quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Rainha Carmen Miranda, saravá!

“Mas pra cima de mim, pra quê tanto veneno?
Eu posso lá ficar americanizada?!
Eu, que nasci com o samba e vivo no sereno
Tocando a noite inteira a velha batucada!”
(Disseram que voltei americanizada, de Luiz Peixoto e Vicente Paiva)


Por mais birra que alguns sustentem pela sua escolha, a certa altura do campeonato, de ir trabalhar nos Estados Unidos, não é possível negar a importância de Carmen Miranda para a música popular brasileira. Nascida em Portugal, Carmen chegou com a família ao Rio de Janeiro antes de completar um ano de idade. Sempre reivindicou o Brasil e sua cultura popular, era apaixonada pelo Carnaval – deu vida a dezenas de marchinhas – e foi figura fundamental para a consolidação do samba como principal gênero musical genuinamente brasileiro.

Cheguei a Carmen Miranda por causa de Clara Nunes. No início da década de 1970, então novo produtor de Clara, Adelzon Alves notou que ela guardava um diferencial luminoso: sua relação com a brasilidade em todas as suas expressões. Era uma lacuna que havia ficado vaga desde a morte de Carmen (vejam a ironia: ninguém tinha expressado o Brasil melhor que ela, tão criticada por ter ido viver nos EUA). Clara era mineira, filha de uma família pobre do interior, ex-tecelã, espiritualidade à flor da pele, muita intimidade com a cultura afro-brasileira. Com a observação de que ela tinha as qualidades necessárias para capitanear aquele legado, Clara passou a levar essa brasilidade mestiça no figurino, nos acessórios, nos cabelos, e, mais do que nunca, no repertório. Deu certo. Foi a partir dali que ela estourou.

Carmen Miranda tornou-se cantora aos 20 anos. Seu primeiro grande sucesso foi a marchinha Taí – Pra você gostar de mim, de Joubert de Carvalho, que quebrou recordes de vendas na época. Foi pioneira na arte de cantar interpretando a letra, a ponto de dizerem sobre ela que “parece que a cantora vem dentro do disco”.

Assis Valente
Simpática e generosa, tratava com amizade aqueles que a cercavam. Conviveu com todos os gênios da música brasileira no período, como Pixinguinha, Donga e João da Baiana. Além desses, trabalhou com Ary Barroso, Lamartine Babo, Almirante, Bide, Herivelto Martins, Alcyr Pires Vermelho, Ataulpho Alves, entre muitos outros. No baiano Assis Valente encontrou seu compositor predileto, e consagrou joias como Camisa Listada e E o mundo não se acabou. Quando Carmen regressou de sua primeira temporada nos EUA, em 1940, Assis lhe apresentou Brasil Pandeiro, samba inspirado na trajetória da Pequena Notável em terras estrangeiras. Ela não quis gravá-la por temer que parecesse autoproclamatório. Gravaram-na, então, os Anjos do Inferno. Na ocasião, Carmen deu voz a outra brilhante obra de Assis: Recenseamento.

Porém, ela não era unanimidade. Noel Rosa, por exemplo, nunca escondeu sua rejeição pelo modo de cantar de Carmen – embora ela tenha gravado canções suas, como, com Francisco Alves, Retiro da Saudade; e a sensacional marchinha O que é que você fazia, parceria de Noel com Hervê Cordovil.

Embora possa ter se desentendido com (poucas) pessoas, Carmen não guardou inimigos, e sua casa, inclusive em Hollywood, sempre foi ponto de encontro de amigos em torno de música, papo e comida preparada por sua mãe.

A verdade é que Carmen Miranda foi um fenômeno da música brasileira, revelou diversos compositores – caso de Dorival Caymmi e Synval Silva – e, em pleno advento do rádio, contribuiu para que o país prestasse atenção na música que se produzia nos subúrbios da capital federal, sob forte influência daqueles que migravam desde a antiga capital federal. Então, por que essa resistência que alguns insistem em manter contra ela, ao ignorar ou até mesmo negar seu legado?

Carmen cumpriu sua vocação no Brasil durante dez anos até que empresários estadunidenses, ao visitar um cassino onde ela se apresentava no Rio, vissem nela uma mina de ouro. Naquele momento, ela já se apresentava em diversas cidades brasileiras – em São Paulo com certa frequência, mas também em outras, como Salvador e Recife – e da América Latina – os shows em Buenos Aires eram lotados e o povo argentino desenvolveu enorme carinho pela artista.

Com sua irmã, também cantora, Aurora
Os EUA se lhe apresentavam como novo desafio na carreira. Lá, seu trabalho se daria primeiro na Broadway, mas rapidamente se deslocaria para Los Angeles. Os estadunidenses se encantaram com seus trejeitos, seus balangandãs e seu figurino – que transformaram em produto altamente rentável –, mas principalmente se encantaram com seu canto, seu carisma e com o gingado da música brasileira. Afinal, era isto que dava significado àquilo. Era um período histórico em que os EUA buscavam reforçar seu domínio sobre o continente americano, que, até bem pouco tempo antes, era dominado pelas potências europeias, particularmente, pela Inglaterra. Os bens culturais também foram instrumento dessa aproximação. Parece-me que, se o trabalho de Carmen foi utilizado nessa direção, é evidente que ela não pode ser responsabilizada por isso. Antes, o desenrolar de sua carreira nos EUA fez dela mais uma vítima dos padrões de consumo do American Way of Life.

Carmen Miranda encarou corajosa e vitoriosamente os desafios que recebeu: o de ser a maior cantora brasileira de sua época e o de desbravar o mercado artístico dos EUA. Sua família vinha da classe média baixa, e até começar a ganhar dinheiro com a música, viviam todos no centro do Rio de Janeiro. Desde menina, sonhava com um bom casamento, que lhe desse filhos e realização pessoal. Conscientemente ou não (creio que não), ela subordinou esse sonho à vocação para a arte. Gostava de trabalhar e não se intimidava por jornadas longas ou condições difíceis.

Quando, em 1939, partiu para Nova Iorque, deixou um grande amor no Rio de Janeiro, amor que nunca reaveria. Na terra do tio Sam, relacionou-se com alguns colegas, nenhum que lhe tenha proposto casamento, pois, a rigor, preferiam as moças da alta sociedade e/ou com menos visibilidade que eles. Além disso, ficava implícito ali o velho preconceito dos estadunidenses em relação às mulheres latinas.

Ao mesmo tempo, Carmen se via aprisionada na personagem vestida como baiana estilizada, obrigada a falar inglês com sotaque em personagens cômicos, sem nunca ter realizado plenamente o desejo de explorar suas habilidades de atriz – ainda que, por algum tempo, tenha chegado a ser a mulher mais bem paga de Hollywood. Exposta a jornadas de trabalho massacrantes, com diversas apresentações no mesmo dia, gravações, viagens, tudo numa intensidade frenética que ela não tinha conhecido no Brasil, recorria a “milagrosas” pílulas que a “ajudavam” a dormir, e depois, a acordar. Possivelmente com medo da solidão e dos comentários – lembremo-nos que era a década de 1940 –, casou-se com um homem que nunca amou, com quem teve uma relação tumultuada e infeliz. Viu, impotente, ser frustrado seu sonho de ter filhos. Sofreu, como muitas mulheres, a tristeza de ver seu corpo envelhecer e, por isso, ser diminuída e até descartada.

Mas fez a alegria de pessoas pelo mundo (também chegou a se apresentar na Europa), cativou aqueles que com ela conviveram, conquistou o carinho e a admiração de centenas de milhares de pessoas. Foi figura decisiva para a música brasileira no crucial momento em que o samba deixava a marginalidade e se consolidava, enquanto mudavam decisivamente os padrões de gravação e de apresentações musicais públicas.

Sua morte tão prematura comoveu o Brasil em agosto de 1955. Seu povo, que a amava e não a condenou pela opção profissional que fez, recebeu-a para o último adeus com um grande Carnaval, sua grande e verdadeira paixão. Milhares de pessoas carregaram seu caixão pelas ruas do Rio de Janeiro.

Talvez, aquela opção feita em 1940 tenha ladrilhado um triste caminho para seu fim. No ótimo documentário “Carmen Miranda – Banana is my business” (de Helena Solberg, 1995), diz-se que deveríamos tê-la guardado aqui, nunca tê-la deixado ir.

Eu, respeitosamente, divirjo. A grandeza de Carmen não podia ser contida. Se era seu desejo voar o
Com os músicos da Rádio Mayrink Veiga. Pixinguinha está
de pé, segundo da direita para a esquerda.
mais alto que pudesse, que assim fosse. Uma pena que as viagens de navio eram longas e custosas, e assim, combinado com sua estressante rotina de trabalho, ela não podia vir beber da água brasileira sempre que quisesse ou precisasse. Seu voo, para mim, é fonte de orgulho, na mesma proporção em que a dinâmica à qual ela foi atirada é fonte de indignação e de tristeza. Não se trata de “castigo”, mas sim, de ela ter pagado preço alto demais pelas escolhas que fez, numa época em que as mulheres não tinham muita escolha. E, infelizmente, os males que abateram Carmen Miranda rondam a humanidade até hoje: o machismo; a mercantilização da arte e da vida; a medicalização irresponsável e crônica das dores do corpo e da alma.

Muito de Carmen Miranda continua – e sempre estará – na música brasileira. Ela está no seu próprio repertório, cantado até hoje nos palcos, quadras e rodas de samba, ela está nos compositores que revelou, está no canto das cantoras, está nas ruas da Lapa, nos arredores do antigo Café Nice. Ela está, com certeza, no Carnaval de rua, no sucesso das marchinhas, na alegria da cultura popular brasileira, que tão bem representou.

Se depender de mim, seu trabalho sempre será lembrado e reverenciado, com todo carinho e gratidão. Saravá, Carmen Miranda!



Bibliografia 

CASTRO, Ruy. Carmen: Uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 600 p.
DINIZ, André. Almanaque do Samba. 3ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. 312 p.
FERNANDES, Vagner. Clara Nunes: Guerreira da Utopia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. 320 p.



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