terça-feira, 9 de novembro de 2010

Osso duro de roer

Assim como o primeiro, Tropa de Elite 2 é um filmaço. Não à toa, é recorde de público no país, e não à toa, tem sido tão festejado pela mídia. Wagner Moura, realmente, é um dos maiores de sua geração, e o filme o consagra definitivamente: ele está brilhante.

Porém, cabem reflexões (Aliás, que bom! Mérito do filme).

Ao ver Capitão (ou melhor, Coronel) Nascimento na capa da "Veja", celebrado como heroi nacional, concluí que há muito o que se relativizar. O roteiro e a direção são excelentes, não vou eu, mera mortal me intrometendo a falar de cinema, questioná-los. Entretanto, sob um olhar de esquerda, há debates de conteúdo a se fazer.

O que me intriga em Tropa de Elite 2, assim como no primeiro, é justamente a leitura que se faz do heroi Capitão/Coronel Nascimento. Na primeira sequência, Nascimento é apresentado como policial do Bope - altamente dedicado, correto, forte. Tanto que sofre de estresse profundo e tem dificuldades em encaminhar a própria vida privada. O retorno do público, em particular, da classe média, foi mesmo entendê-lo como heroi. Um heroi que tortura, mata "se for preciso", e forma seus pupilos para serem implacáveis contra o crime dos debaixo, mas não consegue vencer a corrupção entre os seus.

Nascimento é um personagem complexo. É preciso um olhar atento para decifrar o conjunto de opiniões que ele expressa entendendo-o dentro de um determinado contexto, não de forma absoluta, não como o porta-voz da ética e da moralidade. O que há de ético na tortura? Que moral admite a morte de tanta gente em decorrência de uma "guerra particular", como no filme (ótimo!) de João Moreira Salles?

Reconhecer Capitão Nascimento como o heroi ético e forte é aderir a uma ética que é a do perdoão às mortes despropositadas, ao abuso de autoridade, à disposição para a limpeza étnica e social, em nome do combate às drogas e à criminalidade que amedrontam a classe média. É como o personagem Fraga diz no segundo filme: impunidade só existe pros de cima. E é Capitão Nascimento quem faz a inexistência de impunidade ser implacável contra os debaixo: as penas aplicadas estão no código penal, mas outras pairam pelo ar e se aplicam igualmente, como se previstas em lei.

O que o primeiro filme apresenta sobre consumo de drogas, tráfico, terceiro setor, corrupção policial, vida nas favelas, vida na universidade foram abordados a partir de certo moralismo reducionista, e às vezes, preconceituoso. Tocou em feridas, certamente. Mas em quais?

Creio que, para o segundo filme, vale o mesmo. Fora do Bope, o agora Coronel assume uma subsecretaria na Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Convive de perto com a política, os políticos, e, como ele mesmo diz, "a cabeça do sistema". Percebe que "o buraco é mais embaixo". Ou mais em cima.

De alguma forma, a relação conflituosa entre Nascimento e Diogo Fraga, militante defensor dos direitos humanos que conquista uma vaga na Assembleia Legislativa fluminense, conduz o filme. Quem narra é Nascimento, portanto, é a partir dele que se vê Fraga. Porém, o público acaba por assimilar a visão do policial de forma acrítica, e a sutileza irônica dos discursos passa despercebida. Os esteriótipos de "bandido bom é bandido morto" e de que militantes dos direitos humanos "defendem bandidos" acabam reforçados pela visão seletiva do espectador.

A arte é composta também pela interpretação que se faz dela, a forma como o receptor a lê a partir das mediações colocadas pela sua experiência individual e coletiva. Minha opinião é de que não se pode ignorar esse aspecto quando se quer transmitir uma mensagem. Ainda mais quando essa mensagem tem sim uma pretensão crítica.

