Eu não sou lá muito adepta das teses derivadas da hipótese “gentileza gera gentileza”, porque, submersos na cultura capitalista como estamos, a antiquada lei de Gérson acaba fazendo mais sentido na cabeça de boa parte das pessoas.
Mesmo assim, não perder a esperança é um desafio quase diário. Hoje em dia, então, equivale a enfrentar, por dia, cinco leões malabaristas, halterofilistas e domadores de seres humanos. A direita institucional sabe muito bem aproveitar a onda conservadora que forjou para implementar retrocessos que deixariam impressionados os papas do século XI e industriais do século XVIII. A direita difusa na sociedade aproveita para destilar seu ódio contra pobres, pretos, mulheres, homossexuais, estrangeiros de países pobres (sim, porque europeus e estadunidenses os encontram como tapetes estendidos), e qualquer mínima tentativa de distribuir riqueza neste país campeão em desigualdades históricas violentas.
Acrescente-se a esse lastimável quadro a era da comunicação em tempo real. A necessidade de responder a tudo de imediato. Anunciar aos sete ventos toda primeira impressão como se fosse uma opinião elaborada, e defendê-la com unhas, dentes e um teclado.
Eu sou ansiosa. Eu ando descrente da filosofia do “gentileza gera gentileza”. E até para mim, tudo isso tem sido assustador.
Sobra pra todo mundo. Aquele parente chato que votou no candidato oposto ao seu. Os colegas de trabalho com quem você convive, mas não conversa sobre esses temas pessoalmente. O cara que você não gosta, e aproveita qualquer assunto que apareça para alfinetá-lo. O Chico Buarque. A Sônia Braga. O Gregório Duvivier. As feministas da sua timeline. E por aí vai.
É uma perda coletiva de noção.
Nem ouso pedir “mais amor por favor”. Respeito já estaria bem. Nas aulas de Propaganda Ideológica na faculdade, aprendi que uma técnica fundamental do discurso nazista tanto quanto do discurso de guerra dos EUA é a desumanização do outro. Em frente a você, não há uma pessoa. Você aliena de seu adversário os sentimentos, a trajetória de vida, os pensamentos, como foi seu dia, como foi sua vida. Você cria um cara que poderia ser o adversário dos Transformers. E sendo assim, você pode matá-lo. Quando ele está atrás de um monitor, então, melhor ainda! Sem vê-lo, é mais fácil desumanizá-lo. E então, você pode matá-lo com requintes de crueldade.
Dirijo-me mais aos meus, porque há uma outra premissa em que acredito: viver como se pensa, para não terminar pensando da forma como temos vivido. Coerência é tudo, e creio que, neste triste momento histórico nosso, peito aberto é escudo.
Os tempos são duros o suficiente, não nos endureçamos para não parecermos muito com os tempos. Deixem os eu-líricos do Chico Buarque em paz. Sai do grupo de whatsapp da família, que só te irrita. Não xingue nem vocifere contra o pobre que acessou a universidade graças ao sistema de cotas, que foi implementado por um governo legítimo, eleito para executar esse programa. Para com a mania besta de provocar a amiga feminista com meia-dúzia de senso comum besta e machista. Faça um pouco de esforço para entender que a sua vida de pessoa branca é mais fácil que a de qualquer pessoa negra, e a responsabilidade sobre isso não é da pessoa negra. A gente pode discordar sem ser tosco. A gente pode disputar sem ter ódio.
Discurso gandhista à parte, como militante, fui formada numa tradição que entende que o mundo só muda a partir da ação coletiva organizada. Eu entendo, até certo ponto, a necessidade de responder com raiva a todo e qualquer ataque que se faz nas redes sociais contra as políticas e contra as pessoas em quem confiamos. Eu entendo a vontade incontrolável de criticar de imediato uma música sem ouvir duas vezes, sem pensar, sem contextualizar. Eu sei que nossa sensação de impotência diante das enormes injustiças nos traz aquele espírito do “dia de fúria”, e lá vem bomba. Eu chego perto até de entender essa necessidade de criar heróis e vilões, e de transformar heróis em vilões de uma hora para a outra, para a novela ficar mais emocionante.
Mas gente, isto aqui é vida real.
Quem muda a vida real não são personagens. São seres humanos. As leis que nos governam não são posts de facebook. Nossas verdades universais, nossas premissas, nossas convicções merecem que façamos por elas a boa batalha. E nós, mais do que ninguém, sabemos que elas não serão vitoriosas nem por decreto, nem por osmose.
Por favor, saibamos dimensionar nossa raiva.
Este poderia ser meramente um texto em defesa do seu próprio estômago, para evitarmos sua úlcera. Mas é em defesa de um padrão de civilidade que, se não existir, tornará bem mais difícil realizarmos nossa já difícil tarefa de mudar este mundo desgramado.
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