quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A intolerância machista contra as mulheres

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”
(Clarice Lispector)


O artigo escrito por Carlos Alberto Di Franco para O Estado de São Paulo não chega a surpreender. Quem conhece a trajetória do ilibado professor, sabe da sua profunda identificação com setores mais reacionários e ortodoxos da Igreja Católica.

O Partido dos Trabalhadores é produto da luta democrática, do desejo de homens e mulheres de construir justiça e igualdade. A união de movimentos sociais da cidade e do campo, do novo sindicalismo que surgia, a intelectualidade e a Igreja progressista construiu o PT a partir de experiências da luta concreta do povo brasileiro em sua pluralidade. Dessa forma, é evidente o compromisso histórico do PT com sua democracia interna, bem como a presença valiosa de companheiras e companheiros referenciados na Igreja, notadamente, na Teologia da Libertação.

Os deputados Luís Bassuma e Henrique Afonso, respectivamente, espírita e evangélico, se desfiliaram do PT afirmando que foram “vítimas” de intolerância religiosa. Ora, vejamos. Há muitos espíritas e muitos evangélicos, das mais diversas matizes, entre nós. Há católicos, há presbiterianos, há judeus. Há candomblecistas, umbandistas, anglicanos. Há ateus. Nossa tradição democrática, a mesma que contribuiu com a incipiente democracia brasileira, nos ensina que nenhuma crença deve se impor sobre a outra. Nenhuma é exclusiva no grau de verdade que carrega. Nenhuma pode ser discriminada. Daí, a compreensão nítida de que o Estado é laico. O Estado não pode se orientar por uma ou outra religião, nem pela negação delas, sob pena de incorrer em erros que a humanidade já assistiu muitas vezes.

A ética da política

Dessa forma, quem praticou a chamada intolerância religiosa foram exatamente os dois parlamentares. Foram intolerantes com quem não compartilha de suas crenças – essas sim, de ordem individual. Foram intolerantes com o feminismo, segmento que esteve desde o princípio na construção do PT, e muito disputou até que suas concepções se tornassem um eixo político do partido, parte de seu programa e de suas políticas. Foram intolerantes com a democracia partidária, que define as resoluções e encaminhamentos do partido.

No bojo da discussão da reforma política, está a premissa de que os partidos políticos devem ser fortalecidos diante da atuação individual – porque isso inibe a corrupção e politiza a relação com o eleitorado. Também com base nessa concepção, os mandatos parlamentares são instrumentos do partido de defesa de suas bandeiras, seus princípios, suas opiniões e suas propostas.

É surrealismo imaginar que um mandato parlamentar do PT possa ser usado como instrumento de uma batalha contra uma posição importante do próprio PT. Luís Bassuma e Henrique Afonso não apenas votaram contra orientação partidária. Eles se colocaram como expoentes principais contra uma posição do PT, publicamente, e se utilizando do mandato que lhes foi garantido com votos depositados no partido. A punição a eles determinada pelo Diretório Nacional era o mínimo que se esperava de um partido que se leva a sério.

A base do reacionarismo

Em seu artigo, o professor Di Franco afirma que sua opinião quanto ao aborto tem base, para além da religiosa, filosófica e científica. Pura verborragia. Podemos desafiá-lo a apresentar conceitos da Filosofia ou mesmo conclusões da Ciência que apontem o que ele busca justificar. A Ciência e a Filosofia não estão à disposição de comprovar que se justificam as milhares de mortes de mulheres, todos os anos – em sua maioria, pobres e negras –, em prol de uma dita “defesa da vida”. Não é fato que a vida se inicia na concepção. É mentira que as mulheres são “hospedeiras” de seres humanos autônomos. É mentira que os embriões são organismos completos. Falácias jogadas aos quatro ventos para defender opiniões retrógradas que, entre suas conseqüências, alienam os corpos e as vidas das mulheres, tratando-as como “hospedeiras”, determinando que seu destino, queiram ou não, é a maternidade, e que elas nem sequer podem escolher em que momento querem e podem ser mães.

Esse tipo de raciocínio defendido pelo professor Di Franco é o mesmo que, levado ao extremo, legitimou barbáries na história da humanidade, nas quais sempre o mesmo setor da Igreja esteve envolvido. E como todo propagador desse tipo de idéia, ele usa de argumentos falaciosos com vistas a rotular seu “adversário”.

É, no mínimo, lamentável que um jornalista doutor em Comunicação promova uma infeliz comparação entre legalização do aborto e “eliminação de doentes”. É lamentável porque é manipulação de discurso, e não por meio da ocultação, mas sim, por induzir seu leitor ao erro propositadamente, com o objetivo de desqualificar o interlocutor a princípio.

As mulheres defendem a legalização do aborto há décadas, e já não sofrem o isolamento que o professor nos imputa. Países reconhecidamente conservadores como Portugal e México fizeram o debate e promoveram a regulamentação. Praticamente todos os países ditos “desenvolvidos” têm a prática de aborto regulamentada em seus territórios, o que fez diminuir as mortes de mulheres e a própria prática de aborto.

Liberdade e igualdade

As mulheres não recorrem ao aborto porque querem. Elas recorrem ao aborto porque a hipocrisia de um setor da Igreja insiste em fingir que elas não existem. Porque condena o uso de preservativos. Porque reforça o mesmo machismo que violenta mulheres e que as abandona, muitas vezes, ao enfrentar uma gravidez indesejada.
As mulheres recorrem ao aborto porque não têm saída. Legalizar o aborto é uma forma de incluir essas mulheres. De acabar com a hipocrisia que garante apenas às que podem pagar o acesso a uma clínica clandestina. De prevenir tantas mortes e tantas seqüelas. De apresentar um programa completo, com planejamento familiar e universalização de acesso a métodos anticoncepcionais. Legalizar o aborto é parar de fingir que o problema não existe.

Causa muito incômodo a alguns que as mulheres lutem por sua liberdade e por sua autonomia. Essa luta está no combate à violência sexista, na busca de igualdade no mercado de trabalho, pela socialização do trabalho doméstico, contra a mercantilização do corpo das mulheres. Em todos esses momentos, a luta das mulheres enfrenta a intolerância, mas nunca se retraiu por isso. E foi isso que fez a humanidade caminhar no sentido da igualdade, embora ainda haja um longo caminho a percorrer.

De nossa parte, feministas, nos conforta saber que o discurso que o professor Di Franco representa é de um setor, não de um amplo setor, como ele quer fazer parecer. Muitos companheiros e companheiras da Igreja estão conosco nessa luta.
Liberdade de expressão nós, feministas e petistas, conhecemos bem. Nós ajudamos a construir o conceito. Nunca estivemos do outro lado.

Alessandra Terribili, integrante da Secretaria Nacional de Mulheres do PT e militante da Marcha Mundial das Mulheres

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