Eu tenho a impressão que, neste momento sombrio que vivemos, conservar a alegria chega a ser um gesto revolucionário.
Guimarães Rosa afirmou, encarnado em Dito dando conselho a Miguilim, "que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo". É difícil, mas é importante. E não se trata de autoajuda ou coaching for life e nada disso. É que gente triste, entediada, desesperançosa, essa gente não muda a realidade.
Sábado, quando o grupo Praga de Baiano abriu sua apresentação provocando: "não se assuste pessoa se eu lhe disser que a vida é boa", aquilo mexeu com um monte de coisas dentro de mim. Se a alguns cantar isso pode aparentar maluquice ou alienação, eu tenho a plena certeza de que só assim superamos estas trevas. Só iluminando de sorrisos.
Vejo tanta gente adoecendo o meu redor, de doenças da alma, vejo tanto medo e tanta violência nos atos e nas palavras, que se a gente não tiver a alegria para se acolher, se acalentar, eles vencerão. Tanta gente que se deixa contaminar por esse terror todo e se instrumentaliza de insegurança, de desconfiança, de ensimesmamento para poder sobreviver... Eu penso que tem que ser exatamente o contrário.
Não à toa os artistas se tornaram inimigos a serem combatidos. A alegria é poderosa. A arte é poderosa. A memória é poderosa. A generosidade é poderosa Tentarão destruir tudo isso, mas nós as defenderemos.
"Defender a alegria como uma trincheira
defendê-la do escândalo e da rotina
da miséria e dos miseráveis
das ausências transitórias
e das definitivas".
(Mario Benedetti)
Música, feminismo, diálogos, política, futebol, crônica e poesia convivendo no mesmo espaço. E sem conflito.
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segunda-feira, 10 de junho de 2019
segunda-feira, 3 de junho de 2019
Juntas
Uma vez, ao dizer a um interlocutor respeitável, que não gosto de uma cantora famosa, ouvi assim:
- Vocês mulheres são muito cruéis umas com as outras.
É sim verdade. E é sim mentira. Porque a vida é o quê? É dialética mesmo.
Hoje em dia, não me poupo mais de meus gostos e desgostos. Gosto das minhas opiniões formadas, porque as formo à revelia de quem me queria eterna aceitante do que me trazem. Então não, então opino. Gosto e não gosto. Meu gosto. Boto à prova, na serenidade de quem sabe o que quer e tenta saber ouvir. Na insegurança de quem quer sempre ser compreendida, não julgada.
Dizem que as mulheres são bastante competitivas entre si, especialmente nos espaços que mais habitei nesta vida, como Música e Política. E por que será? Desde cedo, sempre percebemos que não há espaço pra todas. São poucas as mulheres que vencem, e essas sempre são usadas para que o status quo afirme que as mulheres sempre podem vencer. É mentira que sempre podem. Os filtros que colocam pra nós são da ordem do MUITO MAIS (mas MUITO MAIS mesmo) que pros homens. Muitos filtros. E eles vêm, principalmente, da vida material. Você sabe por quê Clementina e Jovelina só se tornaram conhecidas depois de terem mais idade?
Pois então. Não xingue nem critique nem muito menos condene as mulheres que têm essa dificuldade, que se veem em disputa, que temem perder o que não têm - seu espaço. De outro lado, nós também vamos entender que não há nada o que fazer se não for juntas. Chega de ser a exceção. Queremos ser a regra.
Sabe o que é mais legal? Tentar fazer realmente um mundo onde caibam TODAS, como cabem os homens. Personalidades, forças, vivências, artes, tudo é diverso, as mulheres são tantas! Eu quero um mundo onde caibam todas. E se não... Por que será que os homens teriam tanto receio das cotas??! Perder espaço? Pois é! Bem-vindoooos!
- Vocês mulheres são muito cruéis umas com as outras.
É sim verdade. E é sim mentira. Porque a vida é o quê? É dialética mesmo.
Hoje em dia, não me poupo mais de meus gostos e desgostos. Gosto das minhas opiniões formadas, porque as formo à revelia de quem me queria eterna aceitante do que me trazem. Então não, então opino. Gosto e não gosto. Meu gosto. Boto à prova, na serenidade de quem sabe o que quer e tenta saber ouvir. Na insegurança de quem quer sempre ser compreendida, não julgada.
Dizem que as mulheres são bastante competitivas entre si, especialmente nos espaços que mais habitei nesta vida, como Música e Política. E por que será? Desde cedo, sempre percebemos que não há espaço pra todas. São poucas as mulheres que vencem, e essas sempre são usadas para que o status quo afirme que as mulheres sempre podem vencer. É mentira que sempre podem. Os filtros que colocam pra nós são da ordem do MUITO MAIS (mas MUITO MAIS mesmo) que pros homens. Muitos filtros. E eles vêm, principalmente, da vida material. Você sabe por quê Clementina e Jovelina só se tornaram conhecidas depois de terem mais idade?
Pois então. Não xingue nem critique nem muito menos condene as mulheres que têm essa dificuldade, que se veem em disputa, que temem perder o que não têm - seu espaço. De outro lado, nós também vamos entender que não há nada o que fazer se não for juntas. Chega de ser a exceção. Queremos ser a regra.
Sabe o que é mais legal? Tentar fazer realmente um mundo onde caibam TODAS, como cabem os homens. Personalidades, forças, vivências, artes, tudo é diverso, as mulheres são tantas! Eu quero um mundo onde caibam todas. E se não... Por que será que os homens teriam tanto receio das cotas??! Perder espaço? Pois é! Bem-vindoooos!
quinta-feira, 30 de maio de 2019
O Sonho, a Vida, a Roda Viva
Assisti pela TV Brasil o show MPB-4 - O Sonho, a Vida, a Roda Viva - 50 Anos Ao Vivo. Sem medo de recorrer ao senso comum da expressão "eu faço parte disso", eu afirmo emocionadamente que é bem o contrário: o MPB-4 faz parte de muito do que sou e, especialmente, do que me tornei ao trazer a Música para o centro da minha vida.
Eu os escuto encantada desde pequena, quando O Pato me enchia de compaixão porque só se dava mal, mas mesmo depois de ir para a panela, continuava quaquarejando e resmungando coisas que eu não entendia, até a música terminar. Comoveram-me todas as parcerias com o Quarteto em Cy, que amo também, e acho que tudo que interpretaram juntos se tornaram versões definitivas - olha que foram algumas das mais belas obras da nossa Música Popular. Entre os primeiros CDs que comprei, estava lá um da coleção Millenium, Quarteto em Cy e MPB-4. Certamente um dos que eu mais ouvi na vida.
Acompanhando esse lindo show ao qual aqui me refiro, dei-me conta de que a influência deles sobre mim é ainda maior do que eu pensava. Aquele repertório comemorativo - aliás: eles sabem melhor do que ninguém escolher repertório -, traz músicas que falam comigo diretamente ao coração, saem pelo corpo carregando meu sangue e, sei lá como, chegam à garganta, e aí eu canto.
A participação especial de Kleiton e Kledir foi o que sacramentou tal percepção. Por que diabos eu cortei essa do set-list, pensei comigo, referindo-me a Vira Virou, que eu queria ter cantado no lançamento do meu Outras Manhãs, mas foi uma das que precisei riscar para que o show coubesse em uma hora e meia. No pot-pourri do bis, lá estão eles a expor a questão amarga de Sidney Miller, Pois É, Pra Quê?, canção afiada à qual destinei a mesma borracha.
Até o que eu não fiz está presente em mim através deles.
Então, sem ter como agradecer o MPB-4 por todas as aulas que já tive com eles nesta vida; eu precisei vir aqui dizer isso pra vocês que me leem: quem tiver a oportunidade de assistir MPB-4 - O Sonho, a Vida, a Roda Viva - 50 Anos Ao Vivo, agarre-a com um abraço afetuoso.
Eu os escuto encantada desde pequena, quando O Pato me enchia de compaixão porque só se dava mal, mas mesmo depois de ir para a panela, continuava quaquarejando e resmungando coisas que eu não entendia, até a música terminar. Comoveram-me todas as parcerias com o Quarteto em Cy, que amo também, e acho que tudo que interpretaram juntos se tornaram versões definitivas - olha que foram algumas das mais belas obras da nossa Música Popular. Entre os primeiros CDs que comprei, estava lá um da coleção Millenium, Quarteto em Cy e MPB-4. Certamente um dos que eu mais ouvi na vida.
Acompanhando esse lindo show ao qual aqui me refiro, dei-me conta de que a influência deles sobre mim é ainda maior do que eu pensava. Aquele repertório comemorativo - aliás: eles sabem melhor do que ninguém escolher repertório -, traz músicas que falam comigo diretamente ao coração, saem pelo corpo carregando meu sangue e, sei lá como, chegam à garganta, e aí eu canto.
A participação especial de Kleiton e Kledir foi o que sacramentou tal percepção. Por que diabos eu cortei essa do set-list, pensei comigo, referindo-me a Vira Virou, que eu queria ter cantado no lançamento do meu Outras Manhãs, mas foi uma das que precisei riscar para que o show coubesse em uma hora e meia. No pot-pourri do bis, lá estão eles a expor a questão amarga de Sidney Miller, Pois É, Pra Quê?, canção afiada à qual destinei a mesma borracha.
Até o que eu não fiz está presente em mim através deles.
Então, sem ter como agradecer o MPB-4 por todas as aulas que já tive com eles nesta vida; eu precisei vir aqui dizer isso pra vocês que me leem: quem tiver a oportunidade de assistir MPB-4 - O Sonho, a Vida, a Roda Viva - 50 Anos Ao Vivo, agarre-a com um abraço afetuoso.
terça-feira, 14 de maio de 2019
Em defesa da Cultura Brasileira
Tem gente que se acha super patriota porque chora quando a seleção de futebol masculino perde.
Pra mim, isso tipo foda-se.
O orgulho que eu sinto é da nossa cultura popular, da arte produzida no Brasil, da Clarice Lispector, do Machado de Assis, do Guimarães Rosa, do Drummond, do Manuel Bandeira, da Cecília Meireles, Carolina de Jesus, do Portinari, da Tarsila, do Mário de Andrade, do Aleijadinho. E de Noel Rosa, Tom Jobim, Chiquinha Gonzaga, Carmen Miranda, Chico Buarque, Baden Powell, Caetano Veloso, Cartola, Candeia, Clementina, Clara Nunes, Elis. A Música é aquela deusa à qual todo mundo tem acesso.
A Música tem sua própria cadeia de produção, e muitos que vivem dela. Para fazer meu show no Clube do Choro no último dia 4, eu precisei de mais do que oito músicos. Alguém fez os arranjos, a direção musical. Alguém produziu o show, ou seja, assegurou materialmente que ele acontecesse. Alguém trabalhou para contatar e divulgar via imprensa, via redes sociais e outras formas de contato. Precisou de designer gráfico. Teve o técnico de som, o iluminador. Precisou de alguém na bilheteria, outro na portaria, precisou de uma equipe de limpeza e de garçons. Antes de tudo isso, alguém trabalha para organizar uma programação, alguém coordena esses processos todos, alguém capta recursos para viabilizar tudo isso, porque o Clube do Choro oferece aos artistas da cidade e ao público uma estrutura para que possamos compartilhar Música e Arte. E ainda tem os fornecedores. E ainda tem a Escola de Choro, professores, material didático, estrutura da escola, funcionários da escola.
O show era de lançamento de um disco, que demandou que alguém o gravasse, mixasse, masterizasse. Precisou de fotógrafo, ilustrador. Houve uma empresa de prensagem.
Olha quantos empregos envolvidos diretamente na cadeia de produção da Música! E estamos falando de um único show, de uma única casa, de um único disco.
Brasília forma e exporta grande músicos, artistas maravilhosos que levam nossa arte para o mundo, como Hamilton de Holanda e Zélia Duncan. Pedro Martins tem estado - agora - nos nossos jornais, reconhecido internacionalmente por sua guitarra tão única e inspirada. E é muito mais gente, muito mais. Gente de fora vem conhecer a Música e os músicos de Brasília. Sabe por quê? Porque Brasília tem a Escola de Choro, o Clube do Choro, a Escola de Música. Porque Brasília tem o FAC, tem espaços públicos onde se pode compartilhar a arte que se produz.
Se você acha muito bom ver o nome de uma empresa pública estampada na camisa de um time de futebol e acha muito ruim que haja políticas públicas de cultura que envolvam leis de incentivo, apoio e financiamento público de projetos culturais de interesse social, então, você realmente não merece morar na cidade que Niemeyer desenhou.
Quando um edital do FAC, que foi encaminhado adequadamente segundo as leis do DF, é cancelado, o fora-da-lei não é o artista não. Os fora-da-lei são o governador e o secretário de cultura, que, ainda mais do que exterminar a cultura da cidade, contribuem para tirar emprego de toda essa turma que citamos parágrafos acima.
Todos queremos a reforma do Teatro Nacional. O Governo tem a responsabilidade e o dever de promover a reforma, de devolver o Teatro à comunidade artística e ao povo do Distrito Federal. E ele tem que fazer isso sem desviar dinheiro da comunidade artística e da população. A deputada Érika Kokay, por exemplo, se ofereceu para buscar esses recursos via emenda da bancada federal do DF ao orçamento federal (*). Seus esforços foram rejeitados pelo governador.
Quando um espaço de convivência como o bar A Vizinha sofre uma multa de mais de R$10 mil por proporcionar música aos seus frequentadores durante 4 horas nas tardes de domingo, então estão sendo sacados os empregos dos músicos, dos atendentes, dos cozinheiros. São cancelados contratos com fornecedores de todo tipo, desde a bebida até a tenda. Estão sendo anulados espaços de convivência, de lazer, de arte. Estão nos aplicando um calaboca mesmo.
Um músico, geralmente, é um trabalhador precarizado, que não tem seus direitos trabalhistas assegurados e nenhum tipo de proteção social. Músico, assim como tantos trabalhadores informais ou "free-lancers", quando não trabalha, não recebe. E é a Música do músico que movimenta bares, teatros, centros culturais, que oferece matéria-prima pro rádio, pra festa, pra trilha sonora da sua vida, pro tema do seu romance, pra sua nostalgia. Se você acha isso pouco, então parece que esta sociedade horrível neste momento horrível que vivemos causou danos irreparáveis em você.
Aos que desejam o pleno e absoluto silêncio, recomendo a vida de ermitão. Ficaremos felizes de poder contar com sua ausência. Aos que sabem muito bem o que estão fazendo, recomendo prestarem atenção nas riquíssimas festas que tomam lugar em clubes e estádios, cujo som atravessa a cidade, e contra as quais nunca se move nem uma palha.
Os cachês dos músicos estão congelados há mais de dez anos, quando não retrocederam, em alguns casos. O sujeito paga mais de R$100 pra ir ver seu time no Mané Garrincha, e pede pra tirar da conta o couvert de R$15 da música que ele curtiu a noite toda. O bar não negocia o aluguel de jogos de mesas, a compra de toalhas, as contas de água e de luz, ou com os fornecedores de bebidas e alimentos, mas chora pro músico reduzir seu cachê.
É assim mesmo, desse jeitinho aí.
Cancelar editais do FAC, bem como recusar-se a rever a absurda e antiquada Lei do Silêncio, é censura, é calaboca, é emudecer a cultura e gerar desemprego. Tudo isso orna muito bem com os tempos que vivemos, de subserviência, vira-latice e ignorância relinchante.
Mas sabe outra coisa que orna também? Gritar. Porque calado (a), como nos querem, a gente não fica não.
(*) Nota da deputada Érika Kokay:
"Entrei em contato com o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), na última sexta-feira (10/5) para sugerir que ele mantivesse os recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), com o compromisso desta parlamentar de construir junto à bancada federal do Distrito Federal uma emenda de bancada, para 2020, com o objetivo de reformar o Teatro Nacional. A proposta foi um dos encaminhamentos de audiência pública, realizada na Câmara Federal, no último dia 2 de maio, que discutiu o FAC e a Lei Orgânica da Cultura (LOC).
De forma rude e grosseira, o governador respondeu que as emendas seriam bem-vindas, mas iria, sim, retirar os recursos do FAC para a reforma do Teatro, impedindo o prosseguimento de qualquer diálogo sobre o assunto."
Pra mim, isso tipo foda-se.
O orgulho que eu sinto é da nossa cultura popular, da arte produzida no Brasil, da Clarice Lispector, do Machado de Assis, do Guimarães Rosa, do Drummond, do Manuel Bandeira, da Cecília Meireles, Carolina de Jesus, do Portinari, da Tarsila, do Mário de Andrade, do Aleijadinho. E de Noel Rosa, Tom Jobim, Chiquinha Gonzaga, Carmen Miranda, Chico Buarque, Baden Powell, Caetano Veloso, Cartola, Candeia, Clementina, Clara Nunes, Elis. A Música é aquela deusa à qual todo mundo tem acesso.
A Música tem sua própria cadeia de produção, e muitos que vivem dela. Para fazer meu show no Clube do Choro no último dia 4, eu precisei de mais do que oito músicos. Alguém fez os arranjos, a direção musical. Alguém produziu o show, ou seja, assegurou materialmente que ele acontecesse. Alguém trabalhou para contatar e divulgar via imprensa, via redes sociais e outras formas de contato. Precisou de designer gráfico. Teve o técnico de som, o iluminador. Precisou de alguém na bilheteria, outro na portaria, precisou de uma equipe de limpeza e de garçons. Antes de tudo isso, alguém trabalha para organizar uma programação, alguém coordena esses processos todos, alguém capta recursos para viabilizar tudo isso, porque o Clube do Choro oferece aos artistas da cidade e ao público uma estrutura para que possamos compartilhar Música e Arte. E ainda tem os fornecedores. E ainda tem a Escola de Choro, professores, material didático, estrutura da escola, funcionários da escola.
O show era de lançamento de um disco, que demandou que alguém o gravasse, mixasse, masterizasse. Precisou de fotógrafo, ilustrador. Houve uma empresa de prensagem.
Olha quantos empregos envolvidos diretamente na cadeia de produção da Música! E estamos falando de um único show, de uma única casa, de um único disco.
Brasília forma e exporta grande músicos, artistas maravilhosos que levam nossa arte para o mundo, como Hamilton de Holanda e Zélia Duncan. Pedro Martins tem estado - agora - nos nossos jornais, reconhecido internacionalmente por sua guitarra tão única e inspirada. E é muito mais gente, muito mais. Gente de fora vem conhecer a Música e os músicos de Brasília. Sabe por quê? Porque Brasília tem a Escola de Choro, o Clube do Choro, a Escola de Música. Porque Brasília tem o FAC, tem espaços públicos onde se pode compartilhar a arte que se produz.
Se você acha muito bom ver o nome de uma empresa pública estampada na camisa de um time de futebol e acha muito ruim que haja políticas públicas de cultura que envolvam leis de incentivo, apoio e financiamento público de projetos culturais de interesse social, então, você realmente não merece morar na cidade que Niemeyer desenhou.
Quando um edital do FAC, que foi encaminhado adequadamente segundo as leis do DF, é cancelado, o fora-da-lei não é o artista não. Os fora-da-lei são o governador e o secretário de cultura, que, ainda mais do que exterminar a cultura da cidade, contribuem para tirar emprego de toda essa turma que citamos parágrafos acima.
Todos queremos a reforma do Teatro Nacional. O Governo tem a responsabilidade e o dever de promover a reforma, de devolver o Teatro à comunidade artística e ao povo do Distrito Federal. E ele tem que fazer isso sem desviar dinheiro da comunidade artística e da população. A deputada Érika Kokay, por exemplo, se ofereceu para buscar esses recursos via emenda da bancada federal do DF ao orçamento federal (*). Seus esforços foram rejeitados pelo governador.
Quando um espaço de convivência como o bar A Vizinha sofre uma multa de mais de R$10 mil por proporcionar música aos seus frequentadores durante 4 horas nas tardes de domingo, então estão sendo sacados os empregos dos músicos, dos atendentes, dos cozinheiros. São cancelados contratos com fornecedores de todo tipo, desde a bebida até a tenda. Estão sendo anulados espaços de convivência, de lazer, de arte. Estão nos aplicando um calaboca mesmo.
Um músico, geralmente, é um trabalhador precarizado, que não tem seus direitos trabalhistas assegurados e nenhum tipo de proteção social. Músico, assim como tantos trabalhadores informais ou "free-lancers", quando não trabalha, não recebe. E é a Música do músico que movimenta bares, teatros, centros culturais, que oferece matéria-prima pro rádio, pra festa, pra trilha sonora da sua vida, pro tema do seu romance, pra sua nostalgia. Se você acha isso pouco, então parece que esta sociedade horrível neste momento horrível que vivemos causou danos irreparáveis em você.
Aos que desejam o pleno e absoluto silêncio, recomendo a vida de ermitão. Ficaremos felizes de poder contar com sua ausência. Aos que sabem muito bem o que estão fazendo, recomendo prestarem atenção nas riquíssimas festas que tomam lugar em clubes e estádios, cujo som atravessa a cidade, e contra as quais nunca se move nem uma palha.
Os cachês dos músicos estão congelados há mais de dez anos, quando não retrocederam, em alguns casos. O sujeito paga mais de R$100 pra ir ver seu time no Mané Garrincha, e pede pra tirar da conta o couvert de R$15 da música que ele curtiu a noite toda. O bar não negocia o aluguel de jogos de mesas, a compra de toalhas, as contas de água e de luz, ou com os fornecedores de bebidas e alimentos, mas chora pro músico reduzir seu cachê.
É assim mesmo, desse jeitinho aí.
Cancelar editais do FAC, bem como recusar-se a rever a absurda e antiquada Lei do Silêncio, é censura, é calaboca, é emudecer a cultura e gerar desemprego. Tudo isso orna muito bem com os tempos que vivemos, de subserviência, vira-latice e ignorância relinchante.
Mas sabe outra coisa que orna também? Gritar. Porque calado (a), como nos querem, a gente não fica não.
(*) Nota da deputada Érika Kokay:
"Entrei em contato com o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), na última sexta-feira (10/5) para sugerir que ele mantivesse os recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), com o compromisso desta parlamentar de construir junto à bancada federal do Distrito Federal uma emenda de bancada, para 2020, com o objetivo de reformar o Teatro Nacional. A proposta foi um dos encaminhamentos de audiência pública, realizada na Câmara Federal, no último dia 2 de maio, que discutiu o FAC e a Lei Orgânica da Cultura (LOC).
De forma rude e grosseira, o governador respondeu que as emendas seriam bem-vindas, mas iria, sim, retirar os recursos do FAC para a reforma do Teatro, impedindo o prosseguimento de qualquer diálogo sobre o assunto."
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
Sete Desejos
Eu ouvi essa música uma vez, era de uma novela. Não lembro bem. Era adolescente, eu acho. Ela me trazia uma paz gostosa, um conforto, uma sensação de que a vida vai longe, longe mais do que a vista alcança. Onde a vista não alcança, o sonho chega e conta história.
O sonho sempre me contou história nessa música.
Comecei, a certa altura, a dizer para as pessoas próximas que essa era a música da felicidade. O flamboyant vermelho, a mala azul, a réstia da luz amarela. A vida tem cores! Deitada na rede e, sob a fumaça de um cigarro deliciosamente saboreado, pensar que bom é recomeçar das cinzas. Recompor a paisagem. "Você sabe fazer" - me dizia minha professora de canto.
Essa linda música sempre esteve na minha mente. Às vezes ela se oculta. E volta.
Volta agora de novo. Com o lelelelelelele do Alceu. O destino, o trem que nos transporta. A música como um filme da vida, como uma produtora de imagens mentais, que remexe a alma, busca coisas, salta pra fora, e eu agradeço.
Ao Alceu pela música.
Ao universo, pela generosidade com que tem me tratado.
Que me permita produzir versos tão claros e projetar cada vez mais desejos em cada vez menos cigarros.
O sonho sempre me contou história nessa música.
Comecei, a certa altura, a dizer para as pessoas próximas que essa era a música da felicidade. O flamboyant vermelho, a mala azul, a réstia da luz amarela. A vida tem cores! Deitada na rede e, sob a fumaça de um cigarro deliciosamente saboreado, pensar que bom é recomeçar das cinzas. Recompor a paisagem. "Você sabe fazer" - me dizia minha professora de canto.
Essa linda música sempre esteve na minha mente. Às vezes ela se oculta. E volta.
Volta agora de novo. Com o lelelelelelele do Alceu. O destino, o trem que nos transporta. A música como um filme da vida, como uma produtora de imagens mentais, que remexe a alma, busca coisas, salta pra fora, e eu agradeço.
Ao Alceu pela música.
Ao universo, pela generosidade com que tem me tratado.
Que me permita produzir versos tão claros e projetar cada vez mais desejos em cada vez menos cigarros.
terça-feira, 4 de julho de 2017
Mesmo calado o peito, resta a cuca
A Cultura está sob ataque em todo o país.
Em São Paulo, o prefeito playboy e higienista estrangula tanto o Clube do Choro quanto a Orquestra do Teatro São Pedro; enquanto o pai político dele, o governador, mata a Banda Sinfônica do estado.
Em Porto Alegre, a Fundação Piratini corre risco sério e iminente de extinção. A TVE e a Rádio FM Cultura são espaços privilegiados para circulação e promoção da produção musical de Porto Alegre.
Em Brasília, amanhecemos todos os dias alertas para evitar que metam a mão no FAC (Fundo de Apoio à Cultura).
No Rio, cidade que abrigou as tias baianas que embalaram o samba nos braços, que concebeu a Santíssima Trindade do Samba; o prefeito quer restringir e controlar quase que pessoalmente a ocupação do espaço público por manifestações culturais - inclusive o sagrado samba da Pedra do Sal.
E por aí vai.
Nessas quatro capitais, citei apenas poucos e representativos exemplos do que está havendo. Há muito muito mais. Há muito mais nas demais cidades, nos demais estados, no Brasil em cujo centro de poder os golpistas se instalaram, e mostram, dia após dia, seu desprezo pela arte e pela cultura popular brasileira. Falo de música porque é o que eu conheço mais, mas situações análogas se verificam nas artes cênicas, plásticas, audiovisuais, literatura, nos investimentos em Educação e formação de público.
Coincidência ou não, a comunidade artística foi das mais combativas na resistência ao golpe. A ponto de reverter o retrocesso máximo, que seria a extinção do Ministério da Cultura.
O pessoal das trevas não brinca em serviço não. Eles sabem que a cultura popular impulsiona um povo forte e consciente de si.
[Há quase um ano, escrevi uma crônica sobre as incessantes tentativas de nos calar e de nos desalojar. Tudo aquilo parece estar se aprofundando. Mas como disse Belchior, a voz resiste, a fala insiste: você me ouvirá!]
Em São Paulo, o prefeito playboy e higienista estrangula tanto o Clube do Choro quanto a Orquestra do Teatro São Pedro; enquanto o pai político dele, o governador, mata a Banda Sinfônica do estado.
Em Porto Alegre, a Fundação Piratini corre risco sério e iminente de extinção. A TVE e a Rádio FM Cultura são espaços privilegiados para circulação e promoção da produção musical de Porto Alegre.
Em Brasília, amanhecemos todos os dias alertas para evitar que metam a mão no FAC (Fundo de Apoio à Cultura).
No Rio, cidade que abrigou as tias baianas que embalaram o samba nos braços, que concebeu a Santíssima Trindade do Samba; o prefeito quer restringir e controlar quase que pessoalmente a ocupação do espaço público por manifestações culturais - inclusive o sagrado samba da Pedra do Sal.
E por aí vai.
Nessas quatro capitais, citei apenas poucos e representativos exemplos do que está havendo. Há muito muito mais. Há muito mais nas demais cidades, nos demais estados, no Brasil em cujo centro de poder os golpistas se instalaram, e mostram, dia após dia, seu desprezo pela arte e pela cultura popular brasileira. Falo de música porque é o que eu conheço mais, mas situações análogas se verificam nas artes cênicas, plásticas, audiovisuais, literatura, nos investimentos em Educação e formação de público.
Coincidência ou não, a comunidade artística foi das mais combativas na resistência ao golpe. A ponto de reverter o retrocesso máximo, que seria a extinção do Ministério da Cultura.
O pessoal das trevas não brinca em serviço não. Eles sabem que a cultura popular impulsiona um povo forte e consciente de si.
[Há quase um ano, escrevi uma crônica sobre as incessantes tentativas de nos calar e de nos desalojar. Tudo aquilo parece estar se aprofundando. Mas como disse Belchior, a voz resiste, a fala insiste: você me ouvirá!]
quarta-feira, 28 de junho de 2017
Futuros Militantes
Não se afobe não, que nada é pra já.
A História pode até parecer estranha, mas, uma hora, ela revelará com nitidez todos os meandros, manobras, manipulações e tudo que foi promovido em silêncio, num fundo de armário, com objetivos camuflados em camisetinhas amarelas, pato pateta, interesses escusos fantasiados de patriotismo. Não serão necessários milênios, milênios no ar. Algumas décadas serão suficientes.
E quem sabe, então, o Brasil será algum país submerso.
Os escafandristas virão explorar nossas casas. Encontrarão os computadores, celulares, reavivarão nossas contas nas redes sociais, nossas almas desnudas, raivosas ou assustadas. Encontrarão as expressões do ódio de classe, o desfile dos preconceitos sórdidos, e não encontrarão autocrítica em lado nenhum. Mas calma. Não haverá um deus para julgar ou punir. Quem faz isso é a História.
Sábios decifrarão com facilidade o eco daquelas palavras incisivas que alguns derramaram como se não houvesse amanhã. Fragmentos de panfletos, revistas semanais, mentiras, retratos. Vestígios de estranha civilização.
Não se afobe não, que nada é pra já. Um dia, tudo estará descortinado. As gerações futuras entenderão perfeitamente que foi golpe. Os protetores das vidraças não passarão. Futuros militantes, quiçá, marcharão - sabendo bem - pra coroar todo o esforço que um dia deixamos para eles.
E essa parte é agora.
SEXTA-FEIRA É GREVE GERAL.
[Que o marido da Ana Hickman nos perdoe o transtorno. A História, felizmente, registrará que estivemos em lados opostos.]
A História pode até parecer estranha, mas, uma hora, ela revelará com nitidez todos os meandros, manobras, manipulações e tudo que foi promovido em silêncio, num fundo de armário, com objetivos camuflados em camisetinhas amarelas, pato pateta, interesses escusos fantasiados de patriotismo. Não serão necessários milênios, milênios no ar. Algumas décadas serão suficientes.
E quem sabe, então, o Brasil será algum país submerso.
Os escafandristas virão explorar nossas casas. Encontrarão os computadores, celulares, reavivarão nossas contas nas redes sociais, nossas almas desnudas, raivosas ou assustadas. Encontrarão as expressões do ódio de classe, o desfile dos preconceitos sórdidos, e não encontrarão autocrítica em lado nenhum. Mas calma. Não haverá um deus para julgar ou punir. Quem faz isso é a História.
Sábios decifrarão com facilidade o eco daquelas palavras incisivas que alguns derramaram como se não houvesse amanhã. Fragmentos de panfletos, revistas semanais, mentiras, retratos. Vestígios de estranha civilização.
Não se afobe não, que nada é pra já. Um dia, tudo estará descortinado. As gerações futuras entenderão perfeitamente que foi golpe. Os protetores das vidraças não passarão. Futuros militantes, quiçá, marcharão - sabendo bem - pra coroar todo o esforço que um dia deixamos para eles.
E essa parte é agora.
SEXTA-FEIRA É GREVE GERAL.
[Que o marido da Ana Hickman nos perdoe o transtorno. A História, felizmente, registrará que estivemos em lados opostos.]
sábado, 17 de junho de 2017
Deja vu
Tive um deja vu estranho no último domingo, no aeroporto JK.
Ao regressar de Porto Alegre, os alto-falantes do local onde parei para um café tocavam a música “Regina, Let’s Go”, da banda paulista CPM 22 (nem sei se ainda existe ou a quantas anda, mas lembro que o Japinha era nosso colega na Ciências Sociais da USP).
Transportei-me imediatamente para 2001. As tarefas militantes me traziam a Brasília com alguma frequência, e não era raro parar para um lanche em qualquer lugar da rodoferroviária (depois das quatorze horas de ônibus que separam São Paulo e Brasília) e deparar com “Regina, Let’s Go” bombando na rádio.
Nas festas, quando a música rolava, eu gostava de gritar bem alto “eu não vou mais me importaaaaar”. Quando você supera os vinte anos, percebe que cada vez você se importará menos, o que, como tudo na vida, tem um lado bom e um lado ruim. Você se fere menos na medida em que menos se importa. Mas o mundo muda menos também.
Quando era do movimento estudantil, vir a Brasília significava combater as políticas neoliberais de FHC e sua turma, DEM à frente. Greve nas universidades federais, rejeição ao “provão” (lembram?), resistência a todas as tentativas de privatização. Reforma da Previdência e Trabalhista estavam sempre em pauta, mas eles não conseguiram executar – pelo menos, não plenamente.
Agora era eu, numa tarde de domingo, regressando de Porto Alegre, minha cidade adotiva, para a cidade onde vivo, Brasília. O vocalista do CPM 22 continuava a declarar “eu não vou mais me importaaaaar”. Chegou a dar um frio na barriga. Não existe mais aquela MTV que me apresentou essa música. Eu continuo me metendo nas confusões que jorram gás lacrimogêneo e spray de pimenta, que atormentavam a mente da minha mãe naquela época. Voltamos a estar sob fortes ataques a direitos trabalhistas e até a qualquer avanço cívico. A ânsia de destruição parece pior agora, depois de catorze anos de governos progressistas. A dor no peito de sentir-se ora acuada, ora perdida, e sempre indignada, também aperta mais forte.
E, tendo vivido dezesseis anos mais, o verso que incomoda não é “eu não vou mais me importaaaar”. Mas sim aquele que fecha a música: “daqui a pouco é tarde demais”.
A gente precisa se achar logo.
Ao regressar de Porto Alegre, os alto-falantes do local onde parei para um café tocavam a música “Regina, Let’s Go”, da banda paulista CPM 22 (nem sei se ainda existe ou a quantas anda, mas lembro que o Japinha era nosso colega na Ciências Sociais da USP).
Transportei-me imediatamente para 2001. As tarefas militantes me traziam a Brasília com alguma frequência, e não era raro parar para um lanche em qualquer lugar da rodoferroviária (depois das quatorze horas de ônibus que separam São Paulo e Brasília) e deparar com “Regina, Let’s Go” bombando na rádio.
Nas festas, quando a música rolava, eu gostava de gritar bem alto “eu não vou mais me importaaaaar”. Quando você supera os vinte anos, percebe que cada vez você se importará menos, o que, como tudo na vida, tem um lado bom e um lado ruim. Você se fere menos na medida em que menos se importa. Mas o mundo muda menos também.
Quando era do movimento estudantil, vir a Brasília significava combater as políticas neoliberais de FHC e sua turma, DEM à frente. Greve nas universidades federais, rejeição ao “provão” (lembram?), resistência a todas as tentativas de privatização. Reforma da Previdência e Trabalhista estavam sempre em pauta, mas eles não conseguiram executar – pelo menos, não plenamente.
Agora era eu, numa tarde de domingo, regressando de Porto Alegre, minha cidade adotiva, para a cidade onde vivo, Brasília. O vocalista do CPM 22 continuava a declarar “eu não vou mais me importaaaaar”. Chegou a dar um frio na barriga. Não existe mais aquela MTV que me apresentou essa música. Eu continuo me metendo nas confusões que jorram gás lacrimogêneo e spray de pimenta, que atormentavam a mente da minha mãe naquela época. Voltamos a estar sob fortes ataques a direitos trabalhistas e até a qualquer avanço cívico. A ânsia de destruição parece pior agora, depois de catorze anos de governos progressistas. A dor no peito de sentir-se ora acuada, ora perdida, e sempre indignada, também aperta mais forte.
E, tendo vivido dezesseis anos mais, o verso que incomoda não é “eu não vou mais me importaaaar”. Mas sim aquele que fecha a música: “daqui a pouco é tarde demais”.
A gente precisa se achar logo.
terça-feira, 2 de maio de 2017
Belchior: Queremos tudo outra vez
Convivo com Belchior desde criança, quando me foi apresentado através de Apenas um Rapaz Latino-Americano. Obviamente, tendo menos de dez anos de idade, era impossível que compreendesse bem aquela amargura com que ele observava o tempo e o espaço ao seu redor; tampouco aquela missão, reconhecida nos versos que escancaravam que sons, palavras são navalhas; e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém. Mesmo sem entender nada disso naquela época, passei um bom tempo apresentando-me por aí como apenas uma menina latino-americana sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vinda da capital.
A mim, sempre chamou a atenção a poesia de versos cortantes, a abordagem marcadamente original dos temas cotidianos e da conjuntura. Em 2012, quando comecei a cantar o repertório de Belchior, os estudos me levaram a lugares ainda mais diversos e sonoridades que até então tinham passado despercebidas por mim.
Diversas influências musicais podem ser flagradas em constante diálogo com seus versos intensos, ácidos, e a certeira disposição de contrastar com o que observava. Sua obra é repleta de intertextualidade, o que já o colocou em conversa com Bob Dylan, John Lennon, Caetano Veloso, Stanley Kubrick. Belchior foi alguém que fez Dante Alighieri e Olavo Bilac conviverem na mesma canção – que ele concluía, mais uma vez, demarcando: enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto.
Aliás, até para falar de romance, Belchior conseguia ser original. A Divina Comédia Humana, uma das minhas prediletas, aborda com naturalidade e doçura o que quase todos veem como a triste fatalidade do amor, ao indicar que, sendo que nada é eterno, a certeza do fim não deveria amedrontar ninguém.
A falta que lhe fazia sua casa, o Ceará, foi retratada numa narrativa de saudade que percorreu muitas músicas belas, cada vez empunhando uma tonalidade diferente da mesma dor. A América Latina pulsava nele, a ponto de A Palo Seco tornar-se quase um hino da latinoamericanidade, num país que poucas vezes se lembra de que é esse o contexto no qual está inserido. E ali, outra vez, ele revela: eu quero é que este canto torto, feito faca, corte a carne de vocês.
Era atento observador do seu tempo, com quem sempre brigou. Exibindo as cicatrizes que marcam aqueles e aquelas que têm que deixar sua terra natal, ele deixava escapar sua melancolia de mãos dadas com sua ânsia de futuro. Sendo ele um crítico dos modismos e do entusiasmo exacerbado, quando esboçava um sorriso de esperança em meio ao marasmo que via, ninguém era capaz de fazer melhor, e com tão singela grandeza. A música que vinha concentrando minha atenção nos últimos dias era justamente Tudo Outra Vez, onde ele diz que viveria as coisas novas, que também são boas, o amor, o humor das praças cheias de pessoas. E agora nós é que queremos tudo, tudo outra vez.
O cara angustiado para superar o “velho”; avesso a reverências e obediências. Quem conhece a obra de Belchior tem a impressão de estar diante de uma inquietação sem limites, que talvez tenha encontrado na referida missão um alento na busca de paz e dias melhores. Sua ironia era de uma riqueza extraordinária, porque contida no universo sem fronteiras do filósofo-artista que, assim como Drummond, tinha o tempo como sua matéria.
Belchior não existiu. Foi uma Alucinação que a gente teve.
A mim, sempre chamou a atenção a poesia de versos cortantes, a abordagem marcadamente original dos temas cotidianos e da conjuntura. Em 2012, quando comecei a cantar o repertório de Belchior, os estudos me levaram a lugares ainda mais diversos e sonoridades que até então tinham passado despercebidas por mim.
Diversas influências musicais podem ser flagradas em constante diálogo com seus versos intensos, ácidos, e a certeira disposição de contrastar com o que observava. Sua obra é repleta de intertextualidade, o que já o colocou em conversa com Bob Dylan, John Lennon, Caetano Veloso, Stanley Kubrick. Belchior foi alguém que fez Dante Alighieri e Olavo Bilac conviverem na mesma canção – que ele concluía, mais uma vez, demarcando: enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto.
Aliás, até para falar de romance, Belchior conseguia ser original. A Divina Comédia Humana, uma das minhas prediletas, aborda com naturalidade e doçura o que quase todos veem como a triste fatalidade do amor, ao indicar que, sendo que nada é eterno, a certeza do fim não deveria amedrontar ninguém.
A falta que lhe fazia sua casa, o Ceará, foi retratada numa narrativa de saudade que percorreu muitas músicas belas, cada vez empunhando uma tonalidade diferente da mesma dor. A América Latina pulsava nele, a ponto de A Palo Seco tornar-se quase um hino da latinoamericanidade, num país que poucas vezes se lembra de que é esse o contexto no qual está inserido. E ali, outra vez, ele revela: eu quero é que este canto torto, feito faca, corte a carne de vocês.
Era atento observador do seu tempo, com quem sempre brigou. Exibindo as cicatrizes que marcam aqueles e aquelas que têm que deixar sua terra natal, ele deixava escapar sua melancolia de mãos dadas com sua ânsia de futuro. Sendo ele um crítico dos modismos e do entusiasmo exacerbado, quando esboçava um sorriso de esperança em meio ao marasmo que via, ninguém era capaz de fazer melhor, e com tão singela grandeza. A música que vinha concentrando minha atenção nos últimos dias era justamente Tudo Outra Vez, onde ele diz que viveria as coisas novas, que também são boas, o amor, o humor das praças cheias de pessoas. E agora nós é que queremos tudo, tudo outra vez.
O cara angustiado para superar o “velho”; avesso a reverências e obediências. Quem conhece a obra de Belchior tem a impressão de estar diante de uma inquietação sem limites, que talvez tenha encontrado na referida missão um alento na busca de paz e dias melhores. Sua ironia era de uma riqueza extraordinária, porque contida no universo sem fronteiras do filósofo-artista que, assim como Drummond, tinha o tempo como sua matéria.
Belchior não existiu. Foi uma Alucinação que a gente teve.
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017
Senhor Samba #4 - A arquiduquesa do Encantado
"Noel foi quem acreditou em mim, desde o primeiro dia em que eu vi um microfone na vida.
Eu morava no Encantado, um subúrbio um pouco longe, e vivia cantando em festinhas... Eu cantei no candomblé da Paulina, na rua Borges Reis. Cantei na escola de samba 'Somos de pouco falar', no largo da Abolição. Cantei em coro de igreja protestante, no Méier. Mas isso tudo não rendia dinheirinho, e eu estava precisando de arrumar uma nota. Já estava farta de cantar de graça, e quem canta de graça é galo, mas tem certos direitos no terreiro.
Diante disso, eu estava louca para ir para o rádio, porque o rádio era a sensação daquela época, lá
pelas bandas de 1932, 33, né? E apareceu lá um rapaz, um matusquela lá no Encantado, que era amigo de Custódio Mesquita. Eu arrumei uma roupinha melhorzinha que eu tinha, que não era lá muito legal, mas servia, né?, e fui até a avenida Rio Branco, pela primeira vez na minha vida, que eu não conhecia a cidade, nem nada. Era um verdadeiro xavante.
Custódio Mesquita estava lá, e me ensaiou um samba. Mas eu não estava dando no couro, porque eu estava muito nervosa, a primeira vez com um piano na minha frente pra me acompanhar! Eu aí resolvi partir pra marcha, porque marcha era mais fácil, era uma espécie de bossa-nova, qualquer tom servia e era naquela base, né?
Custódio aí disse:
- Tá bom Aracy, eu vou te levar então até a Rádio Educadora do Brasil.
Quando acabei de cantar aquela marchinha no programa de Pinóquio, eu... apareceu uma figurinha formidável, assim magrinha, assim, de terno de flanela branca, assim, uma gravata branca, camisa azul-marinho, sapato branco, muito bem vestido. Apareceu o Noel Rosa. E parece que foi pra me dar assim um pouco de alento, uma colherzinha de chá, vamos dizer assim, né? Disse:
- Aracy, eu gostei muito. Você cantou muito bem e tal...
Nós ficamos batendo um papo, coisa e loisa.... Nessas alturas, o Noel disse pra mim assim:
- Ô, Aracy?! Vamos tomar uma cerveja Cascatinha na Taberna da Glória?
Lá fui eu pra Taberna da Glória com o Noel, de bonde. Sentamos, encontramos uma porção de malandros conhecidos do Noel: Saturnino, Brancura, Zeca Meia-noite... Ele tinha uns amigos espetaculares, o Noel. Os malandros mais [gargalhando], mais gloriosos da época eram amigos de Noel Rosa. De maneira que, naquela turminha, fiquei eu ali botando as minhas banca, né?, cantando muito, porque eu cantava desde que acordava até que ia dormir. E aconteceu o seguinte: eu fiquei bebendo até de manhã cedo, naquela roda, parecia até que eu já conhecia eles e tal. E afinal de contas, cheguei em casa num porre que não tinha mais tamanho, né? E depois desse porre que eu tomei, eu me emendei com os da Glória:
- Eu pretendo hoje tomar um daqueles gloriosos às onze e meia.”
[Monólogo de Aracy de Almeida extraído do disco "O Samba Pede Passagem" (1965) registro dos melhores momentos do show de mesmo nome realizado em 1965.]
Eu morava no Encantado, um subúrbio um pouco longe, e vivia cantando em festinhas... Eu cantei no candomblé da Paulina, na rua Borges Reis. Cantei na escola de samba 'Somos de pouco falar', no largo da Abolição. Cantei em coro de igreja protestante, no Méier. Mas isso tudo não rendia dinheirinho, e eu estava precisando de arrumar uma nota. Já estava farta de cantar de graça, e quem canta de graça é galo, mas tem certos direitos no terreiro.
Aracy de Almeida |
pelas bandas de 1932, 33, né? E apareceu lá um rapaz, um matusquela lá no Encantado, que era amigo de Custódio Mesquita. Eu arrumei uma roupinha melhorzinha que eu tinha, que não era lá muito legal, mas servia, né?, e fui até a avenida Rio Branco, pela primeira vez na minha vida, que eu não conhecia a cidade, nem nada. Era um verdadeiro xavante.
Custódio Mesquita estava lá, e me ensaiou um samba. Mas eu não estava dando no couro, porque eu estava muito nervosa, a primeira vez com um piano na minha frente pra me acompanhar! Eu aí resolvi partir pra marcha, porque marcha era mais fácil, era uma espécie de bossa-nova, qualquer tom servia e era naquela base, né?
Custódio aí disse:
- Tá bom Aracy, eu vou te levar então até a Rádio Educadora do Brasil.
Quando acabei de cantar aquela marchinha no programa de Pinóquio, eu... apareceu uma figurinha formidável, assim magrinha, assim, de terno de flanela branca, assim, uma gravata branca, camisa azul-marinho, sapato branco, muito bem vestido. Apareceu o Noel Rosa. E parece que foi pra me dar assim um pouco de alento, uma colherzinha de chá, vamos dizer assim, né? Disse:
- Aracy, eu gostei muito. Você cantou muito bem e tal...
Nós ficamos batendo um papo, coisa e loisa.... Nessas alturas, o Noel disse pra mim assim:
- Ô, Aracy?! Vamos tomar uma cerveja Cascatinha na Taberna da Glória?
Lá fui eu pra Taberna da Glória com o Noel, de bonde. Sentamos, encontramos uma porção de malandros conhecidos do Noel: Saturnino, Brancura, Zeca Meia-noite... Ele tinha uns amigos espetaculares, o Noel. Os malandros mais [gargalhando], mais gloriosos da época eram amigos de Noel Rosa. De maneira que, naquela turminha, fiquei eu ali botando as minhas banca, né?, cantando muito, porque eu cantava desde que acordava até que ia dormir. E aconteceu o seguinte: eu fiquei bebendo até de manhã cedo, naquela roda, parecia até que eu já conhecia eles e tal. E afinal de contas, cheguei em casa num porre que não tinha mais tamanho, né? E depois desse porre que eu tomei, eu me emendei com os da Glória:
- Eu pretendo hoje tomar um daqueles gloriosos às onze e meia.”
[Monólogo de Aracy de Almeida extraído do disco "O Samba Pede Passagem" (1965) registro dos melhores momentos do show de mesmo nome realizado em 1965.]
terça-feira, 20 de setembro de 2016
O Samba e as Lutas do Povo
A vida do nosso povo é a alma do samba. Aquele que sai da batalha, entra no botequim, pede uma cerva gelada e agita na mesa uma batucada. O povo que canta em versos suas dores, seus amores, suas lutas, mesmo naquela época em que alguém poderia ser preso simplesmente por portar um violão ou um pandeiro. Era um Brasil de Delegados Chico Palha, sem alma nem coração, querendo banir o samba e a corimba de sua jurisdição. Mas o violão e pandeiro ganharam os corações e os salões irreversivelmente, sob olhares furiosos dos senhores, que os queriam mudos ou domesticados, que queriam o samba "com livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor". E tantos foram calados, e tantos foram banidos, e tantos foram esquecidos.
Hoje, nesta Brasília amordaçada, cidade-arte, cidade-artista, reprimida, silenciada, onde ninguém ouviu o soluçar da dor no canto do Brasil, as coisas não mudaram tanto assim. A cidade emudecida, que já foi alegria. A cidade que já foi palco de Cássia, Zélia e Ednardo, a cidade que foi um sonho do Oscar, a cidade-borboleta. A cidade que hoje abriga aqueles que querem calar nossos sonhos com um golpe baixo na boca do coração.
Mas aqueles e aquelas que nos abriram os caminhos também nos ensinaram a seguir. É para eles que oramos, e com eles contamos ao nos defrontar com gente infeliz, que diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba. Valei-nos Nara Leão, Clara Nunes, João Nogueira, Noel Rosa, Chico Buarque, Cartola, Elis Regina, João Bosco, Aldir Blanc! Socorram-nos Zé Kéti, Gonzaguinha, Alcione, Paulo César Pinheiro, Nelson Sargento!
Nossa carne é feita da carne de todos aqueles que desde o início do século passado usaram notas musicais como armas em combate, que encantaram multidões a preferir um verso de samba do que escutar som de tiro. Eles e elas, que jamais se intimidaram, jamais aceitaram a imposição do silêncio, a proibição de pensar. Nós nos levantamos e eles vêm junto, fazer do nosso canto um canto mais forte. No nosso sangue tem a luta do nosso povo, nossas lágrimas contêm nossa ânsia de futuro, nossos passos apontam nosso gosto pela vida. Nossos instrumentos produzem o som do nosso amor e da nossa luta. Enquanto houver quem tente abafar o voz do oprimido com a dor e o gemido, nós cantaremos. Ninguém vai nos acorrentar, enquanto pudermos cantar, enquanto pudermos sorrir. A gente samba para resistir. A gente canta para não permitir. A gente batuca para conseguir. Afinal, uma dor assim, pungente, não há de ser inutilmente.
Não adianta nos matar: somos herdeiros e herdeiras de um povo que não morre nunca.
Hoje, nesta Brasília amordaçada, cidade-arte, cidade-artista, reprimida, silenciada, onde ninguém ouviu o soluçar da dor no canto do Brasil, as coisas não mudaram tanto assim. A cidade emudecida, que já foi alegria. A cidade que já foi palco de Cássia, Zélia e Ednardo, a cidade que foi um sonho do Oscar, a cidade-borboleta. A cidade que hoje abriga aqueles que querem calar nossos sonhos com um golpe baixo na boca do coração.
Mas aqueles e aquelas que nos abriram os caminhos também nos ensinaram a seguir. É para eles que oramos, e com eles contamos ao nos defrontar com gente infeliz, que diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba. Valei-nos Nara Leão, Clara Nunes, João Nogueira, Noel Rosa, Chico Buarque, Cartola, Elis Regina, João Bosco, Aldir Blanc! Socorram-nos Zé Kéti, Gonzaguinha, Alcione, Paulo César Pinheiro, Nelson Sargento!
Nossa carne é feita da carne de todos aqueles que desde o início do século passado usaram notas musicais como armas em combate, que encantaram multidões a preferir um verso de samba do que escutar som de tiro. Eles e elas, que jamais se intimidaram, jamais aceitaram a imposição do silêncio, a proibição de pensar. Nós nos levantamos e eles vêm junto, fazer do nosso canto um canto mais forte. No nosso sangue tem a luta do nosso povo, nossas lágrimas contêm nossa ânsia de futuro, nossos passos apontam nosso gosto pela vida. Nossos instrumentos produzem o som do nosso amor e da nossa luta. Enquanto houver quem tente abafar o voz do oprimido com a dor e o gemido, nós cantaremos. Ninguém vai nos acorrentar, enquanto pudermos cantar, enquanto pudermos sorrir. A gente samba para resistir. A gente canta para não permitir. A gente batuca para conseguir. Afinal, uma dor assim, pungente, não há de ser inutilmente.
Não adianta nos matar: somos herdeiros e herdeiras de um povo que não morre nunca.
Foto de Karla Gamba. |
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
Não sambe
As palavras ruins se associam por afinidade. Tristeza, ódio, golpe, obscurantismo, autoritarismo. A imposição do silêncio; e nós sabemos que paz sem voz não é paz, é medo. O toque de recolher. Os assuntos proibidos, as desavenças gratuitas: preconceito, violência, cultura do ódio a todo vapor. O cara nem sabe por que odeia, pensa que ele mesmo formulou o ódio ao outro, sem notar que ele comprou um ódio prontinho de fábrica, de segunda mão, único dono. Mas meu senhor, por que tanto rancor? Por que me agride sem me conhecer?
A resposta é o silêncio que atravessa a madrugada. O escuro da noite é belo, mas querem tonar sombrio. A beleza dos nossos sonhos e das nossas lutas, nossos punhos cerrados, nossos braços erguidos, tudo isso virou ofensa. A democracia virou ofensa.
Não pode. Não vá. Não cante. Não pule. Não torça. Não vaie. Não fale de amor. Não erga sua bandeira. Não vista vermelho. Não expresse sua opinião. Há um grito parado no ar, eu não vejo, mas posso senti-lo.
Não sambe. Não sambe. Não sambe. Mas senhor, o samba não agride ninguém. No início do século passado, a gente era criminalizado, samba era vadiagem, João da Baiana foi preso somente por portar um pandeiro. Delegados sem alma e sem coração que não querem samba nem corimba na sua jurisdição. Tinha ficado no passado, mas não. Quando o ódio é maior que o amor, o samba não encontra seu lugar mesmo. Já fomos criminosos. Já fomos vagabundos. Já fomos baderneiros. Tudo bêbado. Mas por que, senhor? É que mesmo calado o peito, resta a cuca.
Somos de novo vagabundos. Artista é vagabundo. Outra vez, somos baderneiros. Vamos acabar com o samba, madame não gosta que ninguém sambe. Mas por que, senhor? Tanta alegria ofende. Juntar gente é perigoso.
Meu samba está sem casa. Mas ainda tem gente que canta, ainda tem gente que brinca. Não podem tolerar gente que canta, somos perigosos. Silêncio, silêncio. Já não há lugar, vamos fechar, vamos esvaziar, vamos interromper. Mandou parar a cuíca: é coisa dos hóme. A fome e a raiva é coisa dos hóme.
Meu samba está sem casa. Mas o samba não se aprisiona em casa nenhuma, não senhor. Quem suportar uma paixão, saberá que a casa do samba é o coração. E em nossos corações vocês não vão poder mandar. Quero ver quem haverá de calar a música que ecoa aqui dentro da minha cabeça.
Meu samba está sem casa, mas o samba é da rua, o samba é sem rumo, o samba é do povo, do amor e de todo lugar. Nós não vamos ficar na saudade: o samba é a nossa casa. E sempre haverá casa para quem tem amor.
"É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar
Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva"
(MORDAÇA - Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro)
A resposta é o silêncio que atravessa a madrugada. O escuro da noite é belo, mas querem tonar sombrio. A beleza dos nossos sonhos e das nossas lutas, nossos punhos cerrados, nossos braços erguidos, tudo isso virou ofensa. A democracia virou ofensa.
Não pode. Não vá. Não cante. Não pule. Não torça. Não vaie. Não fale de amor. Não erga sua bandeira. Não vista vermelho. Não expresse sua opinião. Há um grito parado no ar, eu não vejo, mas posso senti-lo.
Não sambe. Não sambe. Não sambe. Mas senhor, o samba não agride ninguém. No início do século passado, a gente era criminalizado, samba era vadiagem, João da Baiana foi preso somente por portar um pandeiro. Delegados sem alma e sem coração que não querem samba nem corimba na sua jurisdição. Tinha ficado no passado, mas não. Quando o ódio é maior que o amor, o samba não encontra seu lugar mesmo. Já fomos criminosos. Já fomos vagabundos. Já fomos baderneiros. Tudo bêbado. Mas por que, senhor? É que mesmo calado o peito, resta a cuca.
Somos de novo vagabundos. Artista é vagabundo. Outra vez, somos baderneiros. Vamos acabar com o samba, madame não gosta que ninguém sambe. Mas por que, senhor? Tanta alegria ofende. Juntar gente é perigoso.
Meu samba está sem casa. Mas ainda tem gente que canta, ainda tem gente que brinca. Não podem tolerar gente que canta, somos perigosos. Silêncio, silêncio. Já não há lugar, vamos fechar, vamos esvaziar, vamos interromper. Mandou parar a cuíca: é coisa dos hóme. A fome e a raiva é coisa dos hóme.
Meu samba está sem casa. Mas o samba não se aprisiona em casa nenhuma, não senhor. Quem suportar uma paixão, saberá que a casa do samba é o coração. E em nossos corações vocês não vão poder mandar. Quero ver quem haverá de calar a música que ecoa aqui dentro da minha cabeça.
Meu samba está sem casa, mas o samba é da rua, o samba é sem rumo, o samba é do povo, do amor e de todo lugar. Nós não vamos ficar na saudade: o samba é a nossa casa. E sempre haverá casa para quem tem amor.
"É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar
Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva"
(MORDAÇA - Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro)
segunda-feira, 8 de agosto de 2016
Sobre presença de palco
Outro dia, falávamos do show de uma cantora que eu não conhecia. Ouvi críticas à presença de palco dela, e mesmo não a conhecendo, não pude ouvir calada.
Precisa ter cuidado para condenar a presença de palco de alguém. Teresa Cristina disse que já foi muito criticada por cantar de olhos fechados, e foi por isso que compôs "Cantar". Eu penso que a interpretação é parte fundamental da tal da presença de palco, e ela é muito pessoal de cada artista, não podem querer ensinar alguém a fazer isso. Você pode, no máximo, contribuir para a pessoa encontrar a melhor maneira de se expressar, mas sem contrariar sua própria personalidade. Quando eu canto uma canção, o que sai de mim é uma síntese da soma eu + ela; eu falo dela como eu entendo dela, não como ela é. E é a minha forma de falar.
Eu valorizo muito a espontaneidade, então, obviamente, não creio que exista um só jeito de fazer isso. Tenho horror a "ensaio" de presença de palco, do treinamento sistemático de movimentos coordenados, de expressões faciais. Elza Soares, que não tem podido levantar-se da cadeira para cantar, tem, ainda assim, mais presença de palco que muita gente que gosta de saltitar e falta só dar piruetas - mas tudo fake, porque não espontâneo.
Nunca permiti que meus professores e professoras de canto tentassem interferir nessa parte. Essa parte é minha, eu extravaso a música espontaneamente, do jeito que ela sair de mim na hora.
Treinar presença de palco me parece uma tentativa de botar na caixinha a abordagem que o próprio artista faz da sua arte - ou seja, aprisionar algo que tem que ser livre. Torná-la mais um elemento que pode ser produzido em série, como se todo mundo fosse igual, ou devesse ser. Óbvio que, para alguém que se apresenta para uma plateia, é importante superar a timidez e estabelecer algum tipo de empatia com seu público. Mas há diversas formas de fazer isso. Treinar presença de palco não me parece uma boa coisa, ao contrário.
Precisa ter cuidado para condenar a presença de palco de alguém. Teresa Cristina disse que já foi muito criticada por cantar de olhos fechados, e foi por isso que compôs "Cantar". Eu penso que a interpretação é parte fundamental da tal da presença de palco, e ela é muito pessoal de cada artista, não podem querer ensinar alguém a fazer isso. Você pode, no máximo, contribuir para a pessoa encontrar a melhor maneira de se expressar, mas sem contrariar sua própria personalidade. Quando eu canto uma canção, o que sai de mim é uma síntese da soma eu + ela; eu falo dela como eu entendo dela, não como ela é. E é a minha forma de falar.
Eu valorizo muito a espontaneidade, então, obviamente, não creio que exista um só jeito de fazer isso. Tenho horror a "ensaio" de presença de palco, do treinamento sistemático de movimentos coordenados, de expressões faciais. Elza Soares, que não tem podido levantar-se da cadeira para cantar, tem, ainda assim, mais presença de palco que muita gente que gosta de saltitar e falta só dar piruetas - mas tudo fake, porque não espontâneo.
Nunca permiti que meus professores e professoras de canto tentassem interferir nessa parte. Essa parte é minha, eu extravaso a música espontaneamente, do jeito que ela sair de mim na hora.
Treinar presença de palco me parece uma tentativa de botar na caixinha a abordagem que o próprio artista faz da sua arte - ou seja, aprisionar algo que tem que ser livre. Torná-la mais um elemento que pode ser produzido em série, como se todo mundo fosse igual, ou devesse ser. Óbvio que, para alguém que se apresenta para uma plateia, é importante superar a timidez e estabelecer algum tipo de empatia com seu público. Mas há diversas formas de fazer isso. Treinar presença de palco não me parece uma boa coisa, ao contrário.
domingo, 7 de agosto de 2016
Chega
Chega de tentar me enganar
Eu já não caio mais
Nas armadilhas que eu mesma fiz
Não vou fingir
Que eu não sabia que isso tudo
Só podia ser assim
Foi o abismo de onde me atirei
A sorrir
Chega de tentar te encontrar
Nas cartas doces que eu mesma escrevi
Nas ruas loucas onde eu me consumi
Pr'onde fugi para me esconder
De mim
Chega de ampliar o universo
E reduzir o meu espaço
De ser uma mulher do avesso
Em qualquer passo, eu recomeço
Eu reconheço
Que desconexa é que desconecto
De você
Chega de falar, de procurar
Eu já não tenho mais papel
Perdi o céu
Perdi o navio
Eu já não sei qual era mesmo o rio
Onde boiou meu corpo
À mercê
Eu já não tenho mais saúde
Para sustentar
Este sentimento por você
Eu já não caio mais
Nas armadilhas que eu mesma fiz
Não vou fingir
Que eu não sabia que isso tudo
Só podia ser assim
Foi o abismo de onde me atirei
A sorrir
Chega de tentar te encontrar
Nas cartas doces que eu mesma escrevi
Nas ruas loucas onde eu me consumi
Pr'onde fugi para me esconder
De mim
Chega de ampliar o universo
E reduzir o meu espaço
De ser uma mulher do avesso
Em qualquer passo, eu recomeço
Eu reconheço
Que desconexa é que desconecto
De você
Chega de falar, de procurar
Eu já não tenho mais papel
Perdi o céu
Perdi o navio
Eu já não sei qual era mesmo o rio
Onde boiou meu corpo
À mercê
Eu já não tenho mais saúde
Para sustentar
Este sentimento por você
segunda-feira, 1 de agosto de 2016
Demora
*** Abaixo, a letra do meu novo samba, "Demora", que contou com arranjo de Vinicius Ferrão e um time maravilhoso de músicos de Porto Alegre. Clique AQUI para ver o clipe. ***
DEMORA
(Alessandra Terribili)
Por que você demorou?
Olha se isso são horas
Você só me chega agora
Eu já tinha desistido de esperar
Chega aqui toda contente
Pois que seja convincente
Pr'eu poder acreditar
O tempo não foi perdido
O caminho percorrido
Traz bem mais pra gente andar
Vai que a vida surpreende
Se for esperar pra sempre
O infinito é o meu lugar
Não sei se veio de barca
Fazendo escalas
Saiu atrasada
Ou se veio a pé
Se correu a vida afora
Não quis ir embora
Chegou com a aurora
Nem sabe onde é
Não sei se perdeu o caminho
Errou o sentido
Brigou com destino
Veio dando olé
Não sei se tava buscando
Em cada passo, o meu abraço
O tempo tava passando
Você nem sentiu cansaço
Ou se veio vacilando
Por uma estrada comprida
Por que você demorou tanto
Pra chegar na minha vida?
DEMORA
(Alessandra Terribili)
Por que você demorou?
Olha se isso são horas
Você só me chega agora
Eu já tinha desistido de esperar
Chega aqui toda contente
Pois que seja convincente
Pr'eu poder acreditar
O tempo não foi perdido
O caminho percorrido
Traz bem mais pra gente andar
Vai que a vida surpreende
Se for esperar pra sempre
O infinito é o meu lugar
Não sei se veio de barca
Fazendo escalas
Saiu atrasada
Ou se veio a pé
Se correu a vida afora
Não quis ir embora
Chegou com a aurora
Nem sabe onde é
Não sei se perdeu o caminho
Errou o sentido
Brigou com destino
Veio dando olé
Não sei se tava buscando
Em cada passo, o meu abraço
O tempo tava passando
Você nem sentiu cansaço
Ou se veio vacilando
Por uma estrada comprida
Por que você demorou tanto
Pra chegar na minha vida?
domingo, 3 de julho de 2016
Senhor Samba #3 - No rancho fundo
"No Rancho Fundo" não é música sertaneja, nem é de Chitãozinho e Xororó. É um samba-canção composto por Ary Barroso para musicar poema do caricaturista e poeta José Carlos de Brito Cunha. e foi apresentado por Aracy Côrtes numa peça do Teatro de Revista. Nasceu como "Esse mulato vai ser meu", com subtítulo "Na grota funda":
Na grota funda
Na virada da montanha
Só se conta uma façanha
Do mulato da Reimunda
Pois Lamartine Babo ficou muito impressionado com a música, mas não gostou da letra. Reza a lenda que pediu permissão para Ary, que não a concedeu, para botar outros versos na canção. Ignorou a negativa e criou a nova letra mesmo assim, substituindo a Grota Funda por um Rancho Fundo. Mas não há consenso se houve o pedido e se foi negada ou não a autorização. Fato é que foi a letra de Lamartine que ficou para a posteridade; e que na primeira gravação, com Elisinha Coelho, em 1931, Ary tocou piano.
Detalhe: Chitãozinho e Xororó alteraram o final da letra. Trocaram a cabrocha por uma morena, e, para manter a rima, recriaram os versos: "O sol queimando / Se uma flor lá desabrocha / A montanha vai gelando / Lembra o aroma da cabrocha".
Na grota funda
Na virada da montanha
Só se conta uma façanha
Do mulato da Reimunda
Pois Lamartine Babo ficou muito impressionado com a música, mas não gostou da letra. Reza a lenda que pediu permissão para Ary, que não a concedeu, para botar outros versos na canção. Ignorou a negativa e criou a nova letra mesmo assim, substituindo a Grota Funda por um Rancho Fundo. Mas não há consenso se houve o pedido e se foi negada ou não a autorização. Fato é que foi a letra de Lamartine que ficou para a posteridade; e que na primeira gravação, com Elisinha Coelho, em 1931, Ary tocou piano.
Detalhe: Chitãozinho e Xororó alteraram o final da letra. Trocaram a cabrocha por uma morena, e, para manter a rima, recriaram os versos: "O sol queimando / Se uma flor lá desabrocha / A montanha vai gelando / Lembra o aroma da cabrocha".
terça-feira, 17 de maio de 2016
Senhor Samba #2 - Estrela de Madureira
Para exaltar a sua arte, que encantou Madureira
Um lindo samba cantado nas rodas de todo o país é "Estrela de Madureira", de Acyr Pimentel e Cardoso, consagrado na voz do grande Roberto Ribeiro. Hoje em dia, mais de 40 anos depois de sua composição, e quase 60 anos depois a morte da sua musa, pouca gente sabe de quem fala a bela letra.
Trata-se de Záquia Jorge, atriz, cantora e empresária. Atuou nas décadas de 40 e 50, com sucesso, no cinema e no Teatro de Revista (formato dramatúrgico muito comum nas primeiras décadas do século XX, tendo revelado grandes artistas). Mas Záquia fez mais: "foi a pioneira" ao erguer o Teatro de Revista Madureira no bairro de mesmo nome, em frente à estação de trem, com a intenção de compartilhar com o subúrbio a cultura que se disseminava pelo centro e regiões nobres do Rio de Janeiro - inclusive praticando preços mais acessíveis para conquistar aquele público.
Záquia e seu marido, Júlio Leiloeiro, empreenderam muitos esforços para fazer vingar a ideia. Segundo conta Nei Lopes, aquele era um momento em que diversas possibilidades se abriam para Madureira nas áreas de Cultura e de Lazer. O Teatro de Revista começava a experimentar sua decadência, mas mesmo assim, a casa foi inaugurada em 1952 com o espetáculo "Trem de Luxo", mencionado no samba. Durante os dias, o teatro abrigou aulas de artes dramáticas. Porém, não sobreviveu à morte de sua "vedete principal".
Záquia morreu vítima de afogamento na praia da Barra da Tijuca, que era muito pouco frequentada na época, deixando marido, filho e uma legião de fãs e amigos. Seu velório no Teatro de Revista Madureira foi acompanhado por mais de 4 mil pessoas.
Em 1975, a Império Serrano, com justiça e com propriedade, homenageou Záquia. O samba escolhido para isso não foi "Estrela de Madureira", mas sim, um samba de Avarese, "Záquia Jorge, Estrela de Madureira, Vedete do Subúrbio", que rendeu à escola o terceiro lugar no Carnaval daquele ano. Entretanto, antes de ambos, houve "Madureira Chorou", samba de Carvalhinho e Júlio Leiloeiro, gravado por Joel de Almeida em 1958.
Pelo papel desempenhado nos palcos, sets e, especialmente, em Madureira, Záquia é uma personagem à altura da grandiosidade dos sambas que a homenageiam.
Um lindo samba cantado nas rodas de todo o país é "Estrela de Madureira", de Acyr Pimentel e Cardoso, consagrado na voz do grande Roberto Ribeiro. Hoje em dia, mais de 40 anos depois de sua composição, e quase 60 anos depois a morte da sua musa, pouca gente sabe de quem fala a bela letra.
Trata-se de Záquia Jorge, atriz, cantora e empresária. Atuou nas décadas de 40 e 50, com sucesso, no cinema e no Teatro de Revista (formato dramatúrgico muito comum nas primeiras décadas do século XX, tendo revelado grandes artistas). Mas Záquia fez mais: "foi a pioneira" ao erguer o Teatro de Revista Madureira no bairro de mesmo nome, em frente à estação de trem, com a intenção de compartilhar com o subúrbio a cultura que se disseminava pelo centro e regiões nobres do Rio de Janeiro - inclusive praticando preços mais acessíveis para conquistar aquele público.
Záquia e seu marido, Júlio Leiloeiro, empreenderam muitos esforços para fazer vingar a ideia. Segundo conta Nei Lopes, aquele era um momento em que diversas possibilidades se abriam para Madureira nas áreas de Cultura e de Lazer. O Teatro de Revista começava a experimentar sua decadência, mas mesmo assim, a casa foi inaugurada em 1952 com o espetáculo "Trem de Luxo", mencionado no samba. Durante os dias, o teatro abrigou aulas de artes dramáticas. Porém, não sobreviveu à morte de sua "vedete principal".
Záquia morreu vítima de afogamento na praia da Barra da Tijuca, que era muito pouco frequentada na época, deixando marido, filho e uma legião de fãs e amigos. Seu velório no Teatro de Revista Madureira foi acompanhado por mais de 4 mil pessoas.
Em 1975, a Império Serrano, com justiça e com propriedade, homenageou Záquia. O samba escolhido para isso não foi "Estrela de Madureira", mas sim, um samba de Avarese, "Záquia Jorge, Estrela de Madureira, Vedete do Subúrbio", que rendeu à escola o terceiro lugar no Carnaval daquele ano. Entretanto, antes de ambos, houve "Madureira Chorou", samba de Carvalhinho e Júlio Leiloeiro, gravado por Joel de Almeida em 1958.
Pelo papel desempenhado nos palcos, sets e, especialmente, em Madureira, Záquia é uma personagem à altura da grandiosidade dos sambas que a homenageiam.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
Pra Ninar Você
Esta semana estou em estúdio, em Porto Alegre, para gravar duas músicas minhas. Uma delas é esta canção de ninar, cuja letra está abaixo.
***
PRA NINAR VOCÊ
(Alessandra Terribili)
Essa sombra em teu olhar
Denuncia um mal que há
Perturbando o sono teu
Tua luz não se acendeu
Se teu peito sente um nó
Logo vai nascer o sol
E se depender de mim
Não vai ser tão triste assim
Se sentes frio
Te sopro um vento de calor
E teço um lindo cobertor
Com versos que eu recém colhi
Quem não se abriu
Pra vida nunca vai sofrer
Então não temas se doer
Pois tens o oceano em ti
E o tamanho que ele tem
Nunca vai ficar aquém
Dessa lágrima que cai
Tão teimosa e tão fugaz
Olhando bem
No fundo dos teus olhos-mar
Se vê, nada vai evitar
Que eles brilhem outra vez
Porque ninguém
Conseguirá de ti roubar
O dom que tens de respirar
Os bons motivos de viver
Hoje eu acordei por ti
Fui andando por aí
Procurar uma canção
Pra fazer você dormir
E pra noite te abraçar
Hoje eu só vou cantar
Pra fazer você dormir
Pra fazer você dormir
***
Ouça aqui!
***
PRA NINAR VOCÊ
(Alessandra Terribili)
Essa sombra em teu olhar
Denuncia um mal que há
Perturbando o sono teu
Tua luz não se acendeu
Se teu peito sente um nó
Logo vai nascer o sol
E se depender de mim
Não vai ser tão triste assim
Se sentes frio
Te sopro um vento de calor
E teço um lindo cobertor
Com versos que eu recém colhi
Quem não se abriu
Pra vida nunca vai sofrer
Então não temas se doer
Pois tens o oceano em ti
E o tamanho que ele tem
Nunca vai ficar aquém
Dessa lágrima que cai
Tão teimosa e tão fugaz
Olhando bem
No fundo dos teus olhos-mar
Se vê, nada vai evitar
Que eles brilhem outra vez
Porque ninguém
Conseguirá de ti roubar
O dom que tens de respirar
Os bons motivos de viver
Hoje eu acordei por ti
Fui andando por aí
Procurar uma canção
Pra fazer você dormir
E pra noite te abraçar
Hoje eu só vou cantar
Pra fazer você dormir
Pra fazer você dormir
***
Ouça aqui!
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
Pagode Caboclo
Era um daqueles domingos infinitos. Almoça em casa, assa uma carne, ouve uma música, toma uma cerveja. Começo da noite, parte para o Grao, para mais uma estrelada noite de sambas e choros. Ali está tudo o que eu preciso para começar a semana bem.
E então, chega o Jacaré, com Serginho e Nelson. Puxei Aline e lá fomos parar: bora continuar o samba do Grao em casa. Ói, Ale, tenho um samba, termina ele! "Antes da fama, ele morava no Novo Gama...". Um baita samba. Não sei como o Jacaré consegue essas coisas, ele compõe como se estivesse batendo papo. As palavras chegam já embrulhadas nas notas e com o pandeiro tinindo. A mim, coube terminar aquela beleza. Só sei que foi assim.
O tal do cara largou o Novo Gama e o Varjão e todo o circuito que costumava cumprir porque se apaixonou pela filha de um empresário. Só pode ser isso. E nós?! Nós já nem o vemos mais, sei lá dele.
E aí está o Pagode Caboclo, selecionada entre quase 300 composições para a segunda fase do Festival da Rádio Nacional, com outras 49 músicas. Eu e o Jacaré com o coração batendo em baticumbum, felizes da vida por estar entre um bocado de gente que a gente admira. Estamos lá nós e a inspiração que este Distrito Federal trouxe pras nossas vidas. Por essas e outras, a gente só tem que agradecer a este adorável quadradinho.
PAGODE CABOCLO
Antes da fama
Ele morava no Novo Gama
E namorava uma menina do Varjão
Batia couro numa terreira na Ceilândia
Levava doce pra festa de Cosme e Damião
Em Planaltina, sempre foi considerado
E respeitado até em São Sebastião
Jogava bola no campeão do Colorado
Até que um dia uma flor do cerrado
Lhe roubou o coração
Ela era filha
D'um poderoso senhor empresário
Dizem que até ganhou de aniversário
Uma fazenda lá no Jalapão
O pai da moça
Não quis saber de bagunça na casa
Disse pro cabra: ou se arranja ou vaza
Não quero genro de calo na mão
E hoje em dia ele nem dá bom dia
Pros mano de cá
Não vai pra terreira, nem pra cachoeira,
Não faz mais fogueira, não vem mais jogar
Só vive engomado, atolado em trabalho
Pra impressionar
Sumiu do churrasco, do balacobaco,
Esqueceu o cavaco no Paranoá.
E então, chega o Jacaré, com Serginho e Nelson. Puxei Aline e lá fomos parar: bora continuar o samba do Grao em casa. Ói, Ale, tenho um samba, termina ele! "Antes da fama, ele morava no Novo Gama...". Um baita samba. Não sei como o Jacaré consegue essas coisas, ele compõe como se estivesse batendo papo. As palavras chegam já embrulhadas nas notas e com o pandeiro tinindo. A mim, coube terminar aquela beleza. Só sei que foi assim.
O tal do cara largou o Novo Gama e o Varjão e todo o circuito que costumava cumprir porque se apaixonou pela filha de um empresário. Só pode ser isso. E nós?! Nós já nem o vemos mais, sei lá dele.
E aí está o Pagode Caboclo, selecionada entre quase 300 composições para a segunda fase do Festival da Rádio Nacional, com outras 49 músicas. Eu e o Jacaré com o coração batendo em baticumbum, felizes da vida por estar entre um bocado de gente que a gente admira. Estamos lá nós e a inspiração que este Distrito Federal trouxe pras nossas vidas. Por essas e outras, a gente só tem que agradecer a este adorável quadradinho.
Jaca e eu |
PAGODE CABOCLO
Antes da fama
Ele morava no Novo Gama
E namorava uma menina do Varjão
Batia couro numa terreira na Ceilândia
Levava doce pra festa de Cosme e Damião
Em Planaltina, sempre foi considerado
E respeitado até em São Sebastião
Jogava bola no campeão do Colorado
Até que um dia uma flor do cerrado
Lhe roubou o coração
Ela era filha
D'um poderoso senhor empresário
Dizem que até ganhou de aniversário
Uma fazenda lá no Jalapão
O pai da moça
Não quis saber de bagunça na casa
Disse pro cabra: ou se arranja ou vaza
Não quero genro de calo na mão
E hoje em dia ele nem dá bom dia
Pros mano de cá
Não vai pra terreira, nem pra cachoeira,
Não faz mais fogueira, não vem mais jogar
Só vive engomado, atolado em trabalho
Pra impressionar
Sumiu do churrasco, do balacobaco,
Esqueceu o cavaco no Paranoá.
quinta-feira, 18 de junho de 2015
SAMBRA - Apenas uma opinião
O espetáculo SAMBRA, protagonizado por Diogo Nogueira, vem percorrendo o Brasil para saudar cem anos de história do samba - desde o registro de "Pelo Telephone" por Donga e Mauro de Almeida. A iniciativa é de se festejar, afinal, exaltar a cultura popular brasileira nunca é demais, e a história do samba se confunde mesmo com a própria história do país.
O musical é muito bem produzido no que se refere à parte artística: os números são brilhantemente executados e o repertório é uma maravilha. Sem contar que ver aqueles personagens encarnados chega a emocionar: Sinhô, Ismael Silva, Donga, Tia Ciata... Todo mundo lá, diante de nossos olhos, cantando e contando história.
Porém, creio que há alguns problemas importantes exatamente na história que ali está contada. Escrevo estas linhas a título de contribuição a quem, assim como eu, tem gosto e amor por conhecer essa história.
O mais grave desses problemas, na minha opinião, é o esquecimento ao qual Carmen Miranda praticamente ficou relegada. Em dado momento da história, uma mulher vestida em clara referência a ela aparece cantando "O que é que a baiana tem?". Isso se dá no momento do show em que se evocam as cantoras do rádio, e o número é apresentado como "samba de Dorival Caymmi". O nome de Carmen sequer é mencionado: o locutor de rádio, que parece representar o famoso César Ladeira, anuncia a "Pequena Notável".
Diante de personagens a que o texto do espetáculo faz referência integral, como aqueles que mencionei acima, Carmen Miranda, a mais importante intérprete de samba dos anos 1930, foi escondida. Talvez haja uma justificativa da produção do musical para isso. Mas o fato é que uma estrela da grandeza de Carmen Miranda não pode ficar tão minimizada quando o tema é, justamente, a história da música que ela contribuiu muito para consagrar.
Alguns não gostam de Carmen pela opção que ela fez, a certa altura de sua carreira, de ir trabalhar nos EUA (já falei sobre isso em outro artigo). Alguns, como Noel Rosa, não gostam dela por rejeitar seu modo de cantar. Mas nenhum desses pode desabonar a importância que ela teve no momento em que o samba consolidou-se como gênero musical genuinamente brasileiro.
A referência que o espetáculo fez a Mário Reis também se apresentou bastante equivocada. Diogo, ao interpretá-lo cantando "Jura", de Sinhô, um de seus grandes sucessos, lembra muito mais o canto de Francisco Alves que de Mário Reis. Parece preciosismo, mas não é não: para se contar a história do samba, é preciso lembrar que, com ele, nasceu um modo brasileiro de cantar, no qual Mário Reis é pioneiro. Diz-se que foi ele quem inspirou João Gilberto. Sabe-se que ele inspira Chico Buarque até hoje. Portanto, expor Mário Reis executando o canto "de vozeirão" a la Francisco Alves, também se configura como erro importante.
Algumas ausências foram muito sentidas, dentre as quais eu destacaria Assis Valente, Aracy de Almeida, Clementina de Jesus e Adoniram Barbosa. Claro que, num espetáculo que tem três horas de duração, não cabe um século de personagens, necessariamente precisam-se fazer escolhas. Mas, aqui, minha crítica é que deixar esses imensos e intensos personagens de fora nunca seria uma boa escolha.
Se Bossa Nova é samba ou não, essa é uma polêmica que nunca terá fim. Ela aparece no show sob os dedos de Diogo Nogueira interpretando João Gilberto. Entretanto, resumir os anos 1960/1970 à Bossa Nova e os sambas de protesto de Chico Buarque não é nada razoável. Ficam escamoteadas, inclusive as iniciativas de João Nogueira, pai de Diogo, em defesa do Carnaval de rua e do próprio samba, que, naquele momento, queria reviver e sobreviver às investidas da indústria fonográfica estrangeira. Aliás, João e Clara Nunes foram lembrados no espetáculo no trecho dedicado à memória de sambistas eternos, que jamais serão esquecidos pelo público. Foram ambos apresentados por Diogo Nogueira, respectivamente, como seu pai e sua madrinha. Porém, mais do que isso, nos tais anos 1960/1970, eles tiveram papel fundamental na evolução do samba. João, pelas razões citadas e pelo seu modo particular de cantar fraseado, dando continuidade aos artistas do canto sincopado. Clara, bem como Clementina de Jesus, exalta e valoriza a herança africana na constituição do samba: a religiosidade, as temáticas, o batuque. Expressava uma profunda brasilidade no repertório e no figurino - como, em alguma medida, Carmen Miranda fizera décadas antes.
O espetáculo marca corretamente dois pontos de virada importantíssimos na história do samba, compreendendo, inclusive, invenção e ressignificação de instrumentos: a turma do Largo do Estácio, no fim dos anos 1920; e o Cacique de Ramos, nos anos 1980. Também marca a importância do Teatro de Revista e da era do rádio para a popularização do samba.
Mas, para mim, nada foi mais emocionante do que ver Noel Rosa e Martinho da Vila conversando num banco de praça em Vila Isabel (sei que eu sou suspeita, mas e daí? rsrs). "Nosso tempo é o da poesia, Noel", retruca Martinho quando o Poeta da Vila assombra-se com o diálogo entre dois tempos históricos.
A experiência que o show propõe é interessante, certamente. Mais precisão histórica e inclusão de personagens e marcas fundamentais enriqueceriam decisivamente essa experiência, que, afinal, conta a história de todos e todas nós.
O musical é muito bem produzido no que se refere à parte artística: os números são brilhantemente executados e o repertório é uma maravilha. Sem contar que ver aqueles personagens encarnados chega a emocionar: Sinhô, Ismael Silva, Donga, Tia Ciata... Todo mundo lá, diante de nossos olhos, cantando e contando história.
Porém, creio que há alguns problemas importantes exatamente na história que ali está contada. Escrevo estas linhas a título de contribuição a quem, assim como eu, tem gosto e amor por conhecer essa história.
O mais grave desses problemas, na minha opinião, é o esquecimento ao qual Carmen Miranda praticamente ficou relegada. Em dado momento da história, uma mulher vestida em clara referência a ela aparece cantando "O que é que a baiana tem?". Isso se dá no momento do show em que se evocam as cantoras do rádio, e o número é apresentado como "samba de Dorival Caymmi". O nome de Carmen sequer é mencionado: o locutor de rádio, que parece representar o famoso César Ladeira, anuncia a "Pequena Notável".
Diante de personagens a que o texto do espetáculo faz referência integral, como aqueles que mencionei acima, Carmen Miranda, a mais importante intérprete de samba dos anos 1930, foi escondida. Talvez haja uma justificativa da produção do musical para isso. Mas o fato é que uma estrela da grandeza de Carmen Miranda não pode ficar tão minimizada quando o tema é, justamente, a história da música que ela contribuiu muito para consagrar.
Alguns não gostam de Carmen pela opção que ela fez, a certa altura de sua carreira, de ir trabalhar nos EUA (já falei sobre isso em outro artigo). Alguns, como Noel Rosa, não gostam dela por rejeitar seu modo de cantar. Mas nenhum desses pode desabonar a importância que ela teve no momento em que o samba consolidou-se como gênero musical genuinamente brasileiro.
A referência que o espetáculo fez a Mário Reis também se apresentou bastante equivocada. Diogo, ao interpretá-lo cantando "Jura", de Sinhô, um de seus grandes sucessos, lembra muito mais o canto de Francisco Alves que de Mário Reis. Parece preciosismo, mas não é não: para se contar a história do samba, é preciso lembrar que, com ele, nasceu um modo brasileiro de cantar, no qual Mário Reis é pioneiro. Diz-se que foi ele quem inspirou João Gilberto. Sabe-se que ele inspira Chico Buarque até hoje. Portanto, expor Mário Reis executando o canto "de vozeirão" a la Francisco Alves, também se configura como erro importante.
Algumas ausências foram muito sentidas, dentre as quais eu destacaria Assis Valente, Aracy de Almeida, Clementina de Jesus e Adoniram Barbosa. Claro que, num espetáculo que tem três horas de duração, não cabe um século de personagens, necessariamente precisam-se fazer escolhas. Mas, aqui, minha crítica é que deixar esses imensos e intensos personagens de fora nunca seria uma boa escolha.
Se Bossa Nova é samba ou não, essa é uma polêmica que nunca terá fim. Ela aparece no show sob os dedos de Diogo Nogueira interpretando João Gilberto. Entretanto, resumir os anos 1960/1970 à Bossa Nova e os sambas de protesto de Chico Buarque não é nada razoável. Ficam escamoteadas, inclusive as iniciativas de João Nogueira, pai de Diogo, em defesa do Carnaval de rua e do próprio samba, que, naquele momento, queria reviver e sobreviver às investidas da indústria fonográfica estrangeira. Aliás, João e Clara Nunes foram lembrados no espetáculo no trecho dedicado à memória de sambistas eternos, que jamais serão esquecidos pelo público. Foram ambos apresentados por Diogo Nogueira, respectivamente, como seu pai e sua madrinha. Porém, mais do que isso, nos tais anos 1960/1970, eles tiveram papel fundamental na evolução do samba. João, pelas razões citadas e pelo seu modo particular de cantar fraseado, dando continuidade aos artistas do canto sincopado. Clara, bem como Clementina de Jesus, exalta e valoriza a herança africana na constituição do samba: a religiosidade, as temáticas, o batuque. Expressava uma profunda brasilidade no repertório e no figurino - como, em alguma medida, Carmen Miranda fizera décadas antes.
O espetáculo marca corretamente dois pontos de virada importantíssimos na história do samba, compreendendo, inclusive, invenção e ressignificação de instrumentos: a turma do Largo do Estácio, no fim dos anos 1920; e o Cacique de Ramos, nos anos 1980. Também marca a importância do Teatro de Revista e da era do rádio para a popularização do samba.
Mas, para mim, nada foi mais emocionante do que ver Noel Rosa e Martinho da Vila conversando num banco de praça em Vila Isabel (sei que eu sou suspeita, mas e daí? rsrs). "Nosso tempo é o da poesia, Noel", retruca Martinho quando o Poeta da Vila assombra-se com o diálogo entre dois tempos históricos.
A experiência que o show propõe é interessante, certamente. Mais precisão histórica e inclusão de personagens e marcas fundamentais enriqueceriam decisivamente essa experiência, que, afinal, conta a história de todos e todas nós.
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