Que o Jornal da Globo não deve ser referência para a construção de opinião de ninguém, isso já sabemos. Willian Waack e sua disposição extraordinária para o imperialismo e a direita, com frases de efeito e caras amarradas, são o testemunho principal de que se trata do telejornal mais posicionado politicamente na Rede Globo. Está à direita e não abre mão. Nem a cobertura do futebol escapa.
Ontem, mais uma demonstração disso. Para este artigo, vou me basear no texto disponível no sítio eletrônico do famigerado jornal, porque, obviamente, não decorei a matéria que vi na TV esta madrugada.
A chamada anunciava uma tal pesquisa que dizia que as mulheres não pedem aumento, ou pedem aumento menos que os homens. A relação imediata e automática feita pelo jornal foi exatamente essa: as mulheres ganham menos porque não pedem aumento!
Não sei quem fez a pesquisa, o texto no site não diz. Ela afirma que 44% das mulheres entrevistadas já pediram aumento, contra 48% dos homens. Oh, enorme diferença! Eis aí o motivo da histórica desigualdade salarial. Um número mais expressivo revelava que 28% das mulheres pensam em pedir promoção, contra 39% dos homens.
Simplismo e machismo
Independentemente de se ter ou não acesso a dados e a uma reflexão um pouco mais profunda que um pires, parece-me, no mínimo, estúpido atribuir a desigualdade salarial a quem tem mais ou menos coragem de pedir aumento. E pra fechar com chave de ouro, a reportagem apresentava uma gerente de marketing que confirmava o raciocínio a partir do qual a matéria foi organizada: “Eu acho que quem coloca limitação é a própria pessoa. O mercado, hoje, está aberto”, ela dizia, categórica.
A grande mídia adora usar as exceções que confirmam a regra para culpar o excluído ou excluída pela sua própria exclusão. Mas a reportagem e a edição deveriam ter pesquisado um pouquinho mais. Considerar quando e de que forma as mulheres acessaram o mercado de trabalho. Em quais condições. Em que espaços. Em que contexto econômico. Vamos lá, não é tão sofisticado assim. Seria o bom jornalismo.
Na década de 90, por exemplo, auge da globalização neoliberal, enquanto nos países do centro do capitalismo o emprego feminino se expandiu em atividades de jornada parcial, como medida de flexibilização; nos países da periferia, o emprego feminino cresceu como precário e vulnerável, o que acompanhou e acentuou a tendência de informalização e perda de direitos. Esses postos estavam, principalmente, no setor de comércio e serviços, mais instáveis e mal remunerados (vide “Por quem os sinos dobram?”, artigo de Helena Hirata disponível no sítio da SOF).
Segundo dados divulgados pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal em seu relatório anual 2009/2010, o rendimento médio de homens empregados com carteira de trabalho assinada é de R$1.117,77; enquanto o das mulheres, na mesma posição, é de R$884,82. Entre trabalhadores domésticos sem carteira assinada, no caso dos homens, o rendimento médio é de R$408,96; e o das mulheres, R$301,12. Sabe-se muito bem que, nesta última situação, falamos de um mercado muito majoritariamente feminino.
E é por que elas não pedem aumento que essa situação se mantém?
Vejamos outros dados a serem cruzados com esses primeiros. De acordo com o mesmo relatório, 46% dos homens realizam afazeres domésticos. Entre as mulheres, esse número é de 88%. As mulheres gastam cerca de 25 horas semanais nesses afazeres, enquanto os homens gastam 10.
A taxa de atividade para os homens (proporção da população economicamente ativa em relação à população em idade ativa; considerando-se pessoas com 16 anos de idade ou mais) é de quase 82%. Para as mulheres, 58,5%. E quase 65% das mulheres empregadas estão na informalidade. Todos os dados são da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).
Lé com cré
Será que esses dados simplesmente não se relacionam? E que finalmente o Jornal da Globo nos deu a razão de toda desigualdade e exploração: a timidez das mulheres para pedir aumento???
É de amplo conhecimento que os salários das mulheres são, em média, 75% do dos homens, ocupando mesma função. Não precisam se esforçar muito pra perceber que elas são a camada mais desprotegida da classe trabalhadora, porque ocupam os postos menos valorizados, em espaços de maior instabilidade, e porque estão majoritariamente em empregos informais, sem qualquer garantia de direito. Quando a mulher é negra, a situação fica ainda mais complicada. A exploração da mão-de-obra feminina precisa ser observada desde um prisma mais completo do que a reportagem simplista e machista propõe.
Este humilde artigo não pretende mostrar historicamente como o mercado de trabalho brasileiro se compôs. Recuperar a entrada das mulheres no mercado de trabalho ajuda a entender por que o salário é desigual. Olhar ao mundo ao redor e ver que o machismo ainda é dos seus pilares estruturantes também ajuda. A inserção subordinada no mercado de trabalho não será resolvida por ação individual de mulher nenhuma, nem por benevolência dos patrões. O combate à desigualdade tem que se dar por política pública e por ação organizada das mulheres, que afinal, sempre foi o que levou às conquistas e à transformação do mundo.
5 comentários:
Tá cada dia se superando hein Alessandra! Excelente texto! bj
Concordo contigo no que diz respeito à idéia central do texto. O Jornal da Globo é e foi leviano com a reportagem e atribuir esse fato a falta de pedido de aumento é, no mínimo, falta de matéria ou tendência a induzir a opinião da sociedade com algo sem cabimento.
Entretanto, o contato com algumas entidades na ponta me permite ponderar que um artigo escrito por alguém da SOF não é uma fonte confiável, imparcial, e em alguns casos,sério.
No mais, um artigo com opinião interessante, ainda que eu acredite que o comentário independa de posição política de direita ou esquerda como se refere o início do texto.
mesmo sendo GNT, voce deveria ter assistido ao "Saia Justa". Reprisa amanha, as 17 no canal supracitado.
Nesse sábado, conversando com algumas amigas me indicaram o seu blog. Me lembrei de procurá-lo hoje e tive a felicidade de me deparar com esse texto. Digo isso porque eu estava na quinta-feira a noite ouvindo ao longe a TV ligada no Jornal da Globo e ouvi essa chamada. Fiquei extremamente indignada com a matéria mas principalmente com a chamada que foi algo do tipo "As mulheres que TANTO RECLAMAM dos baixos salários são as que menos pedem aumento". Para além do simplismo com que a questão foi tratada ignorando toda a relação machista na qual o mercado de trabalho brasileiro se assenta, o jornal mostra como é o raciocínio neoliberal e individualista de que quem deve correr atrás é o indivíduo. Enfim, achei bom encontar seu texto porque até agora não tinha visto nenhuma repercussão disso.
Paula, pois é! Foi bem essa a chamada! "As mulheres que tanto reclamam"! Realmente, não dava pra não falar do assunto...
E Guilherme, a SOF é uma entidade séria e confiável, que desenvolve estudos e trabalho com mulheres urbanas e rurais em diversas partes do país, em especial, em SP. E Helena Hirata é uma intelectual reconhecida, com vasta produção na área de gênero e trabalho. Vc devia se despir de preconceitos e conhecer melhor.
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