O primeiro confronto entre Fraga e Nascimento exposto pelo filme se dá em ocasião na qual o policial manifesta sua disposição de dar vazão a uma revolta em Bangu I para que os traficantes se eliminem entre si. Explicitamente. É Fraga quem atrapalha o plano. Mas, na sala de cinema onde eu assisti o filme, o público aplaudiu quando um policial desobedeceu as ordens de seu superior para entrar no presídio a fim de assassinar os presos rebelados.

Denunciar as milícias é o ponto forte. Nobre inspiração, opino. Entretanto, reforçar os esteriótipos de que todo mundo é filho da puta não contribui para o enfrentamento das milícias, nem do tráfico, e muito menos - o mais importante -, da desigualdade social brutal que caracteriza o Rio de Janeiro e o Brasil.

Para mim, o grande problema em Tropa de Elite 2, desde uma perspectiva de esquerda, é que ele acaba reforçando a leitura de que a política está integralmente contaminada pelo crime e pela corrupção, corroborando com o afastamento de tantas e tantos, o que legitima, de uma forma ou de outra, a ação das maçãs podres, e enfraquece os muitos e muitas bons combatentes que fazem dessa sua arena. Embora haja o Fraga, há o Fraga sob um olhar "viciado" (com o perdão do trocadilho) de Nascimento, e depois, como a exceção que confirma a regra. Ou como um Dom Quixote.

A política é repleta de oportunistas, coroneis, e sim, chefes de quadrilha. Mas há aqueles e aquelas que disputam opiniões, apresentam projetos, promovem debates públicos, tudo a fim de construir um Brasil diferente. Então, se a crítica não for politizada e certeira, incorre no grave erro de reforçar o reducionismo, o senso comum e mesmo a criminalização da política como um todo. Assim, muitos, ao assistir o que filme lhes exibe, preferem autorreferendar sua solução apática e preconceituosa diante do mundo e da possibilidade de sua transformação.

Nem Wagner Moura nem Padilha, aposto, aprovam esse tipo de interpretação de seu trabalho. Mas se é preciso lutar contra um "sistema", como identifica Nascimento, não basta conhecer seus inimigos. É preciso saber que há, sim, aliados. E que a luta vale a pena. Que Coronel Nascimento não é o super-heroi brasileiro porque não é modelo e porque não é o único. Que o Fraga não é um iludido apaixonado. Se Tropa de Elite 2 tiver como saldo especial o reforço de paradigmas e preconceitos sobre política, pobres e jovens, não ajuda. Mesmo que a intenção não seja essa.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Os descaminhos de uma campanha sórdida, baixa e machista

Mesmo na esquerda, muita gente ainda acha que esse papo de feminismo é "balela". Alguns acham que tudo se resolve com o socialismo, outros acham que nem é verdade que há tanta opressão assim. Normalmente, os dois tipos se acham imunes à prática machista - que reproduzem acriticamente, desapercebidos ou não.

Até por essa razão, entre tantas outras muito importantes, disputar a Presidência da República com uma candidata mulher era um grande desafio. Para lograr, era necessário contornar preconceitos que sugerem que lugar de mulher não é na política, que desqualifica-as e/ou invisibiliza-as.

(Registre-se aqui minha opinião, desde o início, de que Dilma era a melhor candidata que o PT tinha para representar 8 anos de Governo Lula e perspectivas de avanços democráticos e socioeconômicos. Fecha parênteses.)

As dificuldades se colocaram logo de início, e nem vieram de fora. Eu fiquei aborrecida ao chegar à convenção do PT, em junho, e notar que a grande ideia que o marketing apresentava aos petistas para celebrar o fato de termos uma candidata mulher era mostrá-la como "mãezona". "Pátria mãe, Pátria mulher" era o mote da convenção - mesmo tendo havido bela homenagem a diversas lutadoras da história do Brasil, mulheres imprecindíveis como os homens, mas sempre fadadas à invisibilidade.

