terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Deja vu - Um conto de revéillon (parte 6)

O ano, aliás, começou de verdade na segunda-feira, dia de trabalho. Tudo normal, exceto porque alguns pararam de fumar, outros começaram dietas, uma meia dúzia começou a correr diariamente. Tudo normal, exceto que duas pessoas que antes eram grandes amigas agora estavam afastadas, sem falar direito uma com a outra, e sem nem saber bem o porquê disso.

Aquela ausência entristecia Carolina mais que a grosseria do dia 1º de janeiro. A falta é um buraco que se abre na alma, insolúvel. Quando se sente a falta de alguém que está por perto, o sentimento é muito específico. A falta é ouvir a voz da pessoa quando ela não falou nada. A falta é morar em todos os lugares aonde a pessoa não vai.

Carolina olhava Érico de longe e não sentia o amor que ele lhe dedicou outrora. Abria-se-lhe no peito uma dor inexplicável. Nada daquilo era explicável, afinal.

Desejava poder voltar o tempo para quando aquela festa não tinha acontecido. Se pudesse refazer suas decisões, não teria organizado festa nenhuma, teria passado a noite de ano novo dormindo, nem que fosse à base de soníferos.

O tempo, por sua vez, não volta atrás, mas sabe correr. O tempo correu para um lugar onde o sofrimento de não saber se dissipou em uma variedade de sentimentos entre a conformidade e a melancolia. Carolina mastigava sua nostalgia em pleno ano novo, como aquele que pressiona eternamente entre os dentes uma folha de bálsamo, por exemplo.

Foi então que os dois ex-amigos foram desafiados a se encarar. Isso se deu quando já eram capazes de fazer isso, de forma natural. Sabiam que esse momento chegaria. Era noite de sexta-feira, aniversário de um colega do escritório. Todos saíram do trabalho direto para o bar, onde se armou uma mesa comprida em que pessoas gritavam para se ouvirem, riam escandalosas e se aliviavam das pressões cotidianas da vida entre goles de cerveja.

Os dois se sentaram lado a lado, e não esconderam o constrangimento. Eram, antes, tão íntimos. Agora, trocavam monossílabos esquisitos e gaguejantes, de quem não tem nada para dizer.

Carolina não se conformava com aquele triste fim de uma bela amizade, e resolveu agir para reverter o constrangimento. Fez perguntas sobre a família dele, sobre o trabalho, e, lá pelas tantas, já estava confessando a falta que ele lhe fazia.

- Eu também sinto sua falta, Carol.

Ela respirou aliviada, como se até ali o ar que a penetrava não tivesse encontrado o caminho dos pulmões, só agora. Sabia que não podia controlar o tempo para remediar coisas passadas, mas entendeu que tinha controle sobre o presente: não falou sobre a festa, a queda, a briga, a grosseria. O passar dos minutos trouxe a Carolina e Érico os assuntos que sempre tiveram antes: era a vida correndo solta, como se a interrupção fosse derivada de um salto sobre um amontoado de rochas. O salto pode até ter provocado um tombo, mas bastou levantar-se para voltar a correr outra vez.

Da mesma forma que costumava fazer antes, Carolina perguntou a Érico como estava a moça com quem ele saía vez ou outra no ano passado. Foi quando ele tornou a apresentar o olhar entre desconcertado e desconfiado, que ela reconheceu de pronto.

- Ué, Carol, desde o fim do ano passado eu não a vi mais.

Deduzindo que isso pudesse ter alguma relação com a parte de sua memória que a amnésia apagou, ela tentou mudar de assunto rapidamente. Porém, antes que ela fosse bem-sucedida, Érico prosseguiu:

- Amanhã vou sair com a Liz.

Liz fora colega de ambos, mas tinha deixado o escritório havia poucos meses. Carol sempre alertara o amigo de que a jovem tinha pretensões com ele, mas ele preferia fingir-se de desentendido: sabia que Carolina não ia com a cara da garota.

Ao ouvir a revelação, ela engoliu seco e ficou sem saber para onde olhar.

- Ah, então, finalmente decidiu dar uma chance à moçoila?

- Se você disser para eu não ir, eu não vou.

Trezentos tipos diferentes de calafrios percorreram o corpo de Carolina naquele momento. Ela engasgou, tossiu, foi um fiasco. Érico riu. Sentir aquele riso carinhoso era o gengibre de que ela precisava. Riu também, e continuaram no mesmo lugar de onde nunca deveriam ter saído.

Não demorou e foram interpelados pelos colegas, sedentos de interação e de mais cerveja. Àquela altura, a embriaguez de todos já os fazia avulsos a conversas particulares que cada qual pudesse nutrir, e sociáveis o bastante para não permitir que ninguém saísse daquele contexto coletivo quase simbiótico.

A noite passava, e ficou inevitável para Carolina empreender nova tentativa de recuperar a noite de réveillon. Tomava força em seus pensamentos a revelação feita pela irmã poucas horas após perder a memória. Telefonou para Amanda, então.

***
Continua...

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