Uma das expressões mais claras de que os vinte anos de ditadura militar não são história bem resolvida para o Brasil é a quantidade de filmes que abordam ou se ambientam nesse período histórico. Entre ficção e não ficção, perpassando alguns diferentes gêneros, os anos de chumbo são frequentemente explorados pelo cinema brasileiro, que parece encontrar ali não somente um palco ou um cenário, mas sim, uma realidade a ser desbravada.
"Diário de uma busca" é uma dessas expressões. O documentário narra a busca da diretora, Flávia Castro, por respostas sobre a misteriosa morte de seu pai, Celso Castro, em 1984. Celso fora exilado político, e passou por seis países até poder voltar ao Brasil, em 1979, com a lei da anistia.
Acontece que, embora procure investigar um período histórico tão invocado, o filme apresenta-se absolutamente original na abordagem e no olhar sobre o momento. Com um belo jogo de metalinguagem, Flávia recupera a história de seus pais, então militantes de organizações de esquerda jogadas à clandestinidade pela ditadura. Eles foram obrigados a sair do país no início da década de 1970, levando os filhos pequenos (Flávia e seu irmão caçula) a lhes acompanharem na jornada. É desde o ponto de vista de uma menina, que começa a narrativa aos 6 anos, que o espectador conhece os fatos.
As duas crianças vivem em meio à fuga, à resistência, mas também, lado a lado com as esperanças e as dores de toda uma geração, muito materializada em seus pais e nas pessoas que com eles se relacionavam. Estranham o fato de não irem à escola, brincam de "fazer reunião" e observam tudo à sua volta. A opção por localizar aí seu relato livra o filme do risco de tornar-se "pesado", mas, ao contrário, envolve o espectador na busca de Flávia e na recomposição de uma infância atípica.
O espectador também tem o prazer de "conversar" com personagens centrais da história. Além de Sandra, a mãe de Flávia, e demais figuras da família; Daniel Aarão Reis, Marco Aurélio Garcia, Flávio Koutzii, Jean Marc Von der Weid (presidente da UNE em 1968) e o saudoso Daniel Bensaid são quem contextualiza o período histórico a partir de suas memórias políticas e da relação com Celso Castro e sua família.
Ao longo do filme, a compreensão da morte de Celso fica subordinada à grandiosidade da sua história, contada a partir de relatos, entrevistas, documentos, fotografias; e da dimensão humana de todo aquele processo, evidente, entre outros, nas dezenas de cartas dele, recuperadas por Flávia.
A vida de todo mundo, em qualquer período, é repleta de percalços, obstáculos, grandes imprevistos. Muitas coisas podem mudar para sempre a vida de uma pessoa. Mas, naqueles vinte anos, o Estado brasileiro colocou-se para seus cidadãos como um desses fatores, ou o principal, e isso é algo deveras sério. Sendo assim, independentemente de quem puxou o gatilho naquela tarde, e da razão que levou Celso ao apartamento onde ele se encontrou com a morte, a verdade é que sua vida mudara para sempre em 1964.
Enquanto os arquivos da ditadura permanecerem vergonhosamente sigilosos, enquanto brasileiros e brasileiras forem privados do direito à sua própria história, ainda haverá muito o que se falar sobre ditadura, ainda haverá muito o que se remexer nesse passado. Embora Flávia Castro declare-se, enfaticamente, alguém "não militante", a preciosidade da sua contribuição está justamente em escancarar as vidas que foram afetadas pela brutalidade do regime, e o quanto a desumanidade com que aquela geração foi tratada interferiu na sua forma de olhar o mundo dali por diante.
A história de cada um daqueles personagens teve diferentes desfechos, e opções variadas se apresentaram. Mas jamais será possível ignorar que, a despeito da especificidade do desenvolvimento de cada trajetória pessoal, nenhuma lei de anistia apaga as mortes, os desaparecimentos, tampouco a angústia e as dores que cada uma daquelas pessoas enfrentou. "Diário de uma busca" tem o mérito de ampliar os horizontes desse impacto. A sensibilidade é, afinal, um pressuposto de qualquer militância.
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Veja o trailer do filme:
DIÁRIO DE UMA BUSCA
direção: Flávia Castro
roteiro: Flávia Castro
gênero: documentário
origem: Brasil/França
duração: 108 minutos
tipo: longa-metragem
Em cartaz no CineBancários (Rua General Câmara, 424, centro de Porto Alegre) de 3 a 14 de agosto (exceto dia 8), em três horários: 15h, 17h, 19h.
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Em novembro de 2008, escrevi sobre um episódio que me comoveu muito: a Caravana da Anistia, passando por Caxias do Sul, anistiou o ex-deputado Flávio Koutzii (PT-RS), que é um dos personagens do filme. Pra quem quiser lembrar, clique aqui.
5 comentários:
Lindo texto, Ale.
Já estava com vontade de ver o documentário da Flávia e seu texto só aumentou minha vontade.
Vou ver e volto para comentar.
um beijo.
Alê,
Bom ver que vc retomou seu blog, parabéns pelos textos. Fiquei muito curiosa em assistir ao documentário.
Bjos...
Oi Alê,
Gostei da dica, vou atrás.
Mas eu não acho que o número de filmes que têm a ditadura como pano de fundo reflete como a situação ainda é mal resolvida em nosso país.
Muitos desses filmes, como por exemplo, "O que é isso companheiro?" e "Pra frente Brasil!", são reflexos dessa sociedade que ainda não se dispôs a tratar os traumas. O que eu quero dizer é que simplesmente realizar os filmes, pode não ajudar, ou pode até atrapalhar o necessário processo de reflexão sobre esse terrível período da história do Brasil.
Beijos!
Oi Alexandra, achei bonito teu texto sobre o filme, muito obrigada! beijos Flavia
Bem feliz pelo comentário acima. Eu que agradeço, diretora!
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