O "Fantástico" de ontem (01/08) exibiu uma péssima reportagem sobre a prática clandestina de aborto no Brasil. Sem pé nem cabeça, a matéria serviu mais pra alimentar a desinformação do que contribuir para um debate tão importante. Muitos aspectos foram deixados de lado e, para garantir seu posicionamento de propaganda antilegalização do aborto, a reportagem tornou-se um imenso emaranhado de informações que não se relacionaram entre si.
Diante de um problema de enorme complexidade, o programa resolveu abordar apenas a ponta do iceberg: a existência de clínicas clandestinas no Rio, em Salvador, em Belém; e a venda de Citotec no "mercado paralelo". Com câmeras escondidas, adentrou as clínicas, questionou médicos(as) e atendentes sobre o procedimento, sobre o número de abortos realizados por mês, sobre riscos e preço. Exibiu rostos e nomes de médicos(as) e pessoas que trabalham nesses locais. Nenhuma mulher foi entrevistada - apenas uma que fez uso de Citotec há um mês.
A reportagem optou por não relacionar nitidamente dados expostos por ela mesma: de um lado, as clínicas existem, e as mulheres procuram por elas. Há riscos importantes para a mulher, provenientes das condições inseguras em que o aborto é realizado nesses locais. De outro lado, pesquisa realizada pela Universidade de Brasília aponta que uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já fez aborto; e que a mulher que faz aborto no Brasil é absolutamente normal: tem religião, é trabalhadora, às vezes é casada, às vezes já até tem filhos. Poderia ser vizinha, prima, amiga, irmã, colega de qualquer telespectador(a) do "Fantástico".
Nenhuma palavra sobre o fato de ser exatamente a criminalização que gera essa clandestinidade e, por consequência, os riscos aos quais as mulheres estão expostas. A não legalização as leva a buscarem métodos caseiros improvisados e clínicas clandestinas sem nenhuma condição de higiene e segurança. Ambas as "alternativas" submetem essas mulheres à possibilidade de prisão, de sofrer sequelas profundas ou mesmo de morrer. Muitas acabam no SUS, para finalizar o procedimento mal feito, e são tratadas com crueldade por médicos e enfermeiros. Porém, certamente, há clínicas clandestinas bem equipadas, onde o aborto pode ser realizado com segurança e higiene. A essas, somente tem acesso quem pode pagar caro. Isso significa que a criminalização do aborto no Brasil é uma hipocrisia tão grande que condena aos riscos mencionados especialmente as mulheres mais pobres. Disso, a reportagem não tratou.
Uma reportagem, no mínimo, razoável, daria mais espaço à antropóloga da UnB que dissertou sobre os resultados da pesquisa mencionada do que os míseros 30 segundos a que ela teve direito; e com edição menos "malandra". A reportagem poderia ter falado da experiência de países que têm o aborto legalizado (por exemplo, mostrar que é fantasiosa a ideia de que a prática de aborto aumenta com a legalização) ou das diferenças que há entre um aborto realizado com segurança e outro, o clandestino.
A responsabilidade por evitar uma gravidez indesejada é integralmente da mulher: é ela quem deve tomar pílulas anticoncepcionais; é ela quem tem dificuldade de negociar com seu parceiro o uso da camisinha; são dela todos os ônus de eventuais falhas de métodos contraceptivos; é dela a vida que mais muda com o nascimento de uma criança, muitas vezes, sem pai. Apenas uma coisa não é dela: o direito de escolher levar a cabo ou não uma gravidez. A matéria também não falou disso.
Ou seja: a resportagem do "Fantástico" tratou a questão do aborto com superficialidade, sensacionalismo e preconceito. Falou do tema como se as mulheres que sofrem essas consequências fossem vítimas de profissionais mal-intencionados, e não da hipocrisia e do anacronismo. Se o aborto fosse legalizado, não haveria mercado clandestino. Aquelas que têm religião e crença poderiam segui-las livremente. Aquelas que optam por interromper sua gestação, também teriam liberdade.
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Conheça o conteúdo da pesquisa da UnB clicando aqui.
A "revista eletrônica" dominical global deu um show de jornalismo rasteiro, mais do que de defesa de uma opinião conservadora. Não foi além de uma pseudo-denúncia e abordou muito mal o tema que escolheu tratar.
Para quem quer saber mais sobre aborto e criminalização, sugiro o filme "O aborto dos outros", de Carla Gallo. Trailer abaixo.
3 comentários:
Saudações sedentas de mundo novo!
Gostei muito do texto... engraçado, que encontrei seu blog assim, muito do nada, logo hoje, em que está explodindo esse debate por que me interesso tanto, eu que ando dos dois lados (dos que são contra a criminalização, e ao mesmo tempo, dos que são contra a legalização), por estar de um lado só: o lado de quem defende a Vida, em todas as formas - seja a vida do feto (ou imanência de vida, que, pra mim, dá no mesmo, porque tudo é imanência), ou a Vida de uma mulher, vítima de um sistema excludente e opressor, que aborta, e em vez de receber apoio, recebe a condenação de quem a quer na cadeia.
No fim das contas, gostaria de parabenizá-la pela excelente crítica á péssima apuração e ao péssimo esvaziamento da proposta do Fantástico na noite de ontem. E gostaria também de compartilhar uma crise, a pergunta que fica na minha cabeça sempre que penso no principal e repetitivo argumento de quem defende a legalização: é apenas uma questão de escolha? Sei que você vai me responder que não, mas ainda assim, quando penso em todas as outras questões, ainda fico cá, com as minhas dúvidas sobre a legalização. Na minha cabeça, enquanto fazemos o discurso anti-elitista, ainda vemos a legalização com olhos muito sonhadores, muito desligados da realidade do nosso sistema de saúde pública, por exemplo... olhos ainda desligados da realidade de tantas mulheres. É necessário ainda repensar.
Gosto do que diz o inicio do trailer do documentario: pergunta-se se a legalização resolve, mas a criminalização tem resolvido? Isso é fantástico... Mas a segunda pergunta, infelizmente, ainda não anula a primeira.
Definitivamente, precisamos de muito mais diálogo. E, claro, precisamos fundamentalmente de um mundo de mais justiça e liberdade (não a liberdade pura e simples da escolha, mas a liberdade verdadeira), em que as mulheres não precisem mais abortar. Que tenham condições de criar os seus filhos, e que possam dar a eles também o direito de viver, mesmo que em outra família, igualmente capaz de acolher um cidadão a mais no mundo.
Fica a minha grande utopia...
E você é das minhas, eu percebi. deve gostar de utopias também...
Um beijo cheio de axé.
Antes de tudo: ótimo blog(gostei da sua descrição, principalmente a parte militante).
Acho que passou informações ótimas, o assunto aqui foi muito bem explicado. Só acho ingenuidade pensar que o fantástico algum dia vá passar algo que a direita condena de forma justa e clara. Imagino uma reportagem sobre drogas, por exemplo, o Zeca Camargo falando o lado positivo do uso da maconha... isso sim é utopia, já que o amigo do outro comentário falou sobre...
Mas não goste de utopias, de nenhuma delas. Esse é o nosso direito, né. Direito de mudar...
"Quem disse que o povo esquece facilmente te engana novamente, não quer que você olhe pra frente..."
Boto fé nessa caminhada.
A globo eu não acredito que vá mudar, mas com iniciativas como um blog, desviaremos as atenções voltadas para a rede globo.
fui
Alê querida,
as indignações causadas pelo Fantástico encontraram no teu texto um canal que expressa muito do que pensamos e repudiamos: pensamento único - e burro - preconceituoso, edição mal intencionada das falas e dos fatos, omissão do outro lado (ou dos outros lados), e tudo isso contra os direitos das mulheres na televisão e na sociedade brasileiras.
Bacana que os movimentos começam a se pronunciar sobre mais este absurdo que desinforma e reforça injustiças. Long life ao Blog Terribili.
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