A maior cidade do país é o espelho principal das nossas maiores contradições, sem nunca ter se conformado com elas. Ela não é imprevisível, ela não é uma geleia desforme. Ela não é de direita.
Quando a esquerda partidária recém se reerguia após vinte e um sombrios anos de ditadura militar, São Paulo elegeu uma mulher paraibana prefeita. Foi uma grande prefeita, valorizou o serviço público, priorizou a Educação, a Saúde, a Cultura Popular. Isso não se faz impunemente, e um personagem que muitos então consideravam morto (dada a sapiência nacional quanto ao seu compromisso com a derrotada ditadura, bem como quanto à sua vocação para a corrupção) foi ressuscitado pela elite que lhe entregou a tarefa do botar a cidade "nos eixos". Da força da grana que ergue e destrói coisas belas, ressurgiu Paulo Maluf para gritar diante de todos nós que a cidade não é nossa não senhor, que os servidores devem se colocar no seu devido lugar, que é o mercado que deve organizar a vida das pessoas. E dá-lhe obras milionárias, superfaturadas e pouco úteis. Sonhando ser presidente da República, essa criatura entregou a Prefeitura da maior cidade do país para o poste da vez, Celso Pitta, que ninguém conhecia, que tinha sido seu Secretário de Finanças (pense num ser que cuidou das Finanças numa gestão de Paulo Maluf), que tinha feito pós-graduação nos EUA e continuaria o trabalho do seu padrinho. Só que ele e seus vereadores foram com tanta sede ao pote que realmente trataram a cidade como propriedade sua, e caçoaram do povo paulistano em escândalos de corrupção explícita numa época em que era preciso bem mais que convicção do Ministério Público para prender alguém. Então, em 2000, quando nacionalmente se avistava uma onda vermelha, levantada pelos braços fortes e cansados de homens e mulheres que passaram toda aquela década resistindo ao neoliberalismo, às privatizações e à corrupção, São Paulo estava doente de tudo isso, e mais uma mulher conseguiu vencer a disputa pela Prefeitura, enfrentando o machismo que a reduzia a esposa de alguém e a condenava ao rótulo de "sexóloga". Ela foi uma grande prefeita, revolucionou o modelo de transportes, iniciou um processo de ligação centro-periferia que seus sucessores não conseguiram destruir. Não se faz isso impunemente, e lá veio José Serra defender o legado de tédio, do nojo e do ódio que fora derrotado nas eleições nacionais justamente na sua própria figura. E Serra reinverteu as prioridades, governou com os poderosos no bolso e nos gabinetes, não concluiu seu mandato para manter sua tradição pessoal e entregou a cidade a um aventureiro representante legítimo da covarde e escravocrata elite paulistana. Gilberto Kassab conseguiu se reeleger com o apoio de seu padrinho (que, inclusive, já em guerra interna pela hegemonia do próprio partido, só fingiu que seu candidato era aquele que hoje governa o estado e que acaba de eleger prefeito um homem que é só sua invenção tresloucada). E depois daquele marasmo todo, a cidade, acorrentada, debateu-se forte mais uma vez para poder entregar a condução dela ao cientista político, ex-Ministro da Educação, que olhou São Paulo como um todo e aceitou o desafio de transformá-la numa panamérica de áfricas utópicas em que as pessoas têm direito à própria cidade. Não se faz isso impunemente.
São Paulo está acorrentada, mas se debatendo. A cidade é viva, e mais do que nunca, graças à nossa última intervenção nela. A decisão dos paulistanos, outra vez, foi a pior possível. Mas quem aqui é ingênuo a ponto de pensar que os paulistanos tomaram essa decisão livremente, e em condições justas de disputa? A importância de São Paulo é enorme, é decisiva para nós como é para eles, e todos nós sabemos disso. É por isso que nós jamais conseguimos transformar a cidade impunemente, mas eles também não conseguem reverter as nossas conquistas com facilidade. É por isso que, em 28 anos, a cidade acorrentada está sempre se debatendo, sem se conformar, sem permitir. É por isso que, nesse poço de contradição, São Paulo é referência nossa sim. É por isso que, nesse tempo todo, eles utilizaram o pior que há em seu arsenal para construir a rejeição de Luiza Erundina, de Marta Suplicy, de Fernando Haddad. Parece que não dá pra acreditar. Mas dá sim.
A cidade que, generosa e imponente, ofereceu palco e cenário para a reconstrução da esquerda nacional, que é sede do PT, da CUT, do MST, do MTST, do PSOL, da Marcha Mundial das Mulheres; também garante terreno para a Fiesp, para a Opus Dei, para o Luciano Huck e os empreendimentos de gente que treina o sorriso no espelho todo dia para disfarçar a podridão de sua trajetória real. Tudo isso convive, e não em paz. A cidade acorrentada se debate sempre. A culpa não é do povo.
O ódio sem noção, sem sentido, sem razão (como todo ódio) do qual Erundina foi vítima, Marta foi vítima, Haddad é vítima e todos nós temos sido vítimas mais do que nunca. Ódio que se apropriou dos nossos erros, mas é motivado pelos nossos acertos. Ódio cuidadosamente elaborado nas salas fechadas nas residências do Poder Judiciário, dos banquetes palacianos, do Parlamento, da mídia, do grande empresariado nacional e internacional. Foram eles que pagaram a campanha do playboy colunista social cafona e hipócrita. Foi deles que veio o discurso. Foram eles que usaram Russomano para isso. São eles que, a partir de agora, se digladiarão internamente em batalhas fatais para escolher qual dos dois será o condutor desse projeto nacional daqui por diante: o pai de Kassab ou o pai de Dória.
São Paulo está acorrentada, mas ela não se acorrentou sozinha não. Não odeiem a cidade, seu povo, muito menos aqueles e aquelas que seguem fazendo dela o mais possível quilombo de Zumbi. O que fizemos e fazemos em São Paulo é referência e motivo de orgulho, e é assim que nossa metrópole nos deixa a principal lição que se pode assimilar de mais este processo viciado de eleições: nós, lutadores e lutadoras, jamais executaremos nosso programa impunemente.
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