quinta-feira, 11 de março de 2010

A dama e o vagabundo

Fernando Pessoa escreveu, através de Álvaro de Campos:

POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Adoro esse poema. Também estou sempre farta de semideuses. Também sou tantas vezes reles, tantas vezes vil. E às vezes penso que queria ter por perto uma voz humana, que confessasse uma infâmia, que seja.

E mesmo assim, no meu entendimento, esse poema fica mais completo se eu associá-lo a este trecho de outro - também de Fernando Pessoa, também Álvaro de Campos:

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


E me perdoo humildemente de cada vileza, infâmia. Não sem dor. Mas, certamente, com honestidade. Aqueles, os príncipes, esses eu sei que não têm perdão.

segunda-feira, 8 de março de 2010

8 de março de 2010

Um grande amigo me aborda hoje – “Devo dar parabéns pelo Dia Internacional da Mulher?”. Respondo que sim, já que ele conhece o significado. É parabenizar pela luta das mulheres contra a opressão, pelas vitórias conquistadas, por não se abaterem diante dos enormes desafios que ainda há... é difícil combater uma coisa que tanta gente acha que nem existe. É um absurdo, mas é verdade. E mesmo alguns que até aceitam a existência da desigualdade, desqualificam a luta quando lhes interessa. Interesses de natureza variada.

Este ano, são 100 anos do Dia Internacional da Mulher. A data veio da luta de mulheres trabalhadoras, e foi definida em uma conferência de mulheres socialistas. Não é pra vender perfume ou roupa íntima. Não é pra dar flores e ser gentil por um dia. É para, pelo menos, provocar reflexão. E se esse maldito capitalismo não conseguiu fazer do Dia Internacional da Mulher, até hoje, mais uma de suas datas comerciais, isso se deve à luta das feministas, que continuam indo para as ruas, que continuam dando a cara a tapa, pautando, propondo, lutando. Ainda há muito o que fazer.

Para mim, o Dia Internacional da Mulher, em 2010, teve um gosto especial. Pela data em si; por ser seu aniversário de cem anos; pelo fato de minhas companheiras da Marcha Mundial das Mulheres estarem realizando uma iniciativa ousada – literalmente, uma marcha entre Campinas e São Paulo, parte de uma ação internacional -; porque a SOF (Sempreviva Organização Feminista), junto com a editora Expressão Popular, vai lançar um livro que recupera a origem e o sentido do 8 de março, com cuja produção eu tive o prazer e a honra de colaborar. Por tudo isso... e mais uma coisa.

Acordei cedo e me dirigi à Delegacia Regional do Trabalho hoje. Parece planejado, mas juro que não foi. Fui buscar meu registro profissional de jornalista – o MTB. Quem me acompanha com mais atenção sabe minha opinião sobre diploma em jornalismo. Quem senta numa mesa de bar comigo sabe o que aconteceu nos últimos meses de 2009 sobre esse assunto, concretamente. O reconhecimento legal da profissão que eu exerço há quase dez anos veio hoje, aos cem anos do Dia Internacional da Mulher. E veio carregado de muitas lutas – pelo menos abstratamente, para mim. A luta que primeiro deu significado à minha militância política, a defesa da democratização da comunicação. Ela puxou outra coisa, exatamente o meu repúdio ao corporativismo e à reserva de mercado. E a luta feminista, sem a qual eu não sei quem sou, simbolizada neste 8 de março de 2010.

O exercício do jornalismo, para mim, sempre esteve comprometido com essas duas lutas. Mais do que isso: o jornalismo se colocou para mim a partir dessas duas lutas. É meu instrumento. Deveria ser instrumento de luta mais do que é da transmissão do mais do mesmo que observamos no tal evento dos donos da mídia, semana passada. Eles são os donos da mídia, eles comandam a imprensa, os veículos de comunicação, o entretenimento, o jornalismo, os que para eles trabalham. Eles falam em liberdade de imprensa e em combate à censura apenas para defender seu direito individual de falar o que quiser sem ter consequências – mas perguntem onde eles estavam durante os “anos de chumbo”. Eles têm a pachorra de se dizerem porta-vozes do povo, mas eles são 9 famílias, e nós somos milhões e milhões. Eles acham que têm um poder divino, e só eles têm, ninguém mais pode ter: o de comunicar.

Quisera eu que os ideais de verdade e de justiça que movem muitos e muitas que decidem ser jornalistas sobrevivessem aos ímpetos da competição de mercado e da compra de dignidade que muitos veículos promovem. Conheço, felizmente, uma porção – com ou sem diploma em jornalismo – que seguem movidos por aqueles ideais. Que esses ideais se pintem de lilás. Que continuemos nos indignando. Que não nos cansemos de brigar com quem usa argumentos de mercado para justificar a opressão das mulheres. A imprensa precisa de mais feministas.

Hoje, além da felicidade de cem anos de história, eu sinto a felicidade de quem renova um compromisso. Meu MTB sempre será esse instrumento. A luta das mulheres pode contar com ele.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Vagabundas, gostosas e outras "gracinhas"

Vocês sabem que eu estudei na ECA, a Escola de Comunicações e Artes da USP. A universidade é, por excelência, onde se produz crítica e inovação. Deveria ser. Vez ou outra podemos observar aberrações que chocam ainda mais porque se esperaria outra coisa de "intelectuais" e "letrados".

Mas ainda bem que, se há esses, também há quem se indigne, e não se cale.

Leiam o artigo de Tatiane Ribeiro, estudante de jornalismo da ECA-USP, sobre lastimável fato recente, na esteira das recepções a calouros/as, em que uma organização de estudantes da faculdade - a "Atlética" - engrossa o côro da mesmice do machismo mais tosco e trivial como se fosse "descolado".


Vagabundas, gostosas e outras piadas

(Tatiane Ribeiro)

100 anos do Dia Internacional das Mulheres. Ou seja, no mínimo, 100 anos de luta das mulheres. Conquistamos muitos direitos, e não foi fácil. Mulher, hoje, tem o direito de estudar, votar, trabalhar (mesmo que os índices provem que a mulher ainda ganha menos que o homem na mesma posição - e se for negra, então...).

Mas, hoje, dizem que com a liberalização, com a pílula anticoncepcional etc, a mulher pode se considerar sexualmente livre. Ela pode, enfim, ser dona e responsável por seu próprio corpo, sem ser coagida pelo seu senhor (pai, marido, sociedade). PODE?

Entre os muitos recadinhos, ali está, sem critérios, o "ecana vagabunda... eu bem que avisei". Avisou? A quem? Obrigada por me contar que eu sou uma vagabunda. Obrigada por me contar que você, macho alfa, tem o direito de fazer não importa o que e eu, pobre fêmea da espécie que sou, não posso. Obrigada por me avisar que o ambiente universitário é tão machista e conservador quanto todo o resto da sociedade. É sempre bom ser lembrada que ainda tenho muito por que brigar... e muita passeata, muita luta pelo direito das mulheres.

"Ah, mas é só uma brincadeira". Sim, é uma brincadeira. Mas, vamos aos fatos: é na brincadeira que se pode dizer qualquer coisa que quiser, e tudo bem. É só uma brincadeira. É na brincadeira que as verdades enrustidas podem vir a tona. Porque rir no final é dizer amém, mas ao mesmo tempo, é fingir que não concorda.

Só por brincadeira, quando eu estava no Ensino Médio, sempre que alguma coisa sumia, eu ouvia: "procura nas coisas da Tati, ela é preta!". E só pra se divertir, outros colegas adoram falar de quantos essa ou aquela já pegaram. Mas, olha, são só brincadeiras, nada de mais.

Mas vamos a um fato mais recente: só por brincadeira, certos estudantes de uma universidade PARARAM as aulas, gritando que a colega era uma vagabunda por conta do tamanho da saia que estava usando. E por conta dessa brincadeira, ela se viu obrigada a se trancar em uma sala e ser escoltada pela Polícia Militar para conseguir sair.

Não, não estamos falando da USP. Nela, alunos da Faculdade de Direito escreveram em um jornal do Centro Acadêmico XI de Agosto (em 2005) que homossexualismo é doença e que AIDS é a solução. Mas não se preocupe, foi só uma piada de mal gosto, nada de mais.

E não estamos falando da ECA, porque a Escola de Comunicações e Artes é livre, aceita todos os tipos diferentes. Mas não sem uma piadinha ou outra. Não sem fazer rótulos. Não sem dizer que o curso de Jornalismo tem o ano sim e o ano não. Deixe-me explicar a piada: no ano sim, todas as meninas são lindas e os caras são gays. No ano não, os caras são machos, mas as meninas são barangas.

E é assim, piada a piada, que continuamos numa sociedade machista. Que continuamos fazendo da mulher um pedaço de carne ambulante. Que as dividimos entre as "pra comer" e as "pra casar". E isso não é uma piada. Como não é engraçado ser abordada na rua, ser coagida, ter que pensar numa roupa que não seja provocante de mais, porque senão, depois não reclame...

Enquanto as piadas super engraçadas continuarem passando, ainda teremos homens e mulheres achando que é normal que haja diferenciação de salários, que seja normal que a mulher tenha dupla jornada (no trabalho e nas tarefas femininas da casa). São essas as piadas que perpetuam que a mulher só pode chegar a um grande cargo se transar com o chefe, afinal, teste do sofá nela.

Peço desculpas aos leitores que acham que estou exagerando. A vocês, sugiro que pensem em certezas implícitas: por que as mulheres tem que escolher entre serem bem-sucedidas e terem família? Por que as mulheres não podem andar de decote e/ou saias curtas? E por que elas tem que ter um homem para serem felizes?

Eu dou as respostas:por que as mulheres tem que escolher entre serem bem-sucedidas e terem família? "Essa aí largou os filhos na vida, só pensa em trabalho". Por que as mulheres não podem andar de decote e/ou saias curtas? "Ê, lá em casa!" E por que elas tem que ter um homem para serem felizes? "Ih, a fulana já tem 40 e tá solteirona. Já ficou pra titia..."

Mas não se preocupe, eu estou exagerando... são só piadas...

Eis o fatídico anúncio: