O filme estadunidense Wag The Dog (tradução literal: Abane o cachorro), de 1997, conta a história de um presidente que, envolvido em um escândalo sexual, contrata um cineasta para produzir uma guerra fictícia a fim de desviar a atenção da população. O início do filme explica o título: “Você sabe por que o cachorro abana o rabo? Porque ele é mais inteligente que o rabo. Mas se o rabo fosse mais inteligente...”. O letreiro entra em seguida, sugerindo: abane o cachorro.
Um ano atrás, se concretizava, no Brasil, um golpe de Estado jurídico-parlamentar-midiático que poderia ter sido filmado no lugar da história criada por Hilary Henkin e David Mamet.
Derrotado nas eleições presidenciais de 2014, o candidato da direita ameaça não reconhecer o resultado das urnas, iniciando ali um movimento visível a olho nu para quem prestou atenção nos livros de história que estudou na adolescência. Àquela altura, a Operação Lava-Jato já avançava, capitaneada por um juiz com nítida vocação para super-man (com as mesmas cores, inclusive). Embora lidando com um objeto fundamental de ser examinado – as relações promíscuas entre poder público e grandes empresas a partir do financiamento de campanhas eleitorais -, a iniciativa já mostrara a que veio: servir de instrumento para carimbar de corrupto apenas um setor da disputa política. Adaptando-se à conjuntura diariamente, a operação evolui selecionando investigações a serem conduzidas, vazamentos a serem feitos para a imprensa e a própria direção dos fatos.
Estão criadas as condições para um roteiro surreal no qual a corrupção no Brasil começa com a eleição de Lula, e nunca antes na história deste país havia acontecido nada semelhante. Quinhentos e quatorze anos de história são, então, reescritos, e apagam-se todos os escândalos de desvio de recursos públicos, tráfico de influência, privatizações, compra de votos e, especialmente, o enriquecimento ilícito de coronéis, donos da mídia, latifundiários, empresários e outros que até pouco tempo atrás oligopolizavam o fazer política no Brasil. E nunca foram presos.
O toque final é a abordagem da mídia, que, tão seletiva quanto as investigações do juiz fanfarrão, elabora sob medida uma narrativa cuja consequência óbvia e planejada é um discurso de ódio acéfalo contra o PT e a esquerda. Tal discurso encontra terreno propício para germinar: a paupérrima cultura política brasileira. O efeito colateral é o descrédito generalizado contra todos os políticos e a satanização da atividade política. Mas não tem problema, porque a despolitização sempre favoreceu os donos do poder, e eles sempre souberam reinventar sua própria embalagem para parecerem novos e atraentes. Assim, fantasiam-se de empresários bem-sucedidos ou apresentadores de televisão e continuam a fazer o que sempre fizeram.
Cria-se, então, uma acusação contra a presidenta: as “pedaladas fiscais”, que muitos governadores haviam praticado no mesmo período. Meses depois, num ato de vingança contra o PT, que contribuíra para que ele fosse investigado, o presidente da Câmara, com largo histórico de envolvimento em práticas controversas (digamos assim), inicia o processo de impedimento da presidenta da República. O vice-presidente publica carta na qual rompe com o governo, lamentando ter assumido posição somente “decorativa” (sic).
Chegamos, então, ao ápice do roteiro: com olhos em chamas, setores médios e elites vão às varandas de seus apartamentos bater panela. Grandes manifestações são convocadas por esses segmentos, por meio de movimentos laranja e partidos de oposição, financiadas pela Fiesp e grupos empresariais, com grande alarde na mídia, que também convoca e promove com cobertura em tempo real. Milhares de pessoas atendem ao chamado vestindo camisetinhas amarelas, tendo um pato gigante como símbolo e privatizando (eles têm know-how) o hino nacional.
Diante de tal comoção, em meio à qual as pessoas que vestem vermelho correm risco de serem agredidas na rua, a presidenta é afastada numa sessão da Câmara que se torna antológica pelas dedicatórias dos votos dos deputados e deputadas às suas mães, filhos, às suas namoradas, ao cãozinho da família. Assim, Michel Temer, o golpista usurpador decorativo, assume interinamente a Presidência, e monta o governo provisório com aqueles que tinham sido derrotados nas eleições de dois anos antes, e também com personagens necessários para qualquer enredo dessa monta: os traidores.
A partir daí, começam a executar o programa que tinha sido derrotado nas urnas quatro vezes, num nível de agilidade que sequer Fernando Henrique Cardoso (que vencera duas eleições) tivera coragem de encaminhar. Abrem caminho para a entrega do pré-sal brasileiro às potências estrangeiras; congelam investimentos públicos em saúde e educação por vinte anos; extinguem órgãos de governo e programas centrais para o desenvolvimento de políticas de distribuição de renda e combate a desigualdades históricas; reformam o ensino médio sem dialogar com nenhum dos setores envolvidos, destituindo-lhe de qualquer mísera perspectiva transformadora; apresentam uma reforma da previdência e outra trabalhista para retirar direitos do povo, mantendo e ampliando direitos dos banqueiros e grandes empresários; legalizam a terceirização irrestrita; atuam para “estancar a sangria” (sic) provocada pela Operação Lava-Jato, para que não sejam atingidos; e disparam balas de borracha e gás lacrimogêneo contra índios, jovens, trabalhadores, e quem quer que ouse levantar-se contra o golpe em curso. Colocam em xeque o direito de greve e o direito à livre manifestação, com a bênção do Poder Judiciário, que, afinal, é peça fundamental do enredo.
O final do filme ainda não está escrito. Há algumas possibilidades: temendo nova derrota nas urnas, que jogaria por terra o processo encaminhado até agora, prendem o ex-presidente Lula e/ou cancelam as eleições nacionais de 2018 – qualquer das opções escancarará o que muitos já perceberam: que vivemos sob um regime de exceção. Outra hipótese: por falta de quadro melhor, elegem o pato gigante presidente da República, e ele governará como terceirizado sob ordens da Casa Branca.
Ou o cachorro assume que fez cocô no lugar errado e recupera sua habilidade de abanar o rabo.
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