Não quis ser médico desde pequeno. Primeiro, quis ser astronauta, depois, piloto de avião. As experiências da vida real, acumuladas no desenvolver dos anos, levaram-no a se aproximar da biologia. Queria conhecer o corpo humano e aprender a intervir nele para curar doenças. Não decidiu ser médico para ser herói. Quis ser médico porque não se imaginava fazendo outra coisa para viver.
- Mas Téo, é um vestibular muito difícil!
- Então, eu vou ter que estudar mais que os outros.
- E a faculdade é difícil também...
- Então, vou ter que estudar ainda mais depois que passar no vestibular.
- Se for particular, é cara pra caramba...
- Então, terei que me endividar.
Era coisa de vocação mesmo.
Dona Cotinha era costureira e seu Jair era mecânico, dos melhores da cidade. Viviam tranquilos, mas sem fartura. Téo era filho único, adotado pelos pais aos cinco anos de idade já, mas isso nunca foi motivo para mágoas ou síndrome de rejeição. Era muito grato pelo carinho e o apoio que sempre encontrou em casa, e não tinha curiosidade para buscar quem o abandonou.
Demorou, mas ele entrou na faculdade de medicina. Era paga, era cara. O pai pegou um empréstimo no banco, Téo conseguiu crédito educativo – era o que havia naquela época. Sabia que sairia da faculdade empregado e ganhando bem. O trabalho pagaria os anos de estudo.
Formou-se em seis anos, batalhou para especializar-se na área que escolheu ao longo desse tempo. Enquanto não conseguia ser admitido na residência em oncologia, atendia num posto de saúde na periferia de São Paulo. Chegou a trabalhar num consultório privado, com exames admissionais e demissionais, mas não gostava.
No posto de saúde, sentia que os colegas não gostavam muito dele. Não era o mais jovem, mas era o médico com menos tempo de formatura. Parecia-lhe que não era querido porque gastava muito tempo com cada paciente... Os outros médicos tinham agilidade nas consultas. Téo sabia bem quando a criatura só queria um atestado para faltar ao trabalho, mas, mesmo nessas situações, procurava avaliar se o paciente encontrava-se em estado emocional abalado, cansado, deprimido... Quando era assim, entregava o tal atestado, e pedia que a pessoa descansasse, procurasse ajuda para enfrentar o estresse. Se não, enfiava uma injeção no espertinho, ou oferecia balas coloridas, e o mandava para a labuta em seguida.
Certa vez, adentrou seu consultório uma senhora. Ela aparentava mais de 80 anos, mas, segundo o prontuário, tinha menos de 70. A pele estava muito enrugada e seus movimentos eram limitados. Queixava-se de dor. Ao doutor, pareceu lesão por esforço repetitivo.
- O que a senhora faz, dona Cleuza? – perguntou.
- Ô moço, eu já fiz muita coisa... Agora não consigo fazer nada... – a voz da mulher era de melancolia, mas ela sorria.
- Mas qual era a sua profissão?
- Eu já fui tecelã numa fábrica. Muito tempo. Depois, a fábrica mandou tudo nós para a rua. E aí eu fazia o que aparecia. Já vendi pipoca na frente do teatro, já fui babá... Mas o que eu fiz mais na vida foi faxina, viu.
- Trabalhava como faxineira? Em muitas casas?
- Doutor, teve uma época que estava mais difícil. As patroas dispensavam a gente. Mas depois tinha faxina pra fazer todo dia da semana, de segunda até domingo!
- Sem descanso?
- Mas se descansar, não ganha, né, doutor.
Téo ficou em silêncio por segundos que não passaram despercebidos. O olhar vagou para longe, e a senhora notou.
- Sua mãe também é faxineira, é?
- Não, não, ela era costureira. Hoje se aposentou.
- Eu não sei me aposentar, doutor.
Foi como sentir um nó de lençol na garganta. Nem um oceano de saliva fazia aquilo descer. O doutor achou melhor resgatar a conversa.
- As dores aparecem com algum movimento específico? Ou elas duram o tempo todo?
- Doutor, eu não consigo fazer nada mais... – o sorriso desapareceu – Eu não consigo mais trabalhar, eu não consigo nem estender minha roupa, doutor! Se nem cuidar da minha casa eu posso mais, pra que eu sirvo?
Dona Cleuza começou a chorar. Um pouco, e envergonhada, tentando segurar. O médico ficou sem reação por alguns instantes, depois se ajoelhou ao lado dela, secou suas lágrimas com um lenço e perguntou:
- Quantos anos a senhora tem?
- Eu tenho 68, mas minha mãe dizia que fui registrada na data errada. Não sei se tenho 68 ou 67, o senhor precisa saber disso com certeza?
- Não preciso não – ele lhe sorriu – Deite-se aqui, vamos examinar essas dores.
Dizendo isso, Téo deitou dona Cleuza na maca, ainda consternado pela situação anterior. As palavras se misturavam na cabeça dele, queria dizer algo doce, confortável, mas não sabia bem. Enquanto isso, dona Cleuza ajeitava-se sobre a maca, secando as últimas lágrimas que insistiam em transbordar.
- Dona Cleuza, é normal que a senhora tenha mais dificuldades para realizar certas tarefas – ele começou – A senhora já fez muito por este mundo, é hora de este mundo fazer algo pela senhora...
- Não dá pra contar com isso não, doutor, é o meu serviço, a minha casa, eu não posso não conseguir, é estranho, eu tenho medo, o que vai ser de mim se eu nem posso estender uma roupa?! – a voz ficou chorosa de novo.
Ele se calou. Achou melhor não insistir no assunto naquele momento, para evitar que ela se aborrecesse muito. Antes mesmo de lhe tirar a pressão ou medir os batimentos cardíacos, pensou em apalpar as regiões que ela disse que doíam. Ia fazer isso quando a mulher afastou-se e arregalou um pouco os olhos, mirando o doutor com uma certa feição de preocupação:
- Doutor! O senhor não vai vestir as luvas pra encostar em mim?!
Enquanto dava sequência ao seu procedimento, sem olhar nos olhos de dona Cleuza, ele respondia calmamente que não era necessário, afinal... Foi quando ele caiu em si. Entendeu a pergunta. Entendeu a dúvida.
Parou o que fazia. Sentiu muita tristeza, aquele nó na garganta voltou maior, depois virou água e subiu até os olhos. Doutor Téo quis chorar de vergonha, mas controlou-se firme. Que tipo de gente faz isso? Tem nojo de uma senhora pobre?! Inofensiva, ingênua, coitada! Pensa que ela não vai perceber isso? Gente que se anuncia como salvador de vidas e se recusa a tocar numa senhora saudável?
Que crueldade fazê-la pensar que é natural que sintam nojo de sua pele cansada, enrugada. A pobreza não é bonita. Os anos se passam e levam a vivacidade dos movimentos, a destreza dos pensamentos, levam a leveza, a pele lisa. Aos idosos e às idosas, resta lembrar que conseguiam fazer as coisas, quando eram vistos. Quando não precisavam contar com a paciência de quem quer tudo com a pressa de anteontem. Os tempos mudam.
Que tipo de gente, meu Deus?! Que tipo de gente se recusa a encostar numa velha ex-faxineira que sente as dores de ser pobre, mulher, idosa? De viver na periferia e não ter direito aos sonhos e aos encantos do consumo que ela vê pela TV, quando tenta se distrair de sua própria vida. De viver na periferia e acostumar-se a não ter direitos, a mais nem saber o que são direitos. Aqueles que deveriam curar suas dores? Aqueles que deviam trabalhar para que ela se sentisse bem, são esses que têm nojo dela? E ela pensa que isso é normal?!
Acostumou-se a ser um fardo. Os dois ônibus lotados que pegava para chegar à casa da patroa, não podia reclamar deles, porque ninguém ouviria. Já era suficientemente bom que eles existissem e permitissem que ela cumprisse seu trajeto. Era normal, também, cuidar sozinha de seis filhos. Trabalhar, cuidar da casa. Lavar, passar, cozinhar para a sua e para outras famílias. Nunca teve tempo livre, como tivera seu marido – que Deus o tenha –, que gostava de beber e de jogar bola. Ela se divertia sabendo das histórias da vizinhança. Era normal. Assim como era normal que os médicos usassem luvas para tocar nela, mesmo que ela não apresentasse nenhuma enfermidade contagiosa.
Téo foi para casa pensando em dona Cleuza. Jantando, chegou a passar-lhe pela cabeça abandonar a medicina. Se não conseguia suportar a dor de uma senhora como aquela, como poderia tratar o câncer de alguém? Talvez, quando fosse oncologista, não atenderia mais pessoas como dona Cleuza. Não assinaria atestados para trabalhadores tristes e frustrados. Não daria balas coloridas fantasiadas de remédio para aqueles que só queriam uma tarde livre. Mas lhe permitiriam passar muito tempo com um único paciente.
Téo não abandonou a medicina. Voltou ao posto dali a dois dias, na sua escala. Algumas semanas depois, ele estava ali, atarefado e preocupado com a prova de residência que se aproximava. Atendia uma pessoa. Em plena consulta, a recepcionista o chamou pelo telefone:
- Doutor Téo, tem uma senhora aqui que só aceita ser atendida pelo senhor.
- Eu estou com paciente, não sabe?
- Sim, senhor, mas ela insiste...
- É alguém de retorno? Quem é?
- Não é retorno não... O nome dela é Cleuza... Ela só quer ser atendida pelo senhor.
- Tudo bem, faça-a entrar quando este aqui sair.
Não se lembrou de quem se tratava.
Quando dona Cleuza entrou, porém, ele reconheceu imediatamente. Levantou-se e foi até ela.
- E a senhora, como está?
- Vim lhe trazer isso!
Sorridente, estendeu ao doutor uma barra de chocolate. Essa mulher era doutora em roubar-lhe as palavras.
- Eu ainda não fui no massagista como o senhor mandou...
- Fisioterapeuta! – ele interrompeu, corrigindo-a.
- Mas é que o remédio me ajudou, eu vim agradecer.
- A senhora tem que ir ao fisioterapeuta mesmo assim, dona Cleuza...
Quando ela saiu, ele foi conferir seu prontuário. O que mesmo eu a mandei tomar? O prontuário dizia: medicada com “H.B. Well”. E lembrou-se do desfecho daquela consulta.
Ele lhe dera as balinhas coloridas, que, para outros, serviam como falsos medicamentos. Para ela, era para comer uma a cada vez que pedisse ajuda a alguém para realizar as tarefas domésticas. “A senhora só vai melhorar se parar, por um tempo, de repetir esses esforços”, lembrou que disse.
Ao deixar o posto, à tarde, ouviu a piada de colegas: “conseguiu atender mais que cinco pessoas hoje, doutor Téo?”. “Vocês conseguiram atender alguém desde que se formaram?”, devolveu. Ultrapassou a porta e sorriu satisfeito. Que bom que dona Cleuza já não sentia dores.