terça-feira, 10 de maio de 2011

Qual a graça?

Umas das principais polêmicas da semana é a entrevista da revista "Rolling Stone Brasil" com o cqc Rafael Bastos. A matéria revela um trecho do show do comediante, em que ele diz, referindo-se ao estupro de uma "mulher feia": "Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade."

Ora, na mesma semana em que jovens de três estados foram detidos por atuarem num movimento que defende a legalização da maconha, acusados de "apologia às drogas", as declarações de Bastos suscitam alguns questionamentos. Por um lado, os jovens mencionados estavam exercendo seu direito à livre manifestação de ideias, defendendo seu ponto de vista, disputando sua opinião na sociedade legitimamente.

De outro lado, Rafael Bastos, cujo discurso não tem nenhuma dessas características, não poderia ser acusado de apologia a um crime hediondo? Por que? Porque aquilo pretende ser uma piada? Porque ele só quer "desconstruir o politicamente correto"? Porque é famoso e ganhou carta branca pra dizer as barbaridades que quiser impunemente?

Há meios inteligentes, ou pelo menos, não tão vulgares, de pôr o "politicamente correto" em questão. Sugerir o estupro de mulheres e promover sua banalização não choca o moralismo, choca quem, há décadas, concentra esforços para denunciar e combater essa violência injustificável - que não é ficção, é de verdade, mais comum e mais impune do que se imagina.

Tratar estupro como piada passa por cima de tantas mulheres que o machismo já vitimizou por meio dessa arma cruel, legitima essa violência, conferindo-lhe o status de coisa qualquer, coisa da vida, coisa que acontece e pode ser tolerada. Esse é o texto implícito. Não precisa se dedicar muito pra entender.

Acontece que estupro não é piada, não é engraçado, não é tolerável e não há atenuantes. Banalizar esse assunto é tornar-se cúmplice dele. Não há meio termo. Aceitar rir de si mesmo é uma coisa. Rir de uma mulher estuprada é outra completamente diferente.

A quem quer caçoar do "politicamente correto", que o faça sem brincar com o que não tem graça nenhuma. Indicar o estupro como "oportunidade" num texto humorístico não é bonitinho, nem engraçadinho, nem original, muito menos inteligente. É cruel, leviano, beira o fascismo. Atitudes como essa, travestida de moderninha e descolada, é o que de mais reacionário pode haver numa sociedade desigual como a nossa. Afinal, por que Bolsonaro é criticado quando fala sério, mas Rafael Bastos tem autorização pra falar "brincando"?

Violência contra a mulher é crime. Não tem graça. Não tem desculpa.

domingo, 8 de maio de 2011

2001: O ano que não acabou

UMA INTRODUÇÃO
Por Alessandra Terribili *



Acho que foi em 2001 que aprendemos a sentir saudades desse jeito. Nossa saudade tinha cheiro de eternidade, nossas separações eram breves, os reencontros eram certos, e as saudades nos faziam imaginar que os hiatos de tempo em que não nos víamos não eram nada diante da intensidade que aquele momento nos reservava.

Aprendemos muita coisa, cada um a seu modo. Aprendemos a negociar, aprendemos a ser solidários, aprendemos a voar sem cair. Todo mundo trazia uma bagagem repleta de expectativas, inseguranças, seguranças, juventude e fé. Trocamos bagagens uns com os outros. Demos boas risadas, choramos várias vezes, sentimos medo, sentimos coragem, sentimos orgulho do que estávamos fazendo, sem saber que, 10 anos depois, nos orgulharíamos ainda mais. Tinha gente de DCE, tinha gente de executiva, tinha dirigente nacional, tinha gente que queria ser dirigente, tinha gente que fugia de ser dirigente. Tinha gente que bebia e gente que não bebia. Mas tinha gente, tinha muita gente.

Essa geração prestou uma contribuição inestimável para o movimento estudantil e para o Brasil. Nosso enfrentamento ao neoliberalismo, que encontrou em 2001 seu auge e melhor expressão, somou-se a esforços vindos de outras áreas, outros lugares, outros movimentos. A defesa da educação pública era a nossa maneira de contribuir com aquele momento especial, e talvez, boa parte de nós nem soubesse o quão especial era aquilo tudo.

A convivência diária, o “perrengue” coletivo, o acampamento que nos expunha à proximidade, à possibilidade de nos encantarmos uns com outros, a vivência política comum de um momento tão histórico quanto pessoal para cada um de nós fizeram com que elaborássemos, mesmo sem saber, como quem tece uma longa colcha, padrões de militância diferentes do que aqueles que conhecíamos antes. Respeitar-se não é extraordinário, é o que deveria ser cotidiano. E ali, em meio a tantas novas situações, àquele grupo que se modificava tanto quanto se ampliava, certamente havia uma semente sendo plantada para que florescesse uma cultura política que não cresceria vistosa em qualquer chão, com qualquer tratamento, e nem de uma hora pra outra. Sem donos ou autores, mas produto natural de um período que marcou pessoas e a história recente de um movimento social tão presente. Produto natural porque tecido cuidadosamente com os panos mais floridos e resistentes com que se pode trabalhar. A colcha foi sendo tecida devagar, quase sem querer. E ainda hoje aquece muita gente, muitas mais do que qualquer um de nós ousaria sonhar naquele momento.

Tecendo uma nova manhã

Em setembro, quando uma reunião ampliada da UNE deflagrou greve estudantil nacional, começava uma luta que prometia ser incessante e vitoriosa. O Comando Nacional de Greve e Mobilização se instalou, convocou DCEs e executivas e federações de curso, articulou ações unificadas, mostrou a cara em cada canto do Brasil. A grande marca daquele movimento foi a tentativa de ocupação do Ministério da Fazenda, quando, definitivamente, todo o Brasil olhou para nós. E tudo foi planejado coletivamente, atropelando apenas as dificuldades decorrentes das diferenças que sempre houve entre nós. E, registre-se, foi uma das raras vezes em que o movimento estudantil acordou (literalmente) na hora combinada.



Havia o Plebiscito do Provão, um instrumento de uma luta bastante representativa do nosso embate com aquele Ministério da Educação. Percorremos o país, tornamo-nos mais e mais numerosos, cativamos centros e diretórios acadêmicos, colocamos nas urnas a opinião contrária dos estudantes àquele mecanismo de pseudoavaliação. Registramos esse repúdio nos boicotes à prova. Era um golpe certeiro contra o “provão” e contra a política educacional de Paulo Renato e FHC.

E por confiarmos que a democracia com que nos organizávamos era o motor da nossa força, queríamos que a UNE fizesse um Coneb (Conselho Nacional de Entidades de Base). Reunimos o apoio de quase 500 centros e diretórios acadêmicos de todo o país, dezenas de DCEs e praticamente todas as executivas e federações de curso que existiam. Não havendo logrado nesse objetivo, realizamos um encontro nacional de CAs e DAs (o ENEB), e, poucos anos depois, a UNE retomava a realização dos Conebs como agenda fundamental do movimento estudantil.

Tendo percebido que a luta precisa de parceiros, participamos e extraímos o que de melhor havia no ENU (Encontro Nacional de Estudantes, promovido pelo MST). Tendo entendido tanta coisa na luta concreta, acreditamos que uma campanha contra a mercantilização da educação era necessária para demarcar nossa opinião, denunciar a forma como o Governo FHC nos via e às universidades e escolas deste país, e dar consequência à mobilização e às vitórias conquistadas na greve. Tendo entendido que o mundo é maior ainda do que parecia, fizemos do Fórum Social Mundial mais um palco para nossa intervenção.

O primeiro ano do resto de nossas vidas

Foi tanta coisa que parece que o ano de 2001 nunca acabou. Acho mesmo que ele poder estar aberto até agora, pra gente construir um final feliz pra história que começamos a escrever ali, a tantas mãos. Reencontrar os personagens daquelas lutas, reencontrar nosso palco principal – Brasília e a UnB –, é compor mais um capítulo de uma história feita de política, negociação, combate, luta, discordância e concordância; mas também de abraços, sorrisos, afeto, companheirismo e solidariedade.

Talvez 2001 tenha sido como uma página de introdução em nossas vidas. Ainda que houvesse, ali, quem estivesse começando, e também que já estivesse até calejado da luta, certamente, de lá, ninguém saiu como entrou. Temendo parecer exagerada, talvez nem a Universidade, nem o Brasil. O que começou ali ainda está sendo escrito, e aqueles mesmos personagens, mesmo se em outros papeis, ainda são protagonistas. A história seguiu.



Acontece que a vida nos separou mesmo. Alguns trocaram de partido, muitos permaneceram onde estavam, outros largaram a militância. Houve quem mudou de cidade, quem foi pra fora do país, quem mudou o lugar de atuação. A distância geográfica e, às vezes, a distância partidária ou na leitura que cada um faz do atual momento histórico, fazem com que aquele hiato de tempo, que era sempre breve, pareça mais ampliado agora. Mas segue sendo apenas um hiato. Até porque uma das coisas bonitas que aprendemos naquele ano que não acabou é que, como Jorge Amado escreveu, a revolução é uma pátria e uma família.

* Jornalista, participou do CNGM-UNE, foi coordenadora nacional do Plebiscito do Provão, e teve o prazer e a honra de fazer parte dessa história maravilhosa que ainda estamos contando.