domingo, 21 de setembro de 2014

Defender a família?

"(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
 De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
 Não compreende quem fala delas
 Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)"
Alberto Caeiro

É impressionante a quantidade de candidatos proporcionais que vão à TV afirmar seu empenho em defesa "da família". Parece-me um legado do processo eleitoral de quatro anos atrás, em que, a certo momento, eu já não sabia se estava votando para presidente ou para papa.

Lembro-me do primeiro romance que me marcou, Capitães da Areia, de Jorge Amado, eu devia ter uns 15 ou 16 anos. Recordo com nitidez a frase que encerra o romance: "porque a revolução é uma pátria e uma família".

Pouco tempo depois, tornei-me militante do movimento estudantil, depois, do movimento de mulheres, e junto, do PT. Dedicava a isso todo o meu tempo, acordava feliz às 7h de um sábado e de um domingo para atividades políticas e militantes. Era encantadora a convivência com as pessoas que tinham assumido o mesmo compromisso de vida que eu, particularmente, aquelas que atravessaram períodos cruéis, como a ditadura militar, sem deixar que fosse abalada sua confiança no que estavam propondo.

Era muito o tempo que passávamos lado a lado. Havia viagens (curtas e longas) a trabalho, havia reuniões de dia inteiro, de finais de semana inteiros, havia trabalho de dia e atividades militantes à noite, havia horas a fio dedicadas à organização de eventos políticos. Com algumas dessas pessoas, a relação ultrapassava os limites dos afazeres, e assim ganhei muitos amigos e amigas. Com esses, eu reclamei muito da vida e festejei muito a vida. Não era problema nenhum passarmos o dia trabalhando juntos e irmos juntos para a festa à noite. "Aquele que faz o pagode e sacode a poeira suada da luta". Éramos filhos e filhas da mesma escolha, a vida nos juntou e nos mantermos unidos era uma escolha também.

Da mesma forma, outras trajetórias coletivas foram construídas, em outros espaços da vida social. Outro dia, estava numa das rodas de samba que frequento aqui em Brasília, e pensava exatamente sobre isso. O grupo é formado por amigos que se reúnem semanalmente há 26 anos, e o elemento aglutinador é o samba, é a música popular do Brasil. Na última quarta, surpreenderam seu Nilton - o mais velho deles - com uma paródia maravilhosamente bem feita de "Garota, eu vou para a Califórnia", já que o amigo vai passar uma temporada por aquelas bandas. "Na Califórnia é diferente, irmão, nem todos gostam de samba". Seu Nilton ouviu surpreso e emocionado. E, no seu retorno, estaremos - sim, me incluo - todos ansiosos aguardando-o cantar "Copacabana" e "Marina", com aquela voz que só ele tem.

Não é o único exemplo. Participo de, pelo menos, mais duas rodas de samba com essas características, em maior ou menor grau de aproximação e de tempo de convivência, mas o suficiente para que eu ateste que o samba, com certeza, é uma pátria e uma família. Ele também é uma escolha de vida, e também une pessoas tanto quanto ou até mais que um laço sanguíneo. Ele organiza seu jeito de olhar pro mundo e te faz sentir em casa.

E assim, deve haver outras famílias. Não precisa ter esse grau de abrangência, às vezes é só a turma que se formou junta na faculdade, seja há cinco, seja há trinta anos. Talvez sejam os moradores de uma rua, vizinhos há sei lá quanto tempo, entre os quais há comadres/compadres, desavenças superadas, intimidade, gente que sabe o que o outro está pensando por uma entonação de voz ou um olhar.

Eu quero saber se essa gente toda que fica na TV e nos panfletos que nem profeta alardeando que precisa defender a tal da família e que eles é que serão esses guardiões, eu quero saber se eles vão defender as minhas famílias. Mas provavelmente eles são autoritários o suficiente para ignorar solenemente a laicidade do Estado, achar que a sua religião pode ser imposta a todo mundo mesmo, e que só tem um jeito de se ter uma família: o jeito dele. Pai, mãe, filho. Espírito Santo. Às vezes tem avós, tios, primos.

Em algumas dessas famílias, há processos horríveis de violência contra a mulher, de abuso sexual de crianças. Em algumas, as pessoas se submetem a uma vida de mentiras para tolerar a infelicidade do não-amor, da não-confiança, do não-respeito. Alguns se condenam à convivência eterna somente porque alguém X numa igreja Y lhes disse que há decisões que são irrevogáveis. E há gente que gosta tanto desse tipo de família que tem mais de uma, sem que uma saiba da existência da outra. Vários desses são gente que vai à igreja, diz "graças a Deus" e ora antes de dormir.

Eu prefiro que as pessoas sintam-se em casa na casa que elas escolherem para si. Que organizem sua casa como acharem melhor, e que vivam coletivamente por opção, não porque alguém determinou. Nem a Igreja nem o Estado têm nada a ver com minhas escolhas pessoais. Quem quiser vincular suas decisões à sua religião, que o faça, eu jamais atuaria para impedir, porque todas as minhas famílias sempre me ensinaram o valor da democracia. Mas não vou admitir também que essas pessoas queiram interferir na minha vida a partir de códigos e leis que são só seus.

Quanto às minhas famílias, eu as defendo todo dia, não creio ser desejável que esse tipo de gente me substitua nessa doce tarefa. Obrigada, não.

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