quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Não sambe

As palavras ruins se associam por afinidade. Tristeza, ódio, golpe, obscurantismo, autoritarismo. A imposição do silêncio; e nós sabemos que paz sem voz não é paz, é medo. O toque de recolher. Os assuntos proibidos, as desavenças gratuitas: preconceito, violência, cultura do ódio a todo vapor. O cara nem sabe por que odeia, pensa que ele mesmo formulou o ódio ao outro, sem notar que ele comprou um ódio prontinho de fábrica, de segunda mão, único dono. Mas meu senhor, por que tanto rancor? Por que me agride sem me conhecer?

A resposta é o silêncio que atravessa a madrugada. O escuro da noite é belo, mas querem tonar sombrio. A beleza dos nossos sonhos e das nossas lutas, nossos punhos cerrados, nossos braços erguidos, tudo isso virou ofensa. A democracia virou ofensa.

Não pode. Não vá. Não cante. Não pule. Não torça. Não vaie. Não fale de amor. Não erga sua bandeira. Não vista vermelho. Não expresse sua opinião. Há um grito parado no ar, eu não vejo, mas posso senti-lo.

Não sambe. Não sambe. Não sambe. Mas senhor, o samba não agride ninguém. No início do século passado, a gente era criminalizado, samba era vadiagem, João da Baiana foi preso somente por portar um pandeiro. Delegados sem alma e sem coração que não querem samba nem corimba na sua jurisdição. Tinha ficado no passado, mas não. Quando o ódio é maior que o amor, o samba não encontra seu lugar mesmo. Já fomos criminosos. Já fomos vagabundos. Já fomos baderneiros. Tudo bêbado. Mas por que, senhor? É que mesmo calado o peito, resta a cuca.

Somos de novo vagabundos. Artista é vagabundo. Outra vez, somos baderneiros. Vamos acabar com o samba, madame não gosta que ninguém sambe. Mas por que, senhor? Tanta alegria ofende. Juntar gente é perigoso.

Meu samba está sem casa. Mas ainda tem gente que canta, ainda tem gente que brinca. Não podem tolerar gente que canta, somos perigosos. Silêncio, silêncio. Já não há lugar, vamos fechar, vamos esvaziar, vamos interromper. Mandou parar a cuíca: é coisa dos hóme. A fome e a raiva é coisa dos hóme.

Meu samba está sem casa. Mas o samba não se aprisiona em casa nenhuma, não senhor. Quem suportar uma paixão, saberá que a casa do samba é o coração. E em nossos corações vocês não vão poder mandar. Quero ver quem haverá de calar a música que ecoa aqui dentro da minha cabeça.

Meu samba está sem casa, mas o samba é da rua, o samba é sem rumo, o samba é do povo, do amor e de todo lugar. Nós não vamos ficar na saudade: o samba é a nossa casa. E sempre haverá casa para quem tem amor.

"É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar

Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva"

(MORDAÇA - Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro)


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