nela, uma série de pressupostos fundamentam a defesa da extradição de Battisti, sendo alguns deles: a) nos chamados “anos de chumbo” italianos, havia um Estado Democrático de Direito, exemplo de democracia na Europa; b) não houve tortura ou leis de exceção na Itália dos anos 70; c) os crimes cometidos por Battisti não podem ser enquadrados na categoria de “crimes políticos”.

Os fatos, entretanto, desmentem estes argumentos. A Itália, do fim dos anos 60 ao fim dos anos 80, viveu sob a tensão da luta franca e aberta entre fascistas e comunistas. A operação “Gladio”, montada pelo serviço secreto italiano em conjunto com a CIA e a OTAN, tinha como objetivo levar a cabo uma “estratégia de tensão” salvaguardada pelo Estado italiano, executando dezenas de atentados, como explosões, assassinatos e sequestros, muitos deles imputados a organizações da esquerda armada. Da mesma forma, parece ingênuo presumir, tal como CartaCapital, que por não haver uma ditadura, um “Estado de exceção” como no Brasil, não existisse, por isso, um regime à margem da legalidade. A reportagem afirma que “à época, o mundo civilizado reconheceu que a Itália derrotara o terrorismo sem recorrer a uma única, escassa lei de exceção” e diz que Tarso Genro e os defensores de Battisti querem reescrever a história da Itália. Significa que duplicar compulsoriamente a pena de acusados de “atividade terrorista” não se enquadra como lei de exceção? As inúmeras denúncias de tortura – treze, apenas envolvendo testemunhas do caso Cesare Battisti – são invenções, tal como defendem os militares brasileiros? O fato de não existir, no Código Penal italiano, o crime de tortura não é indício suficiente da pouca disposição da Justiça daquele país em admitir o que se passou nos interrogatórios da Digo, a polícia política italiana?

Além disso, CartaCapital retoma uma importante polêmica: de que forma caracterizar um crime “político”? A Constituição Brasileira é clara ao vedar a extradição de qualquer indivíduo condenado por crime de natureza política. Entretanto, na Itália os crimes pelos quais Battisti foi julgado e condenado à prisão perpétua não são considerados crimes políticos. Ora, as ações das quais Battisti é acusado foram motivadas por razões de que natureza, que não política? Não consideramos, no Brasil, os sequestros realizados pelos militantes da esquerda armada como um crime político? Por que deveríamos agir de outra forma no caso Battisti? A matéria de CartaCapital dá a resposta: os crimes cometidos no Brasil são dignos do epíteto “político” porque foram cometidos contra uma ditadura, enquanto os crimes de Battisti tinham como alvo um “Estado de Direito Democrático” que, em que pesem as ações clandestinas em conjunto com organismos de repressão internacionais, mantinha intacta a legalidade. Porém, essa não parece ser, de fato, a verdadeira história.

Nos anos da Guerra Fria, inúmeros governos alternaram-se no poder na Itália, às vezes em poucas semanas. Como demonstrado pela condenação – ainda que prescrita – de Giulio Andreotti, Primeiro-Ministro acusado de envolvimento com o crime organizado, os principais partidos políticos italianos eram compostos de elementos corruptos, de agentes de governos estrangeiros e mafiosos. A política institucionalizada perdeu totalmente a credibilidade. Nesse clima, logo surgiram forças políticas de esquerda e de direita que formaram organizações de tipo político-militar. Na esquerda estavam, dentre outras, as Brigadas Vermelhas, o Poder Operário e os PAC; de outro lado, os fascistas da Terceira Posição e da Vanguarda Nacional, entre outras. É nesse contexto que irrompe a luta armada.

É disputando a “versão” destes momentos da história recente da Itália que o governo e a Justiça italiana retomam a ofensiva sobre ex-ativistas como Battisti. Com o governo fascista de Silvio Berlusconi, iniciativas como estas buscam fazer frente à luta ideológica que se desenvolve sobre o passado da Itália. Infelizmente, CartaCapital, assume o lado “oficial” de Berlusconi & cia. Cabe destacar, por fim, a reação desigual, por parte da Itália, diante da série de pedidos de extradição de ex-ativistas feitos recentemente. Enquanto o governo italiano abre mão de ameaças e intimidação junto ao governo brasileiro, ao mesmo tempo, aceita resignado a negativa de extradição de Marina Petrella, ex-dirigente das Brigadas Vermelhas, por parte do governo da França.

Portanto, ao governo brasileiro, caberia seguir as palavras do professor Dalmo Dallari, segundo o qual “a concessão do estatuto de refugiado a Cesare Battisti é um ato de soberania do Estado brasileiro e não ofende nenhum direito do Estado italiano nem implica em desrespeito ao governo daquele país, não tendo cabimento pretender que as autoridades brasileiras decidam coagidas pelas ofensas e ameaças de autoridades italianas ou façam concessões que configurem uma indigna subserviência do Estado brasileiro”. A diplomacia brasileira soube, em outros momentos, defender o direito daqueles que, com métodos hoje inadequados, lutaram pela justiça e pela igualdade. A palavra agora está com o Superior Tribunal Federal. Liberdade para Cesare Battisti!

(artigo de Juliano Medeiros, diretor de movimentos sociais da UNE e estudante de História da UFRGS)

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