A questão é: as mulheres podem ser mães, se quiserem. Mas não se reduzem a úteros. Elas podem ser mães, trabalhadoras, militantes, companheiras, amigas, empreendedoras. Suas qualidades profissionais não dependem da sua capacidade de dar à luz. Se elas não forem mães, isso não faz delas menos legítimas ou menos competentes para atuar na política ou em qualquer outro lugar. Maternidade não é destino irremediável, de forma que só sua concretização abre caminho para a felicidade da mulher.

"Ai, mas o marketing apurou via pesquisas qualitativas que...".  Dane-se. Somos capazes de construir um discurso mais avançado, que seja compreensível e sedutor. O que não dá é para continuar legitimando essa ideia conservadora de que o lugar das mulheres no mundo se dá a partir da maternidade, e não junto com ela.

Ok, próximo ponto.

No Jornal Nacional, primeiro turno, a primeira pergunta que Willian Homer Simpson Bonner dirigiu à candidata Dilma foi: "Você passou por inúmeras transformações estéticas, foi difícil?". A candidata teve de perder preciosos segundos do debate político que poderia ter feito para contar a Bonner o que aconteceu com seus cabelos, suas unhas e seu figurino. Nunca antes na história desse país uma pergunta dessas foi feita a um candidato homem. E olhem que não foi privilégio da Dilma construir uma estética para se expor à disputa eleitoral. Imaginem se alguém perguntaria a Maluf por que ele trocou de óculos ou a Aécio por que ele mudou o penteado ou o bronzeado.

Foi ainda durante o primeiro turno que vimos aquela desprezível e fatídica charge que, sob o título "Uma candidata de programa", associava Dilma a uma prostituta. Afinal, às mulheres, a prostituição sempre é uma possibilidade. Se uma mulher te fecha no trânsito, ela é "puta", "vaca", "piranha". Se um homem fecha, é "corno" - e aqueles xingamentos se voltam contra a companheira dele. Toda mulher que participa, de uma maneira ou de outra, do mundo da política já vivenciou ou observou a desqualificação das mulheres a partir desse ponto. É fácil e é violento.

A campanha oficial de Serra não fugiu da mesma linha. No melhor estilo vale-tudo eleitoral, o candidato do PSDB acusava sua concorrente de incompetência e alertava: "ela não vai dar conta". Ora, quanta ingenuidade de quem não percebe que questionamentos dessa natureza nada mais fazem que explorar a histórica discriminação contra a presença das mulheres na política. Política não é lugar de mulher. Precisa ser forte, falar grosso e "por o pau na mesa". Nessa lógica, torna-se risível que uma representante do sexo feminino ouse apresentar-se para o mais alto cargo da República. Blasfêmia! "Ela não vai dar conta" expressa uma linha de campanha que opta de forma consciente e perversa por acentuar os preconceitos machistas para poder se valer deles na disputa eleitoral. Igualzinho Maitê Proença, em frase fascistoide, havia recomendado no início da campanha.

Daí à centralidade dada à criminalização das mulheres no início do segundo turno, um passo. Nunca antes na história desse país a questão do aborto foi imposta como pauta de campanha, e de maneira tão torpe. Candidata mulher tem que falar de aborto. Tem que ser remetida para assuntos da vida privada e da intimidade das outras mulheres. Candidata mulher tem que temer a Deus mais que os homens, afinal, são mulheres, esses bichinhos pecadores, que nem Eva, que fez o pobre do Adão morder a maçã.

A questão do aborto foi contrabandeada, nesta campanha, até por quem já assumiu declaradamente sua posição favorável à descriminalização, como a Folha de S. Paulo. Porém, assim como Serra, em calhordice explícita (qualificação então dada por Ciro Gomes), decidiu utilizar-se do preconceito e até da desinformação para promover ódio religioso contra a candidata Dilma e, claro, contra as mulheres e sua busca por autonomia sobre seus corpos. Essa hipocrisia surtada prestou um desserviço para as mulheres, mandou o Estado laico pras cucuias e jogou o nível da campanha para baixo da camada do pré-sal.

