quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Senhor Samba #4 - A arquiduquesa do Encantado

"Noel foi quem acreditou em mim, desde o primeiro dia em que eu vi um microfone na vida.

Eu morava no Encantado, um subúrbio um pouco longe, e vivia cantando em festinhas... Eu cantei no candomblé da Paulina, na rua Borges Reis. Cantei na escola de samba 'Somos de pouco falar', no largo da Abolição. Cantei em coro de igreja protestante, no Méier. Mas isso tudo não rendia dinheirinho, e eu estava precisando de arrumar uma nota. Já estava farta de cantar de graça, e quem canta de graça é galo, mas tem certos direitos no terreiro.

Aracy de Almeida
Diante disso, eu estava louca para ir para o rádio, porque o rádio era a sensação daquela época, lá
pelas bandas de 1932, 33, né? E apareceu lá um rapaz, um matusquela lá no Encantado, que era amigo de Custódio Mesquita. Eu arrumei uma roupinha melhorzinha que eu tinha, que não era lá muito legal, mas servia, né?, e fui até a avenida Rio Branco, pela primeira vez na minha vida, que eu não conhecia a cidade, nem nada. Era um verdadeiro xavante.

Custódio Mesquita estava lá, e me ensaiou um samba. Mas eu não estava dando no couro, porque eu estava muito nervosa, a primeira vez com um piano na minha frente pra me acompanhar! Eu aí resolvi partir pra marcha, porque marcha era mais fácil, era uma espécie de bossa-nova, qualquer tom servia e era naquela base, né?

Custódio aí disse:

- Tá bom Aracy, eu vou te levar então até a Rádio Educadora do Brasil.

Quando acabei de cantar aquela marchinha no programa de Pinóquio, eu... apareceu uma figurinha formidável, assim magrinha, assim, de terno de flanela branca, assim, uma gravata branca, camisa azul-marinho, sapato branco, muito bem vestido. Apareceu o Noel Rosa. E parece que foi pra me dar assim um pouco de alento, uma colherzinha de chá, vamos dizer assim, né? Disse:

- Aracy, eu gostei muito. Você cantou muito bem e tal...

Nós ficamos batendo um papo, coisa e loisa.... Nessas alturas, o Noel disse pra mim assim:

- Ô, Aracy?! Vamos tomar uma cerveja Cascatinha na Taberna da Glória?

Lá fui eu pra Taberna da Glória com o Noel, de bonde. Sentamos, encontramos uma porção de malandros conhecidos do Noel: Saturnino, Brancura, Zeca Meia-noite... Ele tinha uns amigos espetaculares, o Noel. Os malandros mais [gargalhando], mais gloriosos da época eram amigos de Noel Rosa. De maneira que, naquela turminha, fiquei eu ali botando as minhas banca, né?, cantando muito, porque eu cantava desde que acordava até que ia dormir. E aconteceu o seguinte: eu fiquei bebendo até de manhã cedo, naquela roda, parecia até que eu já conhecia eles e tal. E afinal de contas, cheguei em casa num porre que não tinha mais tamanho, né? E depois desse porre que eu tomei, eu me emendei com os da Glória:

- Eu pretendo hoje tomar um daqueles gloriosos às onze e meia.”

[Monólogo de Aracy de Almeida extraído do disco "O Samba Pede Passagem" (1965) registro dos melhores momentos do show de mesmo nome realizado em 1965.]


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Uma outra eu

Algo em mim precisa morrer
Para que eu possa viver
Em paz
Dos escombros do velho castelo
Que nunca ergui
Sei que há de emergir

Uma outra eu
Nas linhas a mais
Que hei de escrever
Em dias libertos
De peito aberto
Sem pressa demais

Algo em mim precisa brotar
Para que eu possa optar
Sem dor
Por deixar-te no velho caminho
Em que me perdi
Sei que vou conseguir

Ser outra eu
Nos versos de amor
Que hei de escrever
Em dias inquietos
De peito desperto
Sem dó nem rancor