sexta-feira, 14 de maio de 2010

Hipocrisias politicamente corretas

"Prioridade se verifica por investimento, não por discurso".

Enquanto o senso comum alimenta a ideia de que as mulheres já conquistaram a igualdade, e que tudo o que se diz em contrário é histeria – a despeito dos tantos dados que há por aí -, muitos companheiros da esquerda (em qualquer partido a que estejam filiados) corroboram com essa perspectiva falsa e nociva ao desqualificar as reivindicações programáticas das mulheres organizadas ou ao tratar com jocosidade temas que são fundamentais para a construção de igualdade e justiça.

Alguns assumem a postura do: “tá, deixem-nas falar, eu aceno positivamente com a cabeça, e quando elas forem embora, tudo continua como antes”. Em seus discursos, sempre se lembram das companheiras e saúdam as históricas lutas das mulheres, chegando até a assumir compromisso com o combate à desigualdade. Mas palavras sozinhas não mudam o mundo.

Outros são piores. Fazem tudo isso, e na saída, não é que desprezam. Caçoam, zombam, desqualificam. Por detrás da cortina. Recorrem a pérolas do machismo institucionalizado em frases prontas, ou em pensamentos pré-concebidos, como o desempenho das mulheres ao volante, à sua presença na História, aos atributos sexuais desta ou daquela.

Os dois tipos, na vida privada, não se sentem antirrevolucionários por reproduzir cada centímetro do machismo construído historicamente. Isso se expressa na divisão do trabalho doméstico, ou nos comentários “maldosos”, na conotação sexual dedicada a cada mulher que cruza seu caminho. Sem falar naqueles comportamentos mais “imperceptíveis”, como sair da reunião para fumar quando é uma mulher que está falando, ou não se dirigir às mulheres, mas sim, sempre encontrar um interlocutor homem para negociar política.

Mas tem aqueles, também, que explicitamente subordinam os temas feministas a outros “mais importantes”. Esses restringem o espaço político das mulheres, de suas pautas, de sua plataforma, não têm vergonha nenhuma de afirmar que “isso pode ficar pra outro dia”, e acabam servindo de bucha de canhão daqueles que também pensam assim, mas jamais teriam coragem de dizer, em nome “da esquerda e do socialismo”. Esses acabam sendo explicitamente combatidos, e ficam rotulados de “antifeministas” até pelos demais homens, que, em ocasiões “apropriadas”, riem muito da situação e dão dicas de como passar por aquilo fingindo interesse no assunto, para não ser taxado de inimigo das causas feministas e se queimar.

A direita não merece ser comentada, né, gente? Para a direita não existe desigualdade entre homens e mulheres, não existe opressão, não existe nada a ser transformado nesse sentido. No máximo, há que se garantir um parto tranquilo para elas.

É necessário compromisso real, não só de teatro, para enfrentar a desigualdade e a opressão das mulheres e construir uma nova e justa sociedade. Nós, que, inclusive como marxistas, sabemos que a libertação de um setor oprimido virá pelas mãos e pela luta desse mesmo setor, que nenhuma conquista do povo se deu, até hoje, por concessão do opressor, também sabemos que os companheiros da esquerda, dos movimentos sociais, são aliados nessa luta estratégia, na luta pelo outro mundo possível, e precisamos contar com essa solidariedade para atingir um objetivo que não é nosso, mas de todos e todas que tremem de indignação diante da injustiça.

Para percorrer esse caminho juntos, não devemos ocultar as contradições da luta. Quando defendemos que haja política para garantir mais presença de mulheres nos espaços de poder e decisão, criamos o mecanismo das cotas, que é um mecanismo artificial para combater uma desigualdade que não é mesmo natural. A aplicação delas, ainda que ninguém se sinta à vontade para ser contra, é sempre constrangedora. Busca-se todo tipo de brecha e artifício para não cumpri-las. Desde provocar a desqualificação política e pessoal da candidata ao posto em disputa até flexibilizações da regra de todos os tipos, naturezas e justificativas. E, muitas vezes, firma-se um pacto velado e silencioso pela não denúncia do não cumprimento da norma feminista.

É preciso que se entenda que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço, então, para uma mulher ter poder, um homem tem que perder. Mas não é fácil e é indesejável perder poder, então, está travada a batalha sobre essa contradição. É como já apontava Danielle Kergoat: os homens conhecem os mecanismos da dominação e se utilizam deles sim.

Por isso, quando afirmamos que, da mesma forma que não há feminismo sem socialismo, não há socialismo sem feminismo, não há uma sociedade livre, justa e igualitária se não acabarmos com a desigualdade entre homens e mulheres, entre brancos e negros, espera-se que a compreensão geral, na esquerda, é de que é preciso alterar, inclusive, os padrões de relação que sustentamos hoje, mesmo entre nós, companheiros/as de partido, de movimento, de sindicato. É preciso desafiar-se a olhar além do que se vê. É preciso questionar muita coisa que é “verdade” construída, é preciso romper com um cotidiano que, muitas vezes, nos é favorável.

Sem isso, não existe compromisso efetivo, estou certa disso. E se não houver compromisso efetivo com o feminismo, bem como com o fim do racismo, ninguém vai me convencer de que somos capazes de construir uma sociedade diferente desta.

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