quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Viver como se pensa

- Oi, Marcinho.
- Oi.
- Por que você sumiu?
- Ah, tenho andado ocupado.
- Poxa, o que pode ser mais importante que nós pra você desaparecer assim?
- Ah, sabe, coisas pra fazer, família, umas coisas pra resolver.
- Entendo... sentimos sua falta.
- É, eu faço vocês rirem.
- Não seja bobo, menino.
- Não faço falta, Lu, por isso achei que podia dar um tempo.
- Como assim???
- Ué.
- Precisamos de você no grupo, e não é pra rir.
- Estive pensando um pouco, Lu, precisava desse tempo.
- Ah, agora sim. Fale a verdade. Diga: em que pensava?
- Eu preciso cuidar da vida um pouco... ser bom em alguma coisa. Arranjar o que fazer.
- Mais ainda pra fazer??
- É.
- Não tens o bastante com o grupo?
- Não, não faço nada lá.
- Hum, fale sobre isso.
- Olha, Lu, você, por exemplo. Você fala muito bem.
- Obrigada... mas e daí?
- Você fala bem, é importante pra um grupo político. Tem o dom da palavra. As pessoas prestam atenção quando você começa a discursar, você consegue tornar claras coisas que todo mundo acha difícil ou que ninguém sabe como explicar. Você consegue emocionar as pessoas. Você é fundamental pra nós porque sabe fazer isso.
- Estou sem jeito.
- Tentei fazer igual... mas não consigo, não tenho essa vocação. Então tentei ser como a Maria.
- E o que tem a Maria?
- A Maria tem o respeito das pessoas do bairro, todo mundo conhece ela. Ela não fala bem em público como você, mas fala bem em particular. As pessoas confiam nela, procuram por ela. É impressionante. Mas eu sou tímido demais, nem isso posso fazer.
- Tô achando esta conversa tão estranha...
- E tem o Leão.
- Que é tímido como você.
- É, mas sempre tem boas ideias. Ele que inventa quase tudo que a gente faz.
- Um cara criativo.
- Elaborador.
- Sim.
- A Iara e o João parece que são de aço, não têm medo de trabalho, não têm medo de ninguém. Vão e fazem, sem tempo feio. Trabalham muito! Sempre terminam o que começam. E eu, que sou tão disperso...
- Marcinho, onde você quer chegar?
- Eu não tenho função, Lu. Eu não sei falar em público, não sei falar em privado, não sou criativo e sou disperso. Às vezes acho que sou carregado por vocês...
- Quanta bobagem, Marcinho. Somos um grupo político composto por pessoas.
- Sim, pessoas talentosas. Qual o meu talento?
- Manter a gente como grupo.
- Ahn?
- Não vê? Um grupo de pessoas não é uma engrenagem. Não tem máquina a ser programada ou parafuso a ser apertado. Mas tem conflito a ser moderado, ego a ser controlado, tensão a ser amenizada... gente pra ser entendida, gente pra levar bronca e elogio. Política é lado humano, se não, não funciona.
- E daí?
- Você dá essa liga. A nossa coesão tem em você um impulsionador essencial. Percebe?
- Isso não é trabalho.
- Por quê? Trabalho é o que você pode classificar numa profissão? Que você pode quantificar em reais?
- Eu nunca estudei, como vocês estudaram para fazerem o que fazem. Eu sou assim e pronto.
- Por isso é que deve ser mais difícil cumprir esse papel... ninguém ensina.

O diálogo é imaginário. As pessoas são fictícias, e a história é, obviamente, uma caricatura. Na política e na vida, ninguém faz uma coisa só. Mas é verdade que é importante que haja as pessoas que “dão a liga”. Aquelas que mantêm o grupo coeso porque entendem. Porque mediam. Porque dedicam seu tempo a coisinhas que não são “trabalho” strictu senso, mas cansam igual e exigem habilidade, em larga medida.

Mas até entre nós, que queremos mudar o mundo, hierarquizamos diferenças. Reproduzimos o machismo, o racismo, a homofobia, o preconceito de classe... e valoramos as coisas, os trabalhos, as pessoas da mesma forma que o mundo que queremos mudar faz. E daí, quem tem algumas dificuldades e outras facilidades tem mais obstáculos para seguir na caminhada.

O Marcinho não saiu do grupo porque a Lu percebeu isso a tempo. Foi uma reflexão coletiva que o grupo fez. É uma questão de ter vontade de não reproduzir, mesmo se a situação nos favorece, nos valoriza. Já que defendemos a solidariedade entre os povos, entre os trabalhadores e trabalhadoras, podemos exercitar a solidariedade entre nós. Podemos nos desafiar, desde a nossa experiência militante, a pensar trabalho como algo para além do que o mercado de trabalho nos apresenta. A questionar o valor que tem cada coisa, e quem deu, e com base em quê.

Agora, o pessoal não sai da sala ou começa a conversar durante uma fala do Marcinho na reunião. Agora, procuram consultar o que ele acha. Agora, tentam envolvê-lo também nas coisas que ele quer fazer, não só na tarefa que sobra pra ele. Contribuem para a formação dele não só o inscrevendo em cursos e atividades que às vezes ele não entende. Fazem disso um esforço cotidiano. É um exercício, pro Marcinho e pra eles. Mas tem dado certo.

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