Na noite de 25 de maio, em Audiência Pública na Câmara Legislativa, dirigentes do Sindicato dos Professores no DF (Sinpro-DF) foram expulsos das galerias com agressividade, o que provocou o repúdio e a retirada em bloco de todos os professores e professoras que compareceram ao evento, inclusive do dirigente sindical que compunha a mesa.
A presidenta da sessão era a deputada Sandra Faraj (Partido Solidariedade), autora do projeto então em pauta. Na ocasião, a deputada levara uma claque para aplaudi-la e saudar o projeto, ainda que boa parte daquelas pessoas tenha demonstrado total desconhecimento quanto ao conteúdo. A mesa era composta por defensores das ideias ali contempladas, com a exceção única do dirigente do Sinpro-DF, que, afinal, teve de se retirar como forma de protesto contra a agressão sofrida por seus colegas.
Partiu de Sandra Faraj a ordem para que os seguranças retirassem à força os professores do local. Para isso, ela utilizou o mesmo microfone com o qual presidiu a sessão. A atitude autoritária e truculenta da deputada representa com muita coerência o projeto que ela defende. É importante saber do que trata o PL 01/2015 para conhecer a grave ameaça à qual as escolas do Distrito Federal e do Brasil estão sujeitas, e para entender por que é fundamental mobilizar-se para defender uma educação laica, democrática e de qualidade para formar cidadãos e cidadãs.
“Escola Sem Partido”
Em primeiro lugar, é preciso revelar que o PL 01/2015 que tramita na Câmara Legislativa do DF não é exatamente de autoria de Sandra Faraj. O mesmo conteúdo tem sido apresentado em diversas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, e são todos derivados do PL 867/2015, apresentado à Câmara Federal pelo deputado Izalci (PSDB/DF). Mas também não é ele o autor original da ideia.
Os projetos exaltam as premissas da ONG “Escola Sem Partido”, dirigida pelo advogado Miguel Nagib, “mentor intelectual” da empreitada. O site da ONG apresenta artigos de figuras como Rodrigo Constantino, Olavo de Carvalho, Luís Felipe Pondé e Reinaldo de Azevedo, cuja identidade político-ideológica é reconhecida e assumida. Nagib também é articulista do Instituto Millenium, conhecido espaço de organização, articulação e elaboração da direita brasileira, que reúne as mencionadas figuras e representa interesses políticos e econômicos mais que evidentes. Entre os porta-vozes de seus ideais estão políticos de partidos como PSDB e DEM (1).
O site do Instituto traz um interessante artigo sob o título Por uma escola que promova os valores do Millenium, datado de agosto de 2009. O texto defende que as escolas promovam os princípios particulares dessa organização, como, por exemplo, a filosofia da propriedade privada e da meritocracia, que estão bem distante de serem consensos históricos e, principalmente, “apartidários”. O mesmo artigo destaca, inclusive, cinco itens que considera “deveres do professor”... Surpresa! Esses itens vêm sendo apresentado dentro dos PLs encaminhados nas casas legislativas Brasil afora.
Cai a máscara e fica nítido, então, que o projeto não é “Escola Sem Partido”, mas sim, “Escola Com O Partido Deles”.
O PL da Mordaça
Conhecendo desde já essa profunda contradição de origem, vamos examinar atentamente o texto do projeto.
O artigo 1º já anuncia o festival de horrores que se seguirá: “assegurar os princípios e diretrizes do ‘Programa Escola Sem Partido’”. Ou seja: o PL pretende estabelecer para a Educação no DF princípios e diretrizes formulados por uma ONG identificada com o Instituto Millenium.
O artigo 3º traz os “deveres do professor” que um artigo desse Instituto já antecipara há 6 anos, conforme vimos. Chama atenção o inciso V: “[o professor, o coordenador e a direção] deverá (sic) abster-se de introduzir, em disciplina obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos estudantes ou dos seus pais”. O texto proíbe, por exemplo, que um professor ou professora explique para sua turma a Teoria da Evolução de Darwin, caso haja ali um estudante cujos pais defendem o Criacionismo.
No parágrafo único do artigo 4º, o projeto determina que cartazes com os tais deveres do professor sejam afixados nas salas de aula. Mais uma violência desferida contra uma categoria que luta muito para defender a escola pública e a Educação como direito de todos e todas. A humilhação contida em tal gesto reside na afirmação implícita, que permeia todo o projeto de lei, de que professores e professoras são entes potencialmente nocivos, que exercerão seu poder sobre os estudantes para manipulá-los e impô-los suas ideias particulares. Como se não trabalhassem com conteúdos científicos. Como se sua prática cotidiana não se baseasse em premissas pedagógicas e metodológicas. Como se não vivenciassem todos os dias dezenas de violências à liberdade de ensinar, muitas vindas do próprio GDF, outras, inclusive, vindas de estudantes e outros membros da comunidade escolar.
Na justificativa do PL, Sandra Faraj afirma que a razão de ser do projeto é a necessidade de “informar” aos estudantes o direito deles de não serem “doutrinados” por seus professores. Para isso, propõe que estes sejam fiscalizados.
O PL da Mordaça em âmbito federal
No PL 867/2015, que tramita na Câmara Federal sob autoria do deputado Izalci, o desrespeito e o autoritarismo com que são tratados professores e professoras estão expostos de forma ainda mais completa.
No parágrafo 2º do artigo 3º, o nobre deputado propõe que “as escolas deverão apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estudantes material informativo que possibilite o conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados”. Isso quer dizer censura prévia de conteúdos. Anteriormente, citamos como exemplo a Teoria da Evolução. A perigosa brecha que o PL abre pode impedir os estudantes de terem acesso ao conhecimento nas mais diversas disciplinas. E se as aulas de História não puderem abordar o Holocausto? E se as aulas de Geografia não puderem discutir as crises econômicas e militares no Oriente Médio? E se Carlos Drummond de Andrade for considerado inadequado para aulas de Literatura Brasileira? Por que o deputado Izalci quer restringir o acesso de crianças e adolescentes ao conhecimento produzido ao longo da história do Brasil e da humanidade?
Entre os famigerados “deveres do professor”, o PL da Mordaça Federal traz um item a mais em relação ao projeto apresentado no DF. O inciso VI do artigo 4º ameaça responsabilizar o professor ou professora pela ação de terceiros: “[o professor] não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula”. Daí infere-se que desde um recado do Grêmio Estudantil até um debate de ideias entre alunos poderá incorrer na responsabilização do professor ou professora, caso o conteúdo do recado ou do debate não esteja de acordo com as opiniões do deputado Izalci.
Os próprios proponentes do PL assumem que a intenção de responsabilização de professores e professoras não pretende se restringir à fiscalização e à censura, o que já seria suficientemente grave. Nos textos publicados no site da ONG Escola Sem Partido, mencionam-se processos civis por danos morais e punições administrativas como forma de coagir docentes.
A gravidade da proposta é tamanha, que ela pode influenciar a proposição de projetos ainda mais terríveis. O deputado federal Rogério Marinho (PSDB/RN), por exemplo, apresentou à Câmara Federal, há poucas semanas, um PL que pretende criminalizar e colocar sob pena de reclusão o que ele classifica de “assédio ideológico”. Mais uma vez, o alvo é o Magistério.
Conclusão
Sob a falsa alegação de evitar “doutrinação ideológica” nas escolas, os PLs de Sandra Faraj e Izalci pretendem, na verdade, estabelecer uma mordaça para professores(as) e uma rédea para estudantes, a fim de, justamente, promover sua própria doutrinação. O projeto é uma nítida afronta à liberdade de ensinar e à liberdade de aprender, garantidas na Constituição Federal, uma vez que propõe censura prévia de conteúdos e coação da atividade docente.
Para atingir seu objetivo, esses parlamentares pretendem interferir no trabalho de professores e professoras, colocando-o sob suspeição e permanente ameaça. Mais um fator de deterioração das condições de trabalho da categoria, já tão prejudicadas pelos graves ataques que seus direitos têm sofrido nos últimos meses.
As escolas devem formar cidadãos críticos, aptos a formar sua visão de mundo de maneira autônoma, livre da imposição do mercado ou de religião X, Y ou Z. Democracia pressupõe pensamento livre, e pensamento livre pressupõe livre acesso ao conhecimento. É isso que os PLs 01/2015 e 867/2015, respectivamente em tramitação na Câmara Legislativa do DF e na Câmara Federal, querem destruir.
Todas as justificativas relativas à apresentação desses projetos trazem em si um indissociável autoritarismo, ao outorgar-se a prerrogativa de definir o que os estudantes podem ou não saber, e o que os professores podem ou não ensinar. Mais do que isso, referem-se com desprezo e preconceito à atividade de professores e professoras, ignorando que são profissionais que frequentaram as universidades; que se dispõem a jornadas de trabalho estafantes; que procuram se aperfeiçoar em pós-graduações, cursos e vivências; e que se mantêm em permanente processo de formação. Sugerir que tudo isso tem o objetivo de promover doutrinação e manipulação é um insulto descabido, que demonstra o desconhecimento dos autores de tais projetos sobre os processos pedagógicos, o dia-a-dia das escolas e a rotina do Magistério.
No entanto, mais uma vez, a Educação não se calará. Que seja feito o debate público, livre de amarras, censuras e truculência. Com certeza, todo o Distrito Federal rejeitará a mordaça que querem impor à categoria.
(1) O Fórum da Liberdade 2015, evento organizado pelo Instituto Millenium anualmente, contou com a presença do senador Ronaldo Caiado (DEM/GO) como palestrante no painel sobre “Caminhos para o Brasil”. Em 2014, o então pré-candidato à Presidência da República Aécio Neves (PSDB/MG) foi palestrante no painel sobre “Competitividade”. As referidas programações encontram-se disponíveis no site do Instituto.
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