Daí foi um tal de todo mundo comungar, se confessar e pagar penitência pra ganhar voto do "povo de Deus". Nunca antes na história desse país pareceu que quem ia definir a eleição era Deus. Achei que os ateus e ateias seriam excomungados primeiro e exilados depois, em caso de vitória de qualquer um.

A campanha de Dilma bateu cabeça. Perdeu tempo até encontrar um discurso que superasse a encalacrada sem violentar os próprios princípios. Nesse caminho, houve até dirigente do PT acusando as mulheres pelo insucesso nas andanças. Felizmente, foi devidamente desautorizado pela coordenação da campanha. E então, enfim, Dilma passou a dizer: "Prefiro atender as mulheres do que prendê-las". Bingo.

Enquanto isso, a Justiça Eleitoral apreendeu e proibiu a circulação de panfletos, em tese, assinados por três bispos da CNBB, que acusavam Dilma, o governo e o PT de defender o aborto até o nono mês de gestação; e solicitavam que o povo não votasse em quem é a favor da legalização do aborto. Ninguém me convence de que os panfleteiros que distribuíram esse material o faziam por devoção a Deus. Aliás, proibido ou não, os panfletos foram distribuídos até o dia da eleição.

E, pra coroar a brilhante e digna campanha, com direito a tantas pérolas do vice trapalhão, que valeriam um texto à parte, José Serra terminou a jornada pedindo às mulheres bonitas que ganhassem 15 votos para ele. Pronto. Fechou com chave de ouro, reafirmando que o grande trunfo das mulheres em qualquer disputa que travem é o fato de disporem de uma vagina. Isso depois ainda de ter pagado mico internacional após fazer tomografia e ficar em repouso durante 24 horas ao ser atingido por uma bolinha de papel. Dignidade pra quê mesmo né?

[Escrevo isso tudo em meio à balbúrdia em torno do racismo e do fascismo descarado contido em declarações de eleitores do Serra via twitter. O ódio dirigido aos pobres, ao povo do Nordeste (aonde esse tipo de gente vai passar suas férias de verão, sem se importar em explorar seu povo, suas mulheres, seu meio-ambiente), chega a ser assustador. Porque desvelado? Não, porque existente. Inacreditável. Que tenha consequências. Fecha colchetes.]

Numa campanha que atingiu índices de despolitização assombrosos e com manifestações explícitas e desavergonhadas de baixaria eleitoral, fizeram falta iniciativas de superar todo esse mar de lama de forma respeitosa para com o povo brasileiro. Eu queria ter visto Dilma mostrar na TV os feitos do Governo Lula para melhorar a vida das mulheres, afinal, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) tem muito o que mostrar. Boa parte das ações do governo incidiram positivamente sobre a vida das mulheres, destaque para a política para a agricultura familiar, a economia solidária e a valorização do salário mínimo, por exemplo.

Agora, passados os festejos pela vitória de Dilma, de Lula, do PT; ou pela derrota de Serra, do PSDB, do DEM, do conservadorismo extremo e da direita; é hora de arregaçar as mangas ainda mais. Superamos todos esses processos, não sem dor. Não foi fácil atravessar esta campanha. E se elegemos a primeira mulher presidenta do Brasil, esperemos que ela represente no Planalto o combate à sordidez machista que se enfileirou contra ela nesta eleição, mas que oprime tantas e tantas mulheres cotidianamente no Brasil e no mundo. Não podemos recuar nesse enfrentamento, nem subordiná-lo a outras "prioridades".

Não vou desejar sorte ou força a Dilma, isso eu sei que ela tem. Eu gostaria mesmo é que, ao final de seu governo, um saldo muito especial dele fosse esse: mulher pode SIM - como a presidenta mesma destacou. E que nunca mais na história desse país a gente seja obrigada a vivenciar tanto machismo na munição de uma campanha. Isso doi bem mais que bolinha de papel.