quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Os descaminhos de uma campanha sórdida, baixa e machista

Mesmo na esquerda, muita gente ainda acha que esse papo de feminismo é "balela". Alguns acham que tudo se resolve com o socialismo, outros acham que nem é verdade que há tanta opressão assim. Normalmente, os dois tipos se acham imunes à prática machista - que reproduzem acriticamente, desapercebidos ou não.

Até por essa razão, entre tantas outras muito importantes, disputar a Presidência da República com uma candidata mulher era um grande desafio. Para lograr, era necessário contornar preconceitos que sugerem que lugar de mulher não é na política, que desqualifica-as e/ou invisibiliza-as.

(Registre-se aqui minha opinião, desde o início, de que Dilma era a melhor candidata que o PT tinha para representar 8 anos de Governo Lula e perspectivas de avanços democráticos e socioeconômicos. Fecha parênteses.)

As dificuldades se colocaram logo de início, e nem vieram de fora. Eu fiquei aborrecida ao chegar à convenção do PT, em junho, e notar que a grande ideia que o marketing apresentava aos petistas para celebrar o fato de termos uma candidata mulher era mostrá-la como "mãezona". "Pátria mãe, Pátria mulher" era o mote da convenção - mesmo tendo havido bela homenagem a diversas lutadoras da história do Brasil, mulheres imprecindíveis como os homens, mas sempre fadadas à invisibilidade.

A questão é: as mulheres podem ser mães, se quiserem. Mas não se reduzem a úteros. Elas podem ser mães, trabalhadoras, militantes, companheiras, amigas, empreendedoras. Suas qualidades profissionais não dependem da sua capacidade de dar à luz. Se elas não forem mães, isso não faz delas menos legítimas ou menos competentes para atuar na política ou em qualquer outro lugar. Maternidade não é destino irremediável, de forma que só sua concretização abre caminho para a felicidade da mulher.

"Ai, mas o marketing apurou via pesquisas qualitativas que...".  Dane-se. Somos capazes de construir um discurso mais avançado, que seja compreensível e sedutor. O que não dá é para continuar legitimando essa ideia conservadora de que o lugar das mulheres no mundo se dá a partir da maternidade, e não junto com ela.

Ok, próximo ponto.

No Jornal Nacional, primeiro turno, a primeira pergunta que Willian Homer Simpson Bonner dirigiu à candidata Dilma foi: "Você passou por inúmeras transformações estéticas, foi difícil?". A candidata teve de perder preciosos segundos do debate político que poderia ter feito para contar a Bonner o que aconteceu com seus cabelos, suas unhas e seu figurino. Nunca antes na história desse país uma pergunta dessas foi feita a um candidato homem. E olhem que não foi privilégio da Dilma construir uma estética para se expor à disputa eleitoral. Imaginem se alguém perguntaria a Maluf por que ele trocou de óculos ou a Aécio por que ele mudou o penteado ou o bronzeado.

Foi ainda durante o primeiro turno que vimos aquela desprezível e fatídica charge que, sob o título "Uma candidata de programa", associava Dilma a uma prostituta. Afinal, às mulheres, a prostituição sempre é uma possibilidade. Se uma mulher te fecha no trânsito, ela é "puta", "vaca", "piranha". Se um homem fecha, é "corno" - e aqueles xingamentos se voltam contra a companheira dele. Toda mulher que participa, de uma maneira ou de outra, do mundo da política já vivenciou ou observou a desqualificação das mulheres a partir desse ponto. É fácil e é violento.

A campanha oficial de Serra não fugiu da mesma linha. No melhor estilo vale-tudo eleitoral, o candidato do PSDB acusava sua concorrente de incompetência e alertava: "ela não vai dar conta". Ora, quanta ingenuidade de quem não percebe que questionamentos dessa natureza nada mais fazem que explorar a histórica discriminação contra a presença das mulheres na política. Política não é lugar de mulher. Precisa ser forte, falar grosso e "por o pau na mesa". Nessa lógica, torna-se risível que uma representante do sexo feminino ouse apresentar-se para o mais alto cargo da República. Blasfêmia! "Ela não vai dar conta" expressa uma linha de campanha que opta de forma consciente e perversa por acentuar os preconceitos machistas para poder se valer deles na disputa eleitoral. Igualzinho Maitê Proença, em frase fascistoide, havia recomendado no início da campanha.

Daí à centralidade dada à criminalização das mulheres no início do segundo turno, um passo. Nunca antes na história desse país a questão do aborto foi imposta como pauta de campanha, e de maneira tão torpe. Candidata mulher tem que falar de aborto. Tem que ser remetida para assuntos da vida privada e da intimidade das outras mulheres. Candidata mulher tem que temer a Deus mais que os homens, afinal, são mulheres, esses bichinhos pecadores, que nem Eva, que fez o pobre do Adão morder a maçã.

A questão do aborto foi contrabandeada, nesta campanha, até por quem já assumiu declaradamente sua posição favorável à descriminalização, como a Folha de S. Paulo. Porém, assim como Serra, em calhordice explícita (qualificação então dada por Ciro Gomes), decidiu utilizar-se do preconceito e até da desinformação para promover ódio religioso contra a candidata Dilma e, claro, contra as mulheres e sua busca por autonomia sobre seus corpos. Essa hipocrisia surtada prestou um desserviço para as mulheres, mandou o Estado laico pras cucuias e jogou o nível da campanha para baixo da camada do pré-sal.

Daí foi um tal de todo mundo comungar, se confessar e pagar penitência pra ganhar voto do "povo de Deus". Nunca antes na história desse país pareceu que quem ia definir a eleição era Deus. Achei que os ateus e ateias seriam excomungados primeiro e exilados depois, em caso de vitória de qualquer um.

A campanha de Dilma bateu cabeça. Perdeu tempo até encontrar um discurso que superasse a encalacrada sem violentar os próprios princípios. Nesse caminho, houve até dirigente do PT acusando as mulheres pelo insucesso nas andanças. Felizmente, foi devidamente desautorizado pela coordenação da campanha. E então, enfim, Dilma passou a dizer: "Prefiro atender as mulheres do que prendê-las". Bingo.

Enquanto isso, a Justiça Eleitoral apreendeu e proibiu a circulação de panfletos, em tese, assinados por três bispos da CNBB, que acusavam Dilma, o governo e o PT de defender o aborto até o nono mês de gestação; e solicitavam que o povo não votasse em quem é a favor da legalização do aborto. Ninguém me convence de que os panfleteiros que distribuíram esse material o faziam por devoção a Deus. Aliás, proibido ou não, os panfletos foram distribuídos até o dia da eleição.

E, pra coroar a brilhante e digna campanha, com direito a tantas pérolas do vice trapalhão, que valeriam um texto à parte, José Serra terminou a jornada pedindo às mulheres bonitas que ganhassem 15 votos para ele. Pronto. Fechou com chave de ouro, reafirmando que o grande trunfo das mulheres em qualquer disputa que travem é o fato de disporem de uma vagina. Isso depois ainda de ter pagado mico internacional após fazer tomografia e ficar em repouso durante 24 horas ao ser atingido por uma bolinha de papel. Dignidade pra quê mesmo né?

[Escrevo isso tudo em meio à balbúrdia em torno do racismo e do fascismo descarado contido em declarações de eleitores do Serra via twitter. O ódio dirigido aos pobres, ao povo do Nordeste (aonde esse tipo de gente vai passar suas férias de verão, sem se importar em explorar seu povo, suas mulheres, seu meio-ambiente), chega a ser assustador. Porque desvelado? Não, porque existente. Inacreditável. Que tenha consequências. Fecha colchetes.]

Numa campanha que atingiu índices de despolitização assombrosos e com manifestações explícitas e desavergonhadas de baixaria eleitoral, fizeram falta iniciativas de superar todo esse mar de lama de forma respeitosa para com o povo brasileiro. Eu queria ter visto Dilma mostrar na TV os feitos do Governo Lula para melhorar a vida das mulheres, afinal, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) tem muito o que mostrar. Boa parte das ações do governo incidiram positivamente sobre a vida das mulheres, destaque para a política para a agricultura familiar, a economia solidária e a valorização do salário mínimo, por exemplo.

Agora, passados os festejos pela vitória de Dilma, de Lula, do PT; ou pela derrota de Serra, do PSDB, do DEM, do conservadorismo extremo e da direita; é hora de arregaçar as mangas ainda mais. Superamos todos esses processos, não sem dor. Não foi fácil atravessar esta campanha. E se elegemos a primeira mulher presidenta do Brasil, esperemos que ela represente no Planalto o combate à sordidez machista que se enfileirou contra ela nesta eleição, mas que oprime tantas e tantas mulheres cotidianamente no Brasil e no mundo. Não podemos recuar nesse enfrentamento, nem subordiná-lo a outras "prioridades".

Não vou desejar sorte ou força a Dilma, isso eu sei que ela tem. Eu gostaria mesmo é que, ao final de seu governo, um saldo muito especial dele fosse esse: mulher pode SIM - como a presidenta mesma destacou. E que nunca mais na história desse país a gente seja obrigada a vivenciar tanto machismo na munição de uma campanha. Isso doi bem mais que bolinha de papel.

3 comentários:

Sandro Félix disse...

Texto irretocável, concepção do imprescindível.
Parabéns!
Sandro Félix

Diana Melo disse...

Muito bom o texto, Alessandra. Divulguei para meus contatos no facebook.

Abraço

Diana Melo
feminista
advogada
extensionista - colaboradora dos projetos PLPs-DF e Atendimento a Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar - UNB

Alessandra disse...

Agradeço muito pelos elogios. Valeu mesmo! Abraços.