domingo, 20 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 4)

Tito fez cara de espanto. Carolina tinha cada vez mais medo desse lapso de memória. Agora era certo: foi apenas aquele trecho da noite que se apagou de sua lembrança. Fora à pista de dança, queria fazer alguma coisa lá antes que chegasse o dia 1º de janeiro. Talvez, somente dançar. Talvez quisesse começar o ano novo dançando.

- Carol, não se preocupe mais. Vai ver os olhos não estavam lacrimejantes e foi tudo impressão minha – considerou Graça.

- Mas por que eu subi no telhado?

- Não sei, não importa. Fique tranquila, não deve ter nada nesse espaço de tempo que você precise saber. Tudo parece normal, nos trilhos, igual ao que estava antes de você cair. Está tudo bem.

Era verdade mesmo, estava tudo bem. A festa corria sem problemas, as pessoas se divertiam, até os desconhecidos. Devagar, ela passou a seguir o conselho de Graça. Dane-se o telhado e os eventuais motivos. Nada disso havia mais, nada disso tinha sentido, não existia. Danem-se as dores. Eram os primeiros momentos do ano novo.

Não podia dançar porque os machucados incomodavam, então, pôs-se a beber. Foi quando Tito voltou para perto dela. Primeiro, insistiu para levá-la ao hospital, mas ela titubeava. Consensualizaram que ela visitaria um posto de saúde tão logo despertasse no dia seguinte.

Mudaram de assunto, e mudaram de assunto outras tantas vezes, até começarem a falar de coisas íntimas e do coração. Ora, que tinha de mais? Todo mundo gosta de estar com alguém na virada do ano. Tito lhe representava um território familiar, e, como Carol se sentia solitária diante daquela confusão, baixou a guarda e permitiu que o momento a levasse a qualquer lugar. Normal.

Érico foi um dos que notaram esse movimento quando foi se despedir:

- Estou indo.

- Mas já?

- Queria me certificar de que está tudo bem... Você não lembra mesmo de ter brigado comigo? Acha que teve uma pancada na cabeça que lhe alterou a memória?

- Não lembro mesmo e não faço ideia de que motivo eu poderia ter para brigar contigo, Érico! Você é uma das pessoas que eu mais amo nesta vida, duvido que seria incapaz de me chatear em plena noite de ano novo! – e, após curta pausa, enquanto ele a olhava embasbacado, ela concluiu – E... Quer saber? Se alguma coisa aconteceu, eu esqueci. Então, esqueça também.

No rosto dele, havia um misto de espanto com melancolia.

- Carol, você esqueceu só que brigou comigo ou esqueceu mais coisas?

- Eu não sei por que fui ao telhado e não sei como caí – ela murmurou em seu ouvido, para que ninguém ouvisse.

- Acho tudo isso muito estranho. Podemos conversar outro dia?

- Claro!

Ele abraçou-a reticente, mas saiu em passos decididos.

Érico e Carolina conheceram-se no trabalho e imediatamente se identificaram um com o outro. Em pouco tempo, a amizade se estendeu para fora do escritório, e eles se encontravam após o expediente e nos finais de semana. Trocavam confidências, faziam planos e dividiam desejos, riam muito, falavam de qualquer coisa ou apenas não falavam nada. Eram “unha e carne”, como se diz.

Quando Carol e Tito terminaram seu namoro, Érico passou a se aproximar dela de um modo diferente. Brincava com a possibilidade de ficarem juntos, e Carol se assustou. Estava tudo tão certo, não havia por que mudar nada.

- Querido, nós somos amigos e só.

- Não sei por que você quer colocar essa limitação, é muito melhor se apaixonar por uma pessoa amiga! Com inimigos fica difícil!

Em certo tempo, ele interrompeu as brincadeiras com medo de perder a presença da amiga. Talvez ele mesmo não tivesse certeza do que estava fazendo, essas coisas não são simples de se calcular. Talvez fosse melhor manter tudo como estava.

Carolina voltou-se para Tito com um enorme ponto de interrogação na face. Na falta de alguém mais certeiro, dirigiu-se ao ex-namorado mesmo:

- Você me viu brigar com o Érico?

- Vi sim.

- Ai que bom, Tito, então me salva desta ignorância!

- Ué, eu vi vocês discutindo na pista de dança! Você não lembra?

- Não! Acho que bati a cabeça e perdi alguma coisa da memória recente...

- Esquecer motivos de brigar é ótimo, Carol, deixe assim.

Tito lembrou-a de que bater a cabeça é motivo importante de ir ao hospital na manhã seguinte. Então, abraçaram-se naturalmente e assim permaneceram. Normal. Exceto para Amanda, que, quando teve oportunidade, puxou a irmã caçula para longe de lá.

- O que você está fazendo?

- Nada, ué. Curtindo a minha festa.

- Com o Tito???

- Mais ou menos, né...

- O que houve com o Érico?

- Foi embora há um tempinho já...

- Vocês brigaram?

- Parece que sim, mas não lembro.

- Não lembra???

- Não – e, diante da expressão surpresa da irmã, Carolina fechou o tempo e endureceu a voz – Amanda, você quer me explicar o que está acontecendo?

- Eu não estou entendendo nada, Carol. Pensei que você tinha superado o Tito, pensei que você quisesse ficar com o Érico.

- Com o Érico?! Por que você pensaria isso?

- Porque você me falou!

Tudo mudava a cada dez minutos. O ano novo já nasceu agitado.

Carolina olhou Tito conversando com amigos a poucos metros dela. Encerraram sua relação sem gritos ou maldizeres, simplesmente o amor que eles se tinham era pouco e se acabou. Ninguém sofreu demais por isso. Sendo assim, não era estranho se aproximarem outra vez. A intensidade do sentimento, muitas vezes, é inimiga do relacionamento. Não havia nada demais em quererem ficar juntos.

- Eu te disse que queria ficar com o Érico?

- Sim, Carol, logo depois que ficaram juntos.

- Eu fiquei com o Érico??!

***
Continua...

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