A mim, sempre chamou a atenção a poesia de versos cortantes, a abordagem marcadamente original dos temas cotidianos e da conjuntura. Em 2012, quando comecei a cantar o repertório de Belchior, os estudos me levaram a lugares ainda mais diversos e sonoridades que até então tinham passado despercebidas por mim.
Diversas influências musicais podem ser flagradas em constante diálogo com seus versos intensos, ácidos, e a certeira disposição de contrastar com o que observava. Sua obra é repleta de intertextualidade, o que já o colocou em conversa com Bob Dylan, John Lennon, Caetano Veloso, Stanley Kubrick. Belchior foi alguém que fez Dante Alighieri e Olavo Bilac conviverem na mesma canção – que ele concluía, mais uma vez, demarcando: enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto.
Aliás, até para falar de romance, Belchior conseguia ser original. A Divina Comédia Humana, uma das minhas prediletas, aborda com naturalidade e doçura o que quase todos veem como a triste fatalidade do amor, ao indicar que, sendo que nada é eterno, a certeza do fim não deveria amedrontar ninguém.
A falta que lhe fazia sua casa, o Ceará, foi retratada numa narrativa de saudade que percorreu muitas músicas belas, cada vez empunhando uma tonalidade diferente da mesma dor. A América Latina pulsava nele, a ponto de A Palo Seco tornar-se quase um hino da latinoamericanidade, num país que poucas vezes se lembra de que é esse o contexto no qual está inserido. E ali, outra vez, ele revela: eu quero é que este canto torto, feito faca, corte a carne de vocês.
Era atento observador do seu tempo, com quem sempre brigou. Exibindo as cicatrizes que marcam aqueles e aquelas que têm que deixar sua terra natal, ele deixava escapar sua melancolia de mãos dadas com sua ânsia de futuro. Sendo ele um crítico dos modismos e do entusiasmo exacerbado, quando esboçava um sorriso de esperança em meio ao marasmo que via, ninguém era capaz de fazer melhor, e com tão singela grandeza. A música que vinha concentrando minha atenção nos últimos dias era justamente Tudo Outra Vez, onde ele diz que viveria as coisas novas, que também são boas, o amor, o humor das praças cheias de pessoas. E agora nós é que queremos tudo, tudo outra vez.
O cara angustiado para superar o “velho”; avesso a reverências e obediências. Quem conhece a obra de Belchior tem a impressão de estar diante de uma inquietação sem limites, que talvez tenha encontrado na referida missão um alento na busca de paz e dias melhores. Sua ironia era de uma riqueza extraordinária, porque contida no universo sem fronteiras do filósofo-artista que, assim como Drummond, tinha o tempo como sua matéria.
Belchior não existiu. Foi uma Alucinação que a gente teve.
3 comentários:
Nem vem querer me impedir de chorar.
Sem essa de "Ele iria querer nos ver celebrando".
kkkk... Não ele não era desses, e eu jamais diria isso. Só disse que nosso show não será uma homenagem póstuma. :)
Lindíssimo texto, bela homenagem! Fui inicialmente impacto por sua obra por volta dos meus 15 anos e ao longo da minha vida fui salvo de minhas angústias abraçado por sua poesia inebriante!! Hoje em dia, conservo comigo sua discografia para onde quer que eu vá, juntamente com minha gratidão por aqueles/aquelas que tbm o amam e o mantém vivo a cada verso que cantarolam perto de mim, a cada homenagem em forma de show ou mesmo por uma simples camiseta que vejo alguém vestir! Reginaldo
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