O espetáculo SAMBRA, protagonizado por Diogo Nogueira, vem percorrendo o Brasil para saudar cem anos de história do samba - desde o registro de "Pelo Telephone" por Donga e Mauro de Almeida. A iniciativa é de se festejar, afinal, exaltar a cultura popular brasileira nunca é demais, e a história do samba se confunde mesmo com a própria história do país.
O musical é muito bem produzido no que se refere à parte artística: os números são brilhantemente executados e o repertório é uma maravilha. Sem contar que ver aqueles personagens encarnados chega a emocionar: Sinhô, Ismael Silva, Donga, Tia Ciata... Todo mundo lá, diante de nossos olhos, cantando e contando história.
Porém, creio que há alguns problemas importantes exatamente na história que ali está contada. Escrevo estas linhas a título de contribuição a quem, assim como eu, tem gosto e amor por conhecer essa história.
O mais grave desses problemas, na minha opinião, é o esquecimento ao qual Carmen Miranda praticamente ficou relegada. Em dado momento da história, uma mulher vestida em clara referência a ela aparece cantando "O que é que a baiana tem?". Isso se dá no momento do show em que se evocam as cantoras do rádio, e o número é apresentado como "samba de Dorival Caymmi". O nome de Carmen sequer é mencionado: o locutor de rádio, que parece representar o famoso César Ladeira, anuncia a "Pequena Notável".
Diante de personagens a que o texto do espetáculo faz referência integral, como aqueles que mencionei acima, Carmen Miranda, a mais importante intérprete de samba dos anos 1930, foi escondida. Talvez haja uma justificativa da produção do musical para isso. Mas o fato é que uma estrela da grandeza de Carmen Miranda não pode ficar tão minimizada quando o tema é, justamente, a história da música que ela contribuiu muito para consagrar.
Alguns não gostam de Carmen pela opção que ela fez, a certa altura de sua carreira, de ir trabalhar nos EUA (já falei sobre isso em outro artigo). Alguns, como Noel Rosa, não gostam dela por rejeitar seu modo de cantar. Mas nenhum desses pode desabonar a importância que ela teve no momento em que o samba consolidou-se como gênero musical genuinamente brasileiro.
A referência que o espetáculo fez a Mário Reis também se apresentou bastante equivocada. Diogo, ao interpretá-lo cantando "Jura", de Sinhô, um de seus grandes sucessos, lembra muito mais o canto de Francisco Alves que de Mário Reis. Parece preciosismo, mas não é não: para se contar a história do samba, é preciso lembrar que, com ele, nasceu um modo brasileiro de cantar, no qual Mário Reis é pioneiro. Diz-se que foi ele quem inspirou João Gilberto. Sabe-se que ele inspira Chico Buarque até hoje. Portanto, expor Mário Reis executando o canto "de vozeirão" a la Francisco Alves, também se configura como erro importante.
Algumas ausências foram muito sentidas, dentre as quais eu destacaria Assis Valente, Aracy de Almeida, Clementina de Jesus e Adoniram Barbosa. Claro que, num espetáculo que tem três horas de duração, não cabe um século de personagens, necessariamente precisam-se fazer escolhas. Mas, aqui, minha crítica é que deixar esses imensos e intensos personagens de fora nunca seria uma boa escolha.
Se Bossa Nova é samba ou não, essa é uma polêmica que nunca terá fim. Ela aparece no show sob os dedos de Diogo Nogueira interpretando João Gilberto. Entretanto, resumir os anos 1960/1970 à Bossa Nova e os sambas de protesto de Chico Buarque não é nada razoável. Ficam escamoteadas, inclusive as iniciativas de João Nogueira, pai de Diogo, em defesa do Carnaval de rua e do próprio samba, que, naquele momento, queria reviver e sobreviver às investidas da indústria fonográfica estrangeira. Aliás, João e Clara Nunes foram lembrados no espetáculo no trecho dedicado à memória de sambistas eternos, que jamais serão esquecidos pelo público. Foram ambos apresentados por Diogo Nogueira, respectivamente, como seu pai e sua madrinha. Porém, mais do que isso, nos tais anos 1960/1970, eles tiveram papel fundamental na evolução do samba. João, pelas razões citadas e pelo seu modo particular de cantar fraseado, dando continuidade aos artistas do canto sincopado. Clara, bem como Clementina de Jesus, exalta e valoriza a herança africana na constituição do samba: a religiosidade, as temáticas, o batuque. Expressava uma profunda brasilidade no repertório e no figurino - como, em alguma medida, Carmen Miranda fizera décadas antes.
O espetáculo marca corretamente dois pontos de virada importantíssimos na história do samba, compreendendo, inclusive, invenção e ressignificação de instrumentos: a turma do Largo do Estácio, no fim dos anos 1920; e o Cacique de Ramos, nos anos 1980. Também marca a importância do Teatro de Revista e da era do rádio para a popularização do samba.
Mas, para mim, nada foi mais emocionante do que ver Noel Rosa e Martinho da Vila conversando num banco de praça em Vila Isabel (sei que eu sou suspeita, mas e daí? rsrs). "Nosso tempo é o da poesia, Noel", retruca Martinho quando o Poeta da Vila assombra-se com o diálogo entre dois tempos históricos.
A experiência que o show propõe é interessante, certamente. Mais precisão histórica e inclusão de personagens e marcas fundamentais enriqueceriam decisivamente essa experiência, que, afinal, conta a história de todos e todas nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário