Aqui estão disponíveis as partes UM, DOIS, TRÊS e QUATRO.
Léo e Laís tinham decidido, de compreensão comum, separar-se. A conversa não havia sido dura, mas muito longa sim. Voltavam de um jantar que reunira diversos amigos, onde os dois se sentiram desconfortáveis. No silêncio de volta para casa, ela quis saber se ele tinha alguém. Assim mesmo, de supetão, mas firme e controlada. Parecia sensata. Era um modo de abordar o tema, numa perspectiva bastante dela.
Léo negou que tivesse se envolvido com outra pessoa, mas aproveitou a chance para dizer que já não via boas possibilidades de os dois continuarem juntos. Daí derivou um longo e denso diálogo, em que não houve gritos, acusações ou palavras ríspidas. O que mais latejava era a percepção nítida do fim, e já não havia forças para promover esforços de conciliação.
As pessoas e as relações fazem sentido em contextos determinados. Quando o sentido se esgota, não é possível transportar alguém de um tempo a outro. Abre-se um mundo, você muda de emprego, de casa, tem a chance de fazer aquela viagem que sempre quis, mas sua parceira ou parceiro nunca se animou para lhe acompanhar. Você começa a praticar algum esporte, fazer algum curso. Sua vida muda, aquela pessoa não pertence mais àquele lugar. De repente, um casal já não combina como outrora. Isso não ocorre de repente, mas é de repente que se percebe.
Os dois choraram um pouco. Deixaram as burocracias para conversar depois. Enfim, abraçaram-se e ele saiu, dizendo que ia respirar ar fresco.
Ao telefone, Verônica ofereceu seus braços para confortá-lo, mas ele tinha que voltar para casa, coerente com a alegação de que não havia outra mulher em sua vida. Dormiu na mesma cama que Laís, sem tocá-la – como, aliás, já vinha se tornando praxe.
Dividiram o mesmo apartamento por alguns dias ainda, e depois, Léo juntou o que tinha – ou, pelo menos, o principal – e levou à casa de um amigo, onde ficaria até dar um rumo definitivo à sua vida. Foi doloroso, mas só porque todo fim é triste mesmo.
Mesmo assim, Léo estava empolgado, sentia-se vivo novamente. Às vezes, sentia culpa por sentir-se bem, mas, na maior parte do tempo, sentia-se muito bem. Encontrava Verônica com frequência e discrição, para que Laís não soubesse e não sofresse. Para que Léo não se sentisse culpado por causar sofrimento à ex-esposa.
Mas como seus olhos traziam as primeiras flores que anunciam a primavera, os amigos não tardaram a notar que havia alguém em sua vida. Para os mais próximos, revelou o que acontecia. Conforme evoluía o namoro, ele já nem queria se esconder.
Numa noite dessas, ele disse a Verônica que a amava.
- Léo, você não acha que estamos avançando rápido demais?
- Eu realmente não estou pensando nisso.
- Você mal saiu de uma relação de sete anos – Verônica mostrava-se reticente – Não acha prudente que vamos com cuidado?
- Eu esperei dez anos para sentir o que estou sentindo agora. Nada vai me convencer de que eu tenho que ir devagar. A menos que você queira assim.
- Não é isso – e lá vem ela sorrir meigamente – Só me preocupo um pouco com você.
Ela se preocupava um pouco com ela mesma. A outra criatura vinha se atirando de cabeça num romance intenso sem cumprir luto nem por um dia, abdicando até da solteirice com que todo ex-casado sonha.
E assim foi, no compasso da ansiedade de Léo por viver seu grande amor da juventude. Logo estavam os dois a sair por aí. Planejavam o próximo feriado, a noite seguinte, o fim do ano.
Não tardou para que Laís soubesse do romance. Braba como sempre foi, e muito à vontade na posição de cobrá-lo – ela o conhecia perfeitamente bem –, Laís procurou Léo. Propôs encontrá-lo num comum horário de almoço para resolver pendências da vida prática, mas avisou de antemão que a pauta seria mais extensa que só afazeres: “quero falar com você”.
Ao confirmar, Léo virou um cravo murcho. Tinha preguiça daquela conversa, tinha medo do que ela poderia lhe deixar de legado. Era uma situação constrangedora: Léo não queria fazer Laís sofrer, mas não havia muito o que explicar. A cobrança o irritava, mas ele sentia que devia explicação. Esse dever o torturava dentro da cabeça, e era como ele não fosse livre para viver sua história com Verônica enquanto Laís não se visse resolvida com o passado.
- Sinto-me exposta diante dos nossos amigos – disse Laís – Você poderia ter esperado meu corpo esfriar para colocar outra mulher na sua cama.
- Ela não tem nada a ver com o fim do nosso casamento, Laís... É só algo que aconteceu.
- Ainda que eu acredite que “é só algo que aconteceu”, aos olhos dos outros, parecerá que fui trocada. Percebe como me sinto?
Ele percebia, e a culpa fazia tanto volume no sangue que poderia entupir as veias a qualquer momento. Não queria morrer disso.
A certa altura, Léo notou que Laís não sabia que sua nova namorada era Verônica. Valeu-se disso para sugerir que o caso não era importante, mas sim, era uma moça com quem passava algum tempo, afinal, todo mundo sabe como são as pessoas recém-separadas, ávidas por novas experiências.
- Não, Léo, eu não sei. Estou muito ocupada com os encaminhamentos do nosso divórcio, e não estava contando os dias para você sair de casa e eu começar a me divertir por aí.
Nada que ele dissesse melhoraria a situação. Então ele se calou, somente ouviu as queixas, deixou que lhe caíssem as sobrancelhas de modo que a expressão fosse a mais triste possível. Pediu desculpas, pediu que ela não se incomodasse, que não pensasse bobagens sobre os momentos prévios à separação. Era só mais um desencontro da vida, afinal. De resto, teriam de conviver um com o outro no trabalho e entre os colegas, seria melhor para ambos que mantivessem uma relação amistosa.
- Foram sete anos, Léo, muita coisa... – ela suspirou – Você acha que ainda podemos ser amigos?
- Exatamente por termos vivido tanta coisa juntos que seria uma pena se não nos tratássemos como bons amigos.
- Você vê problemas em conviver comigo?
- Imagine! O que não faz sentido é você se afastar de espaços que são de nós dois e não deixarão de ser somente porque não somos mais um casal.
Abraçaram-se amistosamente.
A conversa aliviou a consciência de Léo. Agora, ele começava a imaginar que poderia viver sua felicidade sem amarras. Ele narrou a conversa a Verônica, com algumas omissões – não queria que ela soubesse que deixou que Laís entendesse que o romance não era importante. Falava como se estivesse condenado à presença de uma mulher que já não amava, mas que o intimidava. Verônica simplesmente ouvia. Talvez tudo aquilo fizesse parte de um necessário ritual de separação de corpos e de almas.
***
Continua